Volume 2

Capítulo 92: Décima Nona Página do Diário (1)

Fiquei na fronteira aguardando a chegada dos outros. Estava cansado, com raiva e sem saber o que fazer. Em poucos minutos os nossos guardas chegaram, mais alguns minutos e meus irmãos. Shiduu estava coberta de sangue, Baruu tinha apenas metade das flechas restando, e Surii tinha algumas marcas de batalha.

Cada um de nós contou o que havia acontecido no seu lado. Shiduu explicou que havia eliminado todos os mercenários, os nossos guardas não tinham muito o que dizer, haviam corrido o mais rápido possível. E a mim restou lamentar não ter conseguido alcançar a caravana.

Todos deram duro para tentar parar a caravana e salvar os escravos, mas eu não fui capaz de alcançar as carroças. Por minha culpa os escravos não foram resgatados, acabei pondo toda a missão a perder.

— Não se culpe. — Shiduu disse, me encarando como se conseguisse ouvir meus lamúrios internos — Você foi capaz de achar o local onde os escravos estavam sendo mantidos, enquanto nós nem chegamos perto disso. — Ela olhou para o desfiladeiro e continuou — Podemos ter perdido a chance de resgatar aquelas pessoas, mas ainda temos que pegar os culpados por isso e garantir que não farão mal a outras pessoas.

Olhei para ela por alguns segundos e senti meu ânimo retornando, não totalmente é claro, mas ainda restava uma chance de fazer a coisa certa.

— Já temos os suspeitos mais prováveis, os donos da caravana! — Ela continuou, passando o olhar por nós irmãos e pelos guardas — Alguém mais?

— Descobrimos recentemente que o magistrado da cidade em que estávamos tem relações com os traficantes, mais do que acobertar, ele está enfiado até o pescoço no esquema de tráfico humano.

— Isso é de se esperar, como maior autoridade na cidade ele deveria estar ciente do que acontece, mas as suspeitas sobre ele surgem no momento em que não relatou nada, mesmo que apenas acoberte os traficantes, já será considerado um crime.

— Acho que a senhorita não entendeu. — O guarda continuou —O magistrado “é” o verdadeiro dono da caravana, a pessoa por trás de tudo é o chefe da cidade.

Shiduu encarou o guarda em silêncio por alguns segundos, parecia que aquela notícia havia abalado ela de uma forma mais intensa do que saber que eu havia deixado os escravos atravessarem a fronteira.

Os olhos dela estavam ficaram imóveis, nem mesmo piscavam, seus lábios tremiam, sua mão estava fechada com tanta força no cabo da adaga que parecia tentar quebrar a sua arma. Eu sempre tive um certo receio dela por ser literalmente uma assassina, mas naquele dia parecia haver uma sombra de ódio ao redor dela.

Eu não sabia o motivo extao de sua raiva, mas entendia o que ela estava sentindo.

— Sabemos quem são todos os envolvidos? — Shiduu perguntou.

— Não é uma lista muito extensa. — O guarda respondeu — A maioria dos envolvidos eram mercenários de outros reinos, e pelo visto vocês três cuidaram de metade deles.

— Ótimo! — Ela se virou para nós, irmãos — Vamos ficar com o magistrado, alguma dúvida?

A pergunta não foi dirigida a mim, Surii ou Gouroo.

— Não senhora. — Os guardas responderam.

— Tentem capturá-los com vida, mas não hesitem em matar caso seja necessário.

— Sim senhora! — Os guardas pareceram mais felizes com esse comando.

— O mesmo vale para vocês três! — Dessa vez ela disse olhando para mim, Surii e Gouroo.

Não perdemos mais tempo algum, retornando às montarias, voltamos o mais rápido possível à cidade mais ao norte do Reino do Leste. Eu preferia não ter que montar um animal como aquele, mas minhas pernas já não davam conta de correr mais um metro que fosse.

Durante a curta viagem Shiduu explicou como agiríamos, como seria a divisão dos grupo e a estratégia de ação. Tentei gravar o máximo possível enquanto tentava descansar meu corpo para uma possível necessidade de luta. Não que eu estivesse ansioso, mas a prevenção é o melhor remédio.

Se bem que depois de falar em salvar os escravos eu precisava descontar a raiva em alguém.

Quando chegamos aos portões da cidade todos já sabiam os seus respectivos destinos, em silêncio marchamos em diferentes direções para cumprir a justiça sobre pessoas que menosprezavam a vida e a dignidade humana.

Quando chegamos à mansão do magistrado Shiduu foi à frente a se apresentou como filha do leste, enquanto eu e Surii levamos os cavalos para um local mais adequado.

Quando voltamos ela estava de pé na frente da porta aguardando a chegada do nosso suspeito. Normalmente um de nós seria convidado a entrar, então pedir a um filho de Miraa que esperasse na porta era a prova final de que dentro daquela casa havia algo a ser escondido.

Não demorou muito e o homem chegou à porta, cara lisa e testa suada, corpo tão largo que parecia não ser capaz de passar naquela porta. Usava roupas cheias de bordados e lantejoulas coloridas, mais chamativo que aquilo só se andasse com uma melancia na cabeça.

Shiduu não perdeu tempo, antes que o magistrado tentasse alguma forma de enrolação ela perguntou se ele tinha alguma informação sobre uma rota de tráfico humano passando por aquela cidade.

— Desconheço. — Ele respondeu de forma seca.

— Engraçado, já que as evidências apontam o senhor como um dos envolvidos no tráfico de escravos.

— Escravos? — O homem gordo e de bigode olhou confuso para nós quatro — Com base em quais evidências me acusam de um crime tão… tão… — Ele fez uma careta de nojo — … repugnante, essa é a palavra.

— Realmente! — Shiddu permaneceu inalterada — Uma pessoa que escraviza outras é um ser desprezível e repugnante. O senhor como um dos magistrados do reino deve saber bem disso, e por isso não se incomodará que façamos uma vistoria em sua residência.

O homem demonstrou relutância, mas sabia que diante dele estavam quatros dos onze Filhos do Leste, e Shiduu estava pedindo autorização apenas por uma questão de educação, além da merda da politicagem. Eu não entendia nenhum puco de política, mas Shiduu era experiênte nisso, só deixei que ela falasse e não me importei sequer de prestar muita atenção no homem.

Enquanto Shiduu conversava com ele tentando encontrar alguma pista, eu procurei pelos arredores, sem me mover muito, qualquer indício de escravos e possíveis rotas de fuga. Era importante conhecer tanto por onde os possíveis inimigos teriam melhores chances de fugas para caso precisássemos de uma emboscada, como também por onde fugiríamos sem chamar tanta atenção.

Acho que as aulas de táticas de ação estavam valendo a pena, e as de teatro também, eu estava me sentindo mais leve fingindo não estar com vontade de avançar no pescoço de alguém ali mesmo.

Rotas observadas, voltei à conversa.

— É claro que não me importo. — Ele respondeu — Mas gostaria que me permitisse conhecer os detalhes da acusação para que possa me defender adequadamente.

— É muito simples! — Shiduu o afastou para o lado e entrou — Se não encontrarmos nada então será considerado inocente.

O homem deu um sorriso de satisfação, enquanto isso Gouroo entrou também.

— Então é tão simples assim? — Ele fez um gesto para que eu e Surii também entrássemos — Fiquem à vontade para olhar onde quiserem, meus criados irão guiá-los pelos corredores para que não se percam, já que é uma mansão enorme.

Ele indicou quatro pessoas para nos guiarem, e assim cada um de nós seguiu um caminho diferente. Pensei que ele poderia usar esse tempo para fugir, mas pelo sorriso que ele deu quando Shiduu falou da possibilidade de inocentá-lo com toda certeza ele estava certo de que não encontraríamos nada.

Olhei para a criada que me acompanhava.

— Qual seu nome?

— Finii. — Ela respondeu.

— Existem escravos escondidos aqui?

Era óbvio que eu não esperava uma resposta sincera, então foquei em observar a reação dela. Desviar o olhar, tentar pôr os braços à frente do corpo, da um passo para trás, engolir em seco, demorar a responder, gaguejar… Eram muitas as maneiras de identificar que uma pessoa poderia estar mentindo.

— É claro que há escravos aqui, eu sou uma, inclusive. — Ela disse — Normalmente eu não diria isso, revelar os segredos desse lugar causará minha morte. Mas se vocês puderem ao menos salvar os outros, eu morrerei feliz.

Tá certo, eu não esperava uma resposta sincera.

— Por que está sendo sincera? Achei que ia mentir ou tentar encobrir de alguma forma…

— Se vocês não puderem nos salvar, então ninguém poderá. — Ela disse com muita serenidade — Fiz tudo que me ordenaram sem me rebelar para garantir a segurança da minha irmã, mas ela está morta, não há motivos para ser a escravinha obediente.

— O que mais você pode me dizer? Informações que podem ser importantes…

— Os escravos usam uniformes de empregados para se distinguir do demais. Quem não estiver de uniforme está envolvido no tráfico. Os escravos não domesticados estão sendo mantidos no porão, a entrada para a prisão está exatamente abaixo da mesa do escritório do magistrado. E muitos dos “não-escravos” são usuários de magia. Acho que isso é tudo.

— É bastante coisa.

— Agora posso morrer em paz.

— Ninguém vai morrer aqui! — Respondi com firmeza, mas não tinha tanta certeza — No máximo esses caras, se eles irritarem a minha irmã ela vai arrancar a cabeça deles.

— Seria bom se fosse assim, mas tem tanta política envolvida…

— Não entendi.

— Não precisa entender, apenas pegue essa chave, ela é a chave mestra que abre quase todas as portas desse lugar, se encontrar uma porta que não possa ser aberta, estará no lugar certo.

— E o que eu faço depois?

— Não sei, sou apenas uma escrava com o tempo de vida restante contado em minutos. — Ela disse sorrindo — Você é o herói aqui, vai pensar em algo.

Herói, a única coisa que eu certamente não era.



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