Volume 3
Capítulo 148: Trigésima Página do Diário
Toda calma, paciência e cautela que eu tinha foi perdida no momento que Sceno deu o último suspiro. Toda a piedade que poderia haver para com meus inimigos foi extinta por completo. Só me restava um vazio na alma, e esse foi rapidamente preenchido por ódio.
Conforme atravessava o acampamento em direção à cidade, via pessoas abatidas, crianças chorando, mulheres e idosos feridos. Eu já sabia que a guerra era algo cruel, mas ferir crianças e matar escravos era o mais baixo que um ser humano poderia chegar.
Não haveria perdão.
Nem misericórdia.
O poço em minha alma se aprofundava, e rapidamente era preenchido por mais ódio. E não apenas eu estava disposto a ir a Parva tirar satisfações com os intrusos, atrás de mim vinham dezenas de pessoas, mas eu não queria que se envolvessem nisso.
— Voltem, eu resolvo sozinho! — Ordenei.
— Nem pensar. — Um deles respondeu — Se for para dar uma investida suicida, precisamos garantir que não sobrará um inimigo sequer.
— Miraa estará chegando em breve, é melhor esperar. — Alguém tentou intervir.
— Até ela chegar eu já resolvi isso tudo…
Continuei andando, e eles me seguiram.
Quando chegamos aos portões da cidade, pelo menos cem soldados do Reino de Prata já nos aguardavam. Éramos pouco mais de trinta guerreiros representando o Reino do Leste, mas não temi.
Quanto mais inimigo para matar, melhor.
— Eu vou abrir um caminho entre eles. Quem quiser me seguir ou desistir, seja livre para escolher. — Rosnei enquanto aumentava o passo em direção aos portões.
Algumas flechas vieram em minha direção, mas criei escudos de Rancor e parei a maioria delas. Acho que os inimigos viram que não conseguiriam nem me atrasar com aquelas coisinhas bobas, então desistiram de atirar e vieram para cima com armas em punho.
Devia haver algo errado com o treinamento daqueles soldados, eles não conseguiam atacar todos ao mesmo tempo. Isso facilitou para que eu os derrotasse, um de cada vez.
Mas eles eram persistentes, isso eu devo admitir. Mesmo vendo seus companheiros morrer, nenhum deles desistiu ou recuou. E também tentaram manter algum tipo de formação bem ensaiada, mas ineficaz contra alguém com tanto ódio quanto eu.
Eu fiz o que fui fazer.
MATAR.
Eu matei mais uma vez, e com a minha consciência estável. Eu sabia o que estava fazendo, e sabia que a morte era algo natural no campo de batalha, e se eu não matasse, eu seria morto.
E eu gostei de matar.
Cada inimigo que caía à minha frente aliviava um pouco a angústia ressentida em meu peito, cada vida que eu tirava pagava o preço por aquilo que me tiraram. A escuridão em minha alma seria lavada com o sangue dos meus inimigos, e seus gritos de agonia seriam a música que acalantava meu pesar.
Meu estado de fúria afastou aos poucos os soldados inimigos, e mesmo estando em desvantagem numérica, os soldados do Leste conseguiram manter a formação e defender o lado de fora do portão.
Enquanto eles impediam a saída de reforços inimigos, eu abatia sozinho os que tinham conseguido romper as defesas da cidade antes de chegarmos. Até que o último corpo caísse, em minhas mãos, a cabeça decepada daquele soldado sem nome foi como um troféu.
Caminhei por entre os meus companheiros de batalha, e enquanto eles abriam caminho, levantei meu troféu ensanguentado. Chegando no que sobrou do portão da cidade, joguei a cabeça no meio da multidão inimiga, e antes que ela tocasse o chão, avancei sobre eles.
Reforcei um pouco a bota de Rancor que protegia meu tornozelo quebrado, e fiz uma igual no pé direito para equilibrar. Também adicionei alguns espinhos na parte de baixo e fiz um par de manoplas e um peitoral, era o suficiente para proteger as partes vitais sem restringir a minha mobilidade.
Meus compatriotas seguiram minha investida louca de sangrenta. Cada passo que dei foi acompanhado por uma saraivada de flechas em direção aos inimigos. Isso fez a vanguarda erguer os escudos para se protegerem dos projéteis. Mas não os protegeu do meu pé direito.
No primeiro chute, abri um buraco na defesa sólida dos soldados de prata, que rapidamente me cercaram. Criei duas espadas e comecei a matar os que tentavam se aproximar. Mas eles usavam armaduras, então transformei as espadas em duas machadinhas, que tinham maior capacidade destrutiva.
Alguns que não eram cortados, acabavam voando e derrubando seus companheiros na queda. Isso me deu uma ideia, mudei de machados para martelos de batalha. Aí sim foi divertido.
Cabeças esmagadas, braços e pernas retorcidos, gritos de dor, armaduras afundadas… Cortar era legal, mas matava muito rápido. Esmagar era mais desestressante. O problema foi que os inimigos começaram a diminuir e ficaram cada vez mais longe.
Antes eles me cercavam e avançavam sem cuidado em minha direção, agora tentavam abrir espaço em busca de segurança. Talvez, esperando que seus companheiros fossem idiotas de me atacar, enquanto se mantinham a salvo.
Como nenhum deles quis se aproximar, joguei os martelos de batalha em direção aos que tentavam dar a volta e atacar meus parceiros pela retaguarda, acertei em cheio e eles nem viram de onde veio o ataque.
Então comecei a usar adagas de arremesso, mas matar de longe não era tão bom quanto sentir aos ossos do inimigo se partirem perante a minha força enquanto olhava nos olhos dele e sorri do desespero dele. Criei uma foice pequena presa a uma corrente, e prendi a outra ponta da corrente no meu pulso.
Entendendo o que eu planejava, um grupo de oito soldados inimigos me cercou rapidamente. Confesso que criar uma corrente foi bastante complicado, e me levou alguns segundos. Mas não foi tão ruim para mim quanto eles achavam.
Apenas girei no centro do círculo inimigo, enquanto aumentava a lâmina da foice, e tirei as cabeças dos oito tão rápido que eles continuaram correndo enquanto as cabeças voavam em direções bem diferentes. Isso foi engraçado até…
Antes que seus corpos caíssem, a foice já estava curta mais uma vez, e comecei a atacar de longe. A esse ponto, os soldados do Leste já tinham limpado a outra área e chegaram até onde eu estava, algumas das Pessoas Livres estavam juntos.
— Alguns deles fugiram para o palácio do governo! — Um dos soldados do Leste disse.
— Vamos acabar com TODOS! Sem prisioneiros, sem misericórdia! — Gritei, erguendo a foice ensanguentada.
Meus companheiros gritaram em resposta algo impossível de entender. E seguimos em direção a onde ficava a prefeitura, e agora era o esconderijo de covardes.
Havia uma tentativa de formar uma barricada com móveis e entulho.
Não foi o suficiente para me impedir, é claro. Em vez de escalar a montanha de destroços para tentar passar pela porta em direção a uma, bem provável, armadilha, apenas abri um buraco na parede a entrei.
Eu estava certo em suspeitar da armadilha na porta. E os soldados inimigos estavam errados em não suspeitar que eu poderia criar a minha própria entrada. Eu estava ali para matar pessoas, paredes não me impediriam.
Estar de frente para a porta, e de lado para a parede, foi o erro que cometeram. Sem tempo para se reorganizar, eles foram vitimados pelos meus companheiros. Eu não tinha mais vontade de matar aqueles fracotes, meu desejo era a cabeça do líder.
Líderes tendem a querer ficar em lugares altos.
Enquanto os poucos defensores do Leste abatiam nossos invasores, subi as escadas. Desfiz uma parte da armadura para aliviar o peso, assim não ficaria cansado sem necessidade.
Parei de frente à porta do gabinete do falecido, ou melhor, assassinado, magistrado de Parva. Era, com toda certeza, o lugar onde o meu alvo estaria. Não deveria esperar que estivesse sozinho ou que seus guardas fossem tão idiotas quanto os anteriores.
Meter o pé na porta seria burrice.
Estar em estado de fúria clareava minha mente, não o contrário. Então eu sabia que não era prudente meter a cara igual a um retardado, achando que seria o fodão imortal e talz.
No Leste a gente aprende que “ataque primeiro e pense depois” é coisa de suicida. E se tem uma coisa que eu sempre prezei muito foi pela minha vida. Por incrível que pareça…
Fiz uma dúzia de lanças atravessarem a porta, indo em várias direções. Depois fiz uma armadura com quase o meu tamanho, e a joguei na porta destruída, ela caiu no meio do escritório.
Minha intuição estava correta.
Assim que a armadura caiu lá dentro, foi alvo do ataque simultâneo de pelo menos três soldados. Ainda bem que não tentei a sorte, nunca tive muita mesmo.
Vendo que foi uma isca, e eu estava parado à porta, os sodados recuaram juntos para a parede oposta. Os três estavam com espadas em punho, e um deles possuía um escudo com o brasão da família real do Reino de Prata.
Um cavaleiro real.
Não que eu me importasse com ele especificamente, mas me fez lembrar do Cavaleiro de Prata, e eu odiava aquele cara. Decidi que o do escudo seria o primeiro a morrer.
Ao entrar no local, percebi que duas pessoas haviam sido atingidas pelas lanças da distração. Beleza, não era o plano, mas funcionou. O problema era que um deles era o líder da invasão,
Eu lembrava daquele cara. Ele se chamava Dat, e havia falhado em invadir Parva quando roubamos a semente de sei lá quem… Pelo menos eu lembrei que era uma semente e não um ovo.
Ah sim. Eu tinha que matar.
Fiz uma lança atravessar o escudo e o peitoral do cavaleiro real em apenas uma estocada. Fácil demais.
Em seguida virei para os dois restantes. Como eram os últimos, não seria inteligente matar antes de interrogar. Afinal, minhas informações eram de que os heróis tinham vindo para Parva, mas eu não tinha visto nenhum deles.
— Cadê os heróis? — Perguntei.
— Eles não estão aqui… — Um deles respondeu.
— Não perguntei se estão aqui, perguntei onde estão!
— Eu nunca dir… — Antes de terminar de falar, ele estava com uma foice no meio da cabeça.
Se não ia dizer, não me adiantava mantê-lo vivo.
— E-eles estão v-voltando para a Cidade de-de Prata… — O último dos três soldados restantes disse sem hesitar.
Encarei ele, esperando que melhorasse a explicação. Mas acho que ele ficou com medo e não conseguiu dizer mais nada.
— Não seja tímido… — Disse a ele.
— A-a-a… a heroína de f-fogo… — O soldado, que já estava com as calças molhadas, disse — Ela perdeu o controle, eles tiveram que voltar…
Por que as pessoas tinham tanta dificuldade em não molhar as calças em situações assim? Talvez ir ao banheiro de armadura fosse complicado…
Não, foco no que ele disse.
Zita estava em perigo? Era isso? Com assim ela perdeu o controle? Será que eu também tinha perdido o controle? E se fosse ela quem matou aquelas pessoas que estavam no portão da cidade? Eu teria o direito de culpa-la depois de ter matado tantos soldados? Minha cabeça ficou turva, e não conseguia mais sentir minha respiração. Busquei ar, mas era como se meus pulmões tivessem parado de funcionar.
Resolvi deixar ele viver.
Caminhei em direção à porta, enquanto os soldados do Leste terminavam de matar os últimos sobreviventes, e lá vi alguém parada. Uma mulher muito bonita me olhava de forma triste.
Miraa.
— O que aconteceu com você? — Ela perguntou.
Tentei dizer algo, mas não consegui. Baixei a cabeça tentando respirar, e vi o sangue escorrendo pelo meu corpo. Então senti meu corpo pesar e doer. Vi cortes nos meus braços, pernas, barriga… uma perfuração na altura das costelas direitas…
Eu estava ferido. No meio da luta nem percebi a quantidade de vezes que fui cortado, perfurado, arranhado e batido. Parecia que eu era o único a conseguir algo, mas, na verdade minha mente estava me protegendo de saber o quão ferrado meu corpo estava.
Nem todo aquele sangue era dos inimigos, grande parte era meu.
Miraa me abraçou forte, e eu, fiquei lá, parado. Ela chorava. Senti sua lagrimas caírem no meu rosto, aos poucos fui entendendo, ela se preocupava comigo, senti o ar entrando pelas narinas e invadindo os meus pulmões, senti meu coração bater, senti um engasgo…
— Vai ficar tudo bem, eu estou aqui… — Ela disse.
Desatei em lágrimas, entrelaçando meus braços em torno dela. Ficamos lá, em meio a todo aquele caos. Mãe e filho chorando abraçados.
Finalmente me dei conta de que alguém se preocupava comigo nesse mundo.