Volume 2
Capítulo 31: Calíope
KALI
Meu destino não será decidido por pessoas que não conheço ou por aquelas que já morreram há muito tempo.
— Achei pegadas! — grita um soldado lumen com máscara de animal em seu rosto.
Ainda que eu morra, só a tentativa de escapar já me basta. Não viverei de arrependimentos. É melhor morrer aqui do que passar o restante da minha vida lembrando de uma oportunidade perdida.
Tudo que eu preciso fazer é atravessar a orla interior. Se eu tiver sorte, não me depararei com besta alguma. Já na parte exterior, eu creio que posso lidar com qualquer coisa e poderei deixar este lugar para sempre.
— Escutei passos! Ela veio por aqui!
Droga, preciso ser mais rápida. Recito as palavras: — Lupus Argentea. — Uma luz prateada se projeta de meu corpo.
— É ela! Ela se transformou! — grita o outro soldado mascarado.
— Aquila lucis — diz um dos lumens, o qual reluz como o sol e se transforma em uma águia de dois metros de envergadura.
Já o outro soldado também se transforma em um lobo prateado, igual a mim.
— Vão na frente que eu alcanço vocês. — Posso escutar o terceiro soldado com uma máscara de carcaju dizer, na medida em que fica para trás.
Ainda transformada em loba, utilizo a magia de aprimoramento de velocidade. Em resposta, vejo minhas patas projetarem um brilho tênue ao passo que o vento e as folhas das árvores cortam meu rosto, as quais quase me impedem de ver o que está a minha frente.
Na medida em que atravesso a mata, os vaga-lumes prateados ficam cada vez mais agitados e diminuem de quantidade. A luz abundante projetada deles diminui, dando espaço para uma mata cada vez mais sombria e sinistra.
Nada mais importa, desde que eu seja livre.
Cuá! A águia de luz dá um rasante e crava suas garras em minhas costas. Sinto uma fisgada na costela e uma dor tão aguda que me desequilibra. É quando caio sobre um arbusto repleto de espinhos.
Meu próprio sangue verte sobre as feridas dos cortes, mas me recomponho e sigo adiante. Eu preciso sair daqui.
Após me recompor e na medida em que continuo a correr, eu conjuro magia de cura, e o ferimento se fecha.
Escuto os passos do outro lobo se aproximar de mim. Creio que falta pouco para sair da orla interior, então conseguirei ajuda.
Droga! Será que alguma besta ouviu esse barulho todo?
Cuá! Não vejo a águia se aproximar. A ave finca suas garras em meu pescoço, mas desta vez respondo com uma mordida em seu ventre. Quase arranco um pedaço de músculo, ao passo que rolamos pelo chão.
Um gosto inunda minha boca, é sabor de...
Sangue! Sinto o pulsar do meu próprio coração. Que droga! Por que agora?
Nós paramos de rolar, mas estou por cima da águia e com os dentes a poucos centímetros de seu pescoço. Tomada por um desejo incontrolável, a vontade da besta é de...
Matar! É quando minha visão ruboriza.
Vejo um clarão se formar na ave rendida, e ela ofusca meus olhos. O lumen volta à sua forma normal, em desespero. Vislumbro seus olhos tomados pelo pavor através dos dois buracos de sua máscara de coruja.
O que eu estava pensando? Eu estava prestes a matá-lo?
— Frutise espinosa... — diz o lumen rendido na medida em que toca o solo com ambas as mãos.
Conheço as palavras. Salto para trás e vejo vários ramos e raízes de árvores com espinhos se projetarem do chão e envolverem o local que estava. Ele quase me prendeu.
O lobo se aproveita e me embosca, enquanto estou distraída. Ele morde meu pescoço. Tento me livrar, mas ele não solta. Quanto mais me debato, mais seus dentes cravam em meu pescoço.
É quanto o fluxo negativo se forma ao redor do soldado transformado em lobo. Ele tentará me desmaiar com magia de morte. Em resposta, conjuro uma magia de proteção.
Não vou desistir. Não agora... tão perto. Eu te alcançarei, meu amigo, Fantasma.
— Cuidado! — grita aquele com a máscara de coruja. — É magia de luz!
Se eu morrer aqui... te alcançarei como um fantasma para te assombrar também.
O fluxo branco se reúne, e o calor aquece meu corpo. Ainda caída e presa entre a mandíbula do lobo prateado, presencio o sol brilhar cada vez mais forte no céu. Sua luz começa a atravessar e chamuscar as folhas das gigantescas árvores.
Vários animais e bestas pequenas fogem. Posso sentir daqui o pavor que se espalha pelo local. O barulho de pânico dos animais se esgota dando lugar a um silêncio ensurdecedor que toma conta do ambiente, o qual é quebrado por um som idêntico a um trovão.
Brr! Trummm! A luz é tão intensa que sinto meus olhos arderem. Entretanto não é um trovão que vislumbramos, mas sim um feixe de luz vindo do céu, com a espessura de dez centímetros, o qual atravessa as árvores e abre uma trincheira no chão: Minha magia mais poderosa.
O soldado, com máscara de coruja, é morto ao instante pelo feixe de luz. Manipulo a magia em minha direção, e ela se aproxima lentamente, ao passo que rasga o chão e produz um forte zunido.
Se necessário for, levarei todos vocês ao inferno comigo.
O lobo prateado percebe que pretendo matar a nós dois. Ele me solta e recua. Revogo a magia para conservar o pouco fluxo que me resta. O custo foi alto, entretanto agora eu tenho a oportunidade de fugir de novo.
Groar! Todavia, um urso colossal de três metros de altura sai da mata e me prende contra o chão entre suas garras. Uma besta? Não, é o terceiro lumen que havia ficado para trás.
— Rápido, apague-a! — exclama o urso gigante, com uma voz grave e grotesca. — Ela é perigosa!
O lobo prateado volta à sua forma de lumen com uma máscara de gato a ocultar seu rosto. Se ele me tocar, eu desmaiarei. Não posso usar magia de resistência novamente, ou ficarei sem fluxo para correr.
Tento me debater, mas o urso é muito mais forte, e não consigo me desvencilhar. Revogo a minha transformação. É humilhante, mas eu preciso suplicar.
— Por favor, me deixe, eu...
— Não é nossa escolha, nem sua — contesta o gigantesco urso.
— Socorro! Alguém me ajude!
— Tola.
É o fim. Este é o mais longe que eu consegui chegar... Minha visão, até então avermelhada, volta ao normal. E o impulso bestial se esvai. O que eu fiz? Eu matei um lumen?
Caída no chão e com os olhos voltados ao céu, vislumbro as folhas das árvores gigantes e vaga-lumes prateados balançarem e dançarem no ritmo do vento. Eu sou tão fraca, não conseguirei te alcançar, Lin...
Percebo um objeto marrom cruzar o local e impactar contra o rosto do urso, o que produz um som de pano rasgado. Aquilo estoura e libera uma nuvem de pequenas folhas que inundam o ambiente.
Agora consigo perceber que o objeto não passava de mochila marrom e pequena.
— Ahchooo! — espirra o urso, e ele me solta.
Folhas de ceconte? Se não fosse meu desespero, é certo que pareceria engraçado uma besta desse tamanho ser atormentada por pequenas folhas.
Sinto algo sinistro. Viro meu rosto e vejo uma estrutura que se assemelha a raízes de arvores negras ondulantes: É uma maldição.
Olho para a origem das trevas e vejo um homem alto, com roupas verdes e marrons que corre em nossa direção em uma velocidade surpreendente.
— Não se envolva — diz o lumen com máscara de gato, ao passo que faz um sinal com a mão e indica para o estranho parar. — Monstro...
Antes de terminar sua fala, o humano investe e dá um golpe com seu ombro contra o urso, este que rola a vários metros de distância e impacta contra o tronco de uma árvore gigante.
Monstro? Por que eles o chamam assim?
O lumen tenta me tocar, mas a mão do caçador o segura antes. O soldado mascarado pronuncia olha para o estranho e diz: — Somnum.
Nada acontece! O caçador não demonstra receber qualquer efeito da magia. Como ele resistiu? Não o vi recitar qualquer magia.
— Não sabia que os Olhos de Khan atacavam suas mulheres no meio da mata — diz o caçador, em nossa própria língua.
— Temos ordens do Grande Khan para levá-la até ele. Desrespeitará o acordo, caçador? — indaga o lumen com máscara de gato.
— Ahchooo! — Espirra uma... raposa? — Carambolas, Gris! Essas folhas me deixam com uma comichão. Ai! Ai! Ai! — Ela fala em linguagem imperial, na medida que rola pelo chão. — Da próxima vez me avise antes.
— Desculpe, Alienor. O urso atacou aquela... Professor, ela está bem? — diz um garoto de cabelos cinzas. Ele também fala na linguagem comum.
— Não se aproximem — adverte a besta em forma de urso. — Isso é assunto de Ticandar.
— Ele também fala! — aponta o garoto.
— Garotos, fiquem aí. Não se movam e não digam mais nada — diz o amaldiçoado, ao passo que se levanta e complementa sua fala em nossa língua. — Esta lumen é nossa guia. Eu a contratei para nos guiar até Ticandar. Ela está sob minha proteção até lá.
— Você insulta nossa inteligência com essas mentiras, caçador — responde o urso, que acaba de se recompor. — Ela não tem permissão para sair de Ticandar, e você interfere em assuntos de Estado aqui. Os anciões não farão vista grossa para isso, nem mesmo para você.
— Então, eu mesmo garantirei que ela retorne à Ticandar. Parece justo? Eu mesmo levarei esta garota até seus senhores.
— Você o quê? — Droga, eu pensei que ele me ajudaria, mas está com eles.
Tento me soltar, entretanto o caçador agarra meu pulso e não larga. Ele é tão forte quanto um usuário de criação especialista em fortalecimento.
Sinto o fluxo se mover ao redor do urso, como uma brisa suave. Ele fecha seus olhos e reflete por alguns instantes. É quando revoga sua transformação e retorna à forma de um soldado com máscara de carcaju.
— Tudo bem, Val Lefar — diz o lumen com máscara de carcaju. — Você a levará até Ticandar, entretanto nós dois os escoltaremos.
Eles o chamam de Val Lefar, mas esse nome é estranho, é um nome para assustar crianças.
— Por mim tudo bem — responde o caçador, depois olha para mim e complementa. — Vamos, você é minha guia. Mostre-me o caminho.
— Você viu, Alienor. O lumen também se transforma em uma besta falante — cochicha o menino de cabelos cinzas.
— Sim! Eu queria ter uma voz assustadora assim também. Hehehe — a raposa responde e balança a cabeça em afirmação.
Noto algo peculiar no garoto, pois o fluxo do ambiente parece ser repelido por ele, ou melhor, parece ser evitado por algo que ele leva em seu peito. Além disso, até mesmo a maldição do caçador parece evitá-lo.
Já a raposa parece ser uma humana transformada. Ela deve ser talentosa, pois consegue falar fluentemente, mesmo nessa forma.
Que grupo estranho. Será que fora da Floresta de Prata todos são esquisitos assim? Que saco, depois de tudo, quem me impede de fugir é um forasteiro humano.
— Tsk... Certo, não tenho muitas escolhas. Eu vou com vocês — digo a eles.
Crack! Crack! Escuto sons de galhos de árvores se contorcerem.
— Hm!? Ahhh! — grita o menino de cabelo cinza.
Galhos agarraram o pé do garoto, o qual agora é arrastado para o meio da orla interior da floresta.
— Ahhhh! — ele grita novamente por socorro.
— Vamos, precisamos encontrá-lo — diz o amaldiçoado.
Os lumens trocam olhares e abaixam a cabeça. Um deles desabafa: — Que dia longo.
Ele não solta meu pulso por nada. Neste ponto, meu braço está todo dolorido e dormente. Já pensei em diversas formas de tentar escapar, entretanto eu tenho a sensação de que não conseguirei.
Creio que seja por conta clima de temor que os dois lumens têm em relação a ele. Ambos são Olhos de Khan, muito poderosos, mas estão com medo de um humano qualquer.
— Mais rastros — aponta o caçador. — Ele foi arrastado para essa direção. Vamos, ou não sobrará nada do menino.
— Que saco! — exclama a raposa. — Vocês poderiam falar minha língua, por favor?
Eu poderia fazê-la compreender a nossa fala, mas preciso guardar fluxo para tentar fugir. Também não me agrada a maneira dessa boca-suja falar.
— Eu disse para ficar quieta, Alienor — reforça o caçador.
— Tá bom. Humpf!
— Os rastros acabam ali, naquela árvore — indica o amaldiçoado.
De fato, até eu percebo. Ele foi arrastado e sumiu na frente da árvore. É gigantesca, com cerca de oito metros de diâmetro.
O caçador me segura com sua mão direita. Então, com a esquerda, ele aponta os quatro dedos em direção ao tronco da árvore e a golpeia. Seus dedos afundam sob tronco.
Então, ele arranca a casca e um pedaço da árvore, o que revela um interior oco. Entretanto, o mais estranho é que dentro dela há um garoto sentado no chão, o de cabelos cinzas.
O menino está calmo, mas com lágrimas em seus olhos. Sem se levantar, ele vira o rosto para o caçador e diz: — Dessa vez... era uma dríade. — Sua voz é embargada por choro.
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