Volume 3
Capítulo 123: Vigésima Quinta Página do Diário (1)
— Olho de Peixe? É você? — Perguntei confuso.
— Ah não! — Ele exclamou, abrindo ainda mais os olhos — Deco, é você?
Nem precisei responder, ele sentou na borda da mesa e passou o braço esquerdo em torno do meu pescoço enquanto apontava pra mim com o indicador da mão direita.
— Seguinte bando! Esse aqui é meu aprendiz, tudo que ele sabe fui eu que ensinei. Seja lá que merda ele aprontou, nós vamos ficar do lado dele.
Não entendi nada, mas pelo menos eles não estavam mais tentando me matar. Isso era um alívio. E pelo que parecia, Olho de Peixe agora se chamava Nilo, e era o chefe de uma gangue… Ou um grupo de mercenários, eu não conseguia distinguir a diferença.
— Então vamos fazer como no caso “Hev”? — Perguntou um cara grande e musculoso, que coçava a cabeça com o cabo de um machado.
— Possivelmente. — Olho de Peixe respondeu — Ainda não tenho um plano…
— Nunca temos. — Uma pessoa mascarada comentou, não dava para ver o rosto mas a voz era feminina.
Ele se virou para mim e começou um interrogatório.
— Me fala aí moleque, como tu se meteu nessa? Por onde tem vivido e como tem passado? Mudou de nome? Sabe dos outros ratos? Eu fui lá tempos atrás mas não tinha ninguém…
— Ah… Bem… Eu nã… — Tentei responder ao menos uma das perguntas.
— O mais estranho… — Ele interrompeu — Me disseram que os outros foram levados por alguém, mas ninguém sabe quem, e mesmo assim essas pessoas desconhecidas recolheram órfãos recentemente. A minha teoria é que alguém muito mau está usando crianças para algum tipo de ritual macabro.
Ele passou os olhos pelos outros ao nosso redor, eles confirmavam com um movimento de cabeça, como se concordassem com a teoria dele.
— Ah… Quanto a isso… — Tentei mais uma vez.
— Não se preocupe! — Ele me interrompeu outra vez — Nós vamos te proteger, já entrei em contato com os outros ratos do continente inteiro, temos toda uma rede de informações formada. Assim que descobrirmos quem foi, vamos entrar com o pé na porta e acabar com a raça da pessoa.
— Isso aí! — O cara do machado disse com um sorriso macabro.
— Vamos trucidar seja lá quem for! — A mulher de máscara concordou.
— Nhgt-bbr-df! — Um cara aparentemente mudo fez uns sons estranhos e mímicas como se estivesse quebrando um pescoço com as mãos, enquanto sorria igual um louco psicótico.
Foi estranho e assustador.
— Eu ainda me chamo Deco… Aaah… Moro no Leste, onde tenho estudado e treinado… Atualmente estou em uma missão… Ah… De resgate, eu acho…
— Uau. Parece ser melhor do que quando vivíamos na toca… Por falar nisso, o que aconteceu para você sumir sem dar um aviso?
— É uma história bem louca…
— Adoramos histórias loucas, temos algumas, inclusive.
— Resumindo de uma forma bem simples, eu fui jogado na Grande Falha, adotado pela Senhora do Leste, ganhei um poder muito legal, roubei um treco divino, comecei uma guerra…
— Peraí! Tá mesmo dizendo que foi meu irmãozinho quem roubou a pedra…
— Ovo! — Eu corrigi.
— Semente! — O cara do machado corrigiu nós dois.
— … SEMENTE! E começou uma guerra? — Nilo perguntou, fingindo que não havia sido corrigido.
— Sim. E depois disso eu fui investigar uma caravana de traficantes de escravos e causei uma baguncinha na fronteira…
— Tá me dizendo que foi tu quem causou aquela bagaceira toda? — Nilo arregalou ainda mais os olhos — Não se fala de outra coisa na região…
— Estavam até especulando que tivesse sido um grupo de mercenários altamente treinados… — A mulher mascarada de antes disse — Para causar problemas desse nível lá, e depois entrar aqui e resgatar todos os escravos sozinho em apenas uma noite, você deve ser mesmo muito poderoso!
Não foi exatamente como eles estavam imaginando, mas no momento era melhor fazer eles acharem que eu era realmente muito poderoso. Quem sabe poderia convencê-los a me ajudar na próxima missão de resgate.
— E como descobriu a caravana? — Nilo pareceu suspeitar — O tráfico de escravos é proibido em dois reinos, por isso as coisas são bem encobertas.
— Minha irmã conseguiu informações com um ex-rato chamado Gruder… Cara legal, ele.
— Gruder? — Ele disse animado — Como conhece o Gruder?
— Longa história…
— Boa resposta para quando é uma história que não deve ser contada. —
Nilo se virou para seus companheiros e disse em voz alta:
— Hoje eu encontrei meu irmãozinho perdido, pessoal! Vamos comemorar…
Uma festa se iniciou. Os ex-escravos que ajudei a libertar se juntaram às comemorações. Os ex-bandidos que haviam se juntado ao meu grupo também entraram na bebedeira. E estávamos em uma taverna… Como era de se esperar, terminou em porradaria e mesas quebradas.
Olhei para todos os lados enquanto calculava mentalmente o prejuízo que eu teria que pagar. Lembrei de que Shiduu teve uma despesa bem alta na primeira briga de bar que presenciei.
Não entrei na brincadeira com eles, apenas comi um pouco e subi ao meu quarto para tentar descansar, não que conseguisse com os constantes pesadelos. Foram cerca de quatro horas de sono, mas deveria ser suficiente. Precisava ser.
Para fugir da repetição de vozes ecoando em minha mente, pedindo clemência e me amaldiçoando por matá-las, eu comecei a planejar os próximos passos. Foram muitos planos, avaliando todas as possibilidades, até que chegasse a um que fosse o mais perto de perfeito.
Ou pelo menos aceitável.
Peguei um mapa que havia comprado de um cara aleatório, e inserindo informações que eu conhecia graças aos meus estudos de geografia, tracei todas as melhores rotas.
Ocupar a mente era necessário, e assim resolvi escrever um diário contando todas as minhas desventuras. E do jeito que a minha cabeça estava ferrada, talvez eu precisasse futuramente de algo para me dizer o que foi real e o que era alucinação.
Mas também era importante conseguir esconder de todos o quão assustado eu estava, principalmente comigo mesmo. Acho que Brogo desconfiava de algo, mas ela nunca perguntou nada. Cada um tem suas próprias dores, afinal.
Resolvi então que o melhor era usar a briga da taverna na noite anterior para ganhar vantagem.
No dia seguinte reuni os principais envolvidos, que ainda estavam de ressaca, e dei um sermão.
— Você têm ideia de quanto de prejuízo me deram em uma única noite? — Eu fingi estar chateado — Quero saber como vão me pagar!
— A gente não tem dinheiro… — Um deles disse.
— Mas podemos pagar fazendo com trabalho… — Outro adicionou.
— Somos mercenários mesmo, nossa riqueza é a capacidade de fazer qualquer coisa. — A mulher entre eles adicionou.
— Nhgfft! — O mudo concordou, eu acho…
— Ótimo! — Exclamei — Eu tenho mesmo um trabalho em mente.
Nilo que estava apenas ouvindo calado, levantou a mão, pedindo a palavra, e perguntou:
— Envolve resgatar escravos?
— Sim.
— Ótimo, os heróis salvam o mundo, vamos salvar as pessoas…
Dava para sentir o sarcasmo na fala dele.
— Vocês me deram prejuízo e não têm dinheiro para pagar, considero uma troca de favores…
— E você tem um plano?
Eu estava em território inimigo, mas tinha um exército, dinheiro e um plano. E usando todo o conhecimento e prática adquiridos nas aulas de teatro, começaria a minha própria revolução.
— Vamos para Utab! — Expliquei — Acionem a rede de informantes para que espalhem o boato de que uma caravana do Norte está chegando para fazer negócios.
— Esse parece ser um péssimo plano… — Nilo disse — Mas é o melhor que temos!
— Esse é o único que temos. — Jairo corrigiu.
Na verdade eu tinha outros vinte, mas seria muito complicado explicar todos.