Volume 4
Capítulo 155: Trigésima Primeira Página do Diário (2)
A primeira pessoa a entrar foi Jairo.
Ele havia se tornado o meu terceiro em comando, depois de mim e de Brogo. Por algum motivo tínhamos formado uma espécie de miniexército independente, e agora eu era o líder.
E eu nem sabia.
Jairo me explicou que muitas pessoas haviam decidido se unir ao meu grupo, graças ao que fizemos, nossa fama se espalhou por muitas cidades nos reinos circunvizinhos. Agora tínhamos a responsabilidade de cuidar e proteger mais de uma centena de pessoas.
Ele avisou também que agora éramos os responsáveis pela cidade de Parva, já que os antigos administradores haviam sido mortos pelos invasores. E agora poderíamos e deveríamos adequar o local para alojar tanta gente.
Pelo menos alguns queriam partir para suas respectivas terras natais. Mesmo não tendo passado tempo suficiente com todos eles, eu sentiria falta de cada um que saísse.
Eu não queria obrigar ninguém a nada, até porque não tinha esse direito. Tudo que fizemos foi apara dar àquelas pessoas a possibilidade de serem livres, o que elas fariam com essa liberdade não era da minha conta.
Por uma confusão das informações, estavam nos chamando de Pessoas Livres do Leste, mas esse era o nome do grupo de Adênia. Os ex-ratos da Cidade de Prata haviam escolhido esse nome.
A segunda pessoa a ir falar comigo foi Adênia. A antiga líder dos ratos agora parecia bem maior do que eu lembrava, estava bem vestida e falava com mais confiança. A primeira coisa que ela fez foi explicar que a sugestão de unir os dois grupos e chamar a todos de “Pessoas Livres” foi dela.
Adênia disse que se aquilo me incomodasse ela poderia mudar de ideia, e que foi apenas uma sugestão. Eu pedi que ela relaxasse, se estava bem para ela, estava bem para mim.
Ela se ofereceu ainda para cuidar das coisas em Parva. As pessoas pareciam achar que eu era o dono da cidade. Pelo que eu entendi, Adênia estava estudando e treinando no Leste, mas ainda guardava o desejo de cuidar dos órfãos. Ela sugeriu fazer de Parva uma cidade onde todos pudessem ser livres e terem uma chance de viver.
Não sei o motivo da minha opinião importar, mas é obvio que concordei.
Como era acidade mais próxima da fronteira, Parva tinha a função de receber as caravanas de mercadores que entravam e saíam do Reino do Leste. Ao mesmo tempo era o primeiro alvo de qualquer ataque inimigo.
Se pudéssemos fazer de Parva o berço da liberdade naquele continente, não haveria ninguém com coragem, doidice ou disposição para nos atacar. Assim, ficou decidido que Parva seria o novo lar das Pessoas Livres do Leste. E nosso grupo seria o responsável por proteger a cidade que simbolizava os portões do Leste.
A terceira pessoa a entrar foi Nilo, na verdade ele entrou junto com Adênia, mas deixou que a garota falasse primeiro. Ele me disse que havia sido procurada por Gruder, ele queria unir os ratos do continente inteiro ao meu grupo em uma tentativa de criar uma rede de informações em prol da segurança e bem-estar da população mais pobre.
Novamente eu não entendi porque eu tinha que opinar a respeito, mas concordei. Por todo o continente haviam pessoas que tinham sido ratos, se essas pessoas pudessem me passar informações, eu poderia saber de tudo que estivesse acontecendo.
Nilo disse ainda que Gruder o informou de revoltas populares e levantes de grupos de ideologia antiescravagista. Era uma notícia maravilhosa, saber que as nossas ações imprudentes haviam despertados nas pessoas o sentimento de união em defesa da liberdade.
Miraa, que ainda estava ao eu lado, aproveitou para informar os detalhes da devolução da semente da Mãe Terra para o povo de floresta, no Reino do Sul. Segundo ela, isso foi necessário para manter a proximidade entre os dois reinos que compartilhavam algumas coisas em comum.
Uma dessas coisas era a rota comercial norte-sul, que vinha desde a Cidade dourada, atravessando a Cordilheira Escaldante, o Reino do Leste e o Reino do Sul, até chegar no cabo dos ventos, no extremo sul do continente.
Agora que os dois reinos estavam em paz, e a rota comercial estava segura, outra crise ameaçava trazer uma guerra. E novamente eu era um dos principais culpados.
Pelo menos dessa vez eu estava salvando pessoas e não roubando ovos, digo, sementes sagradas.
Próximo a vir falar comigo foi Zhu-Li. Para melhor dizer, ele veio até mim apenas se despedir. Antes de ser capturado e levado como escravo, ele era um guerreiro do clã do sol, e sua família era a guardiã da capital do Reino do Sul.
Zhu-Li havia ensinado um pouco sobre artes marciais, técnicas com armas e sobrevivência para algumas pessoas do meu grupo, inclusive Brogo, que ganhou um abraço de despedida.
Tudo que pude dizer para Zhu-Li foi que seu tempo conosco foi de muito aprendizado para todos nós, e que eu sentiria falta do nosso melhor guarda-costas. Ele sorriu e deu um tapinha leve na minha cabeça.
— Caso veja Long-Hua, diga a ele que ainda sou a melhor. — Miraa disse a Zhu-Li.
Não entendi o sentido do recado. Long-Hua era um dos mais importantes membros das casas do Sul, e seu clã respondia pela segurança do reino inteiro. Eu havia o conhecido na segunda reunião dos heróis, quando roubei a semente lá.
Aparentemente ele e Miraa se conheciam, o que faz sentido levando em conta que devem ter mais ou menos a mesma idade e são responsáveis pela segurança de seus respectivos reinos.
Zhu-Li fez uma reverência desajeitada antes de sair, o que foi bem engraçado. E quando ele chegou na porta, encontrou uma multidão esperando para o cumprimentar e agradecer pelo tempo juntos.
Pelo que eu soube, se não fosse por Zhu-Li a tragédia em Parva teria sido vinte vezes pior. Ele havia até mesmo enfrentado um dos heróis enquanto ganhava tempo para a evacuação da cidade.
Aquele homem sim era digno de ser chamado de herói. Ele salvou vidas, ele colocou sua própria vida em risco para proteger as outras pessoas. Aquele homem ali era um exemplo a ser seguido por todos nós.
— Homão da porra. — Brogo disse. Ela parecia pensar o mesmo que eu.
Mas eu não estava salivando, pelo menos.
Ah sim. Às vezes esquecia que Brogo tinha alguns anos a mais do que eu, e também um pouco a mais de experiência, se é que me entendem. Ela já era adulta, de qualquer forma.
Em um mundo onde a expectativa de vida não passa dos quarenta anos para homens e cinquenta para mulheres, a maioridade era alcançada aos quinze anos. Ou seja, em pouco tempo eu seria maior de idade, seria então adulto.
Ainda havia mais uma pessoa para falar comigo.
Era Surii, a ladra. Ela me deu um abraço, desconsiderando totalmente o pedido de nossa mãe para não me machucar, e depois um tapa. Aquilo doeu muito. Ela me machucou com carinho e violência em menos de dez segundos.
Sua função foi repassar as informações de como estavam as coisas na Montanha Solitária. Não era nada muito importante, e a própria Miraa que estava ali do meu lado poderia me dizer aquelas coisas, mas eu sabia que era necessário para o desenvolvimento de Surii.
Miraa sempre nos incentivou a ir além.
A maioria foi apenas de informações bobas ou inúteis. Ela também fez um relatório detalhado sobre o plano-safra de grãos para o próximo ano. E contou baixinho que Shiduu tinha chorado escondida, por que achava que eu tinha sido capturado.
Era bom saber que a minha irmã mais velha se preocupava comigo.
Surii informou ainda que ainda um rumor de que os heróis que participaram da tomada de Parva estavam acampados a poucos quilômetros da fronteira dos reinos. E segundo o boato, a heroína de fogo, Zita, estava em um estado de descontrole total dos seus poderes.
A informação vinha de uma caravana que havia passado pelo acampamento deles e alguns de seus membros relataram ter visto a heroína descontrolada, acorrentada e com um cristal de restrição mágica preso ao corpo.
Aparentemente os outros heróis estavam com dificuldades em manter ela sob controle, e por isso ainda estavam em meio de viagem. Obviamente seria melhor se eles conseguissem chegar à Cidade de Prata logo. Mas Zita era muito poderosa e com seus poderes fora de controle, nenhum deles tinha coragem de fazer coisa alguma.
Lembrei que um dos guardas de Reino de Prata que estavam ocupando Parva havia dito isso. Então deveria haver um fundo de verdade no meio de tantos boatos, o que significava que Zita estava em perigo.
Não havia nada que eu pudesse fazer para ajudar ela. Por mais que eu desejasse ir até onde eles estavam acampados e tirar ela de lá à força, não tinha condições. Ainda estava me recuperando das ações imprudentes dos dias anteriores, e aquelas pessoas que agora me acompanhavam precisavam de tranquilidade, não de mais perigo e problemas.
Tranquilidade era o que todos nós precisávamos.
Mas eu não conseguiria ficar tranquilo enquanto não soubesse que estava tudo bem com Zita. Ela foi uma das primeiras pessoas que se importou comigo, e mesmo depois de tanto tempo longe um do outro ela lembrou de mim e me convidou para a festa no castelo.
Mesmo quando quiseram me expulsar ela me defendeu. E quando eu voltei para retribuir, ela me ajudou. Sem contar que eu gostei muito de beijar ela.
Decidi que ia fazer algo, mesmo que me custasse caro. Antes que o sol despontasse no horizonte eu saí de Parva sem falar com ninguém. Não quis preocupa-los mais do que o necessário.
Do lado de fora da cidade estava Miraa me esperando com os braços cruzados e uma expressão séria.