Volume 1

Capítulo 12: Desenterrando o Que Passou

Já longe de sua casa, Novah olhou para o seu redor e percebeu que nunca realmente havia visto a cidade em que morava por mais de sete anos. Ela estava ciente que sua vizinhança era pobre e todas as pessoas daquela região, ou estavam doentes, ou estavam com algum grau de desnutrição. Mas agora vendo com seus próprios olhos o impacto era ainda maior. 

Shiem, percebendo que Novah estava impressionada com a visão triste de sua própria região, tenta confortá-la ao mesmo tempo em que tenta puxar assunto. 

– Hããã… Vocês fizeram a diferença aqui!

– Hum… – Murmurou Novah, ainda focada na tristeza ao seu redor.

A resposta de sua bem feitora deixou bem claro para Shiem que ela não estava disposta a conversar no momento, o que o deixou um pouco sem ação. 

No entanto, Shiem lembrava o quão desolador foi a visão de todas aquelas pessoas, que passavam por situação ainda pior que a dele, condições tão aterradoras, que até mesmo o mais indiferente dos espectadores pararia para ter empatia por aqueles pobres moribundos das ruínas. 

Ao mesmo tempo, ele também lembrava o quão reconfortante foi encontrar alguém para lhe estender a mão em um momento em que nem mesmo a mais tola das esperanças ousaria se levantar diante de tal opressor ambiente. 

Assim, Shiem se vê obrigado a insistir na conversa, tentando abrir os olhos de Novah para a importância de seus atos naquela região.

– … Hãããã… Muitas pessoas teriam morrido de fome ou doentes se não fossem por vocês!

– ... E será que pra essas pessoas... morrer seria uma coisa tão ruim assim? – Respondeu Novah com ar de sarcasmo e pesar.

Shiem ouviu a resposta de Novah e baixou sua cabeça, contemplativo pelas palavras fortes que recebeu, mas logo em seguida olhou ao seu redor. E o que ele viu foi aquela família que brincava entre as ruínas próximas a porta da mansão de Paragor. O que o fez abrir sua mente, e ver além de toda aquela tristeza, ver pessoas lutando para manter o mínimo de esperança que ainda lhes restavam. Pessoas que, apesar de tudo, ainda estavam lutando por um dia em que não iriam mais passar fome ou sede, um dia em que realmente seriam felizes em todos os seus momentos. 

Entendendo isso, Shiem respondeu a Novah já sem medo e muito confiante.

– Todos os que foram até sua porta queriam viver! Eles não sabiam se era mais fácil viver ou morrer! mas sabiam que ainda não estavam prontos para desistir! E vocês acreditando ou não… trouxeram mais uma chance dessas pessoas não desistirem!

Novah parou de prestar atenção ao seu redor e olhou para Shiem impressionada, já que, pela primeira vez, aquele homem-cão havia dito algo com confiança, algo que seria a possível resposta para esse questionamento que a invadia desde o momento em que pode ver com seus próprios olhos o sofrimento alheio que a permeava.

E no momento em que Novah estava prestes a responder seu aliado, um tremor de terra moderado se inicia na região, deixando os dois, e todos os que estavam ali, em alerta. 

Inúmeras pessoas saiam de suas casas, temendo que as ruínas improvisadas de moradia não resistissem ao mover trepidante do solo, ficando em meio a via principal, esperando do que mais de pior poderia acontecer na região. No entanto, logo o tremor cessou, e os moradores, ainda impressionados, continuavam para fora de suas casas, na expectativa que esse tremor repentino realmente houvesse terminado por completo. 

Novah, olhando a comoção causada pelo estranho tremor de terra, falou para Shiem.

– Já passou por isso antes garoto-cachorro?

–... É Shiem! E não que eu lembre… – Respondeu Shiem.

– Pois é! Mas já é a segunda vez só essa semana. – Falou Novah.

– Então isso acontece muito por aqui? – Perguntou Shiem.

– Não! Não acontece não! – Respondeu Novah – Esses terremotos chegaram junto com você!

Shiem, acreditando que Novah o estava culpando pelos estranhos tremores que ocorriam, começou a olhar para o lado com tristeza, imaginando se realmente poderia ser o culpado por tal catástrofe recorrente. No entanto, Novah percebeu o pesar de Shiem e, do jeito dela, tentou confortá-lo da mesmo forma que ele havia tentado antes.

–... Não é culpa sua! – Falou Novah – Mas pode ter alguma ligação com sua chegada aqui e com sua falta de memória… Pelo menos é uma possibilidade.

As palavras de Novah deixaram Shiem um pouco melhor. Mas ele continuava a imaginar, com preocupação, se não seria o culpado dessa mazela que ameaçava essa região.

Todavia, voltando alguns minutos antes do tremor sentido por Novah e Shiem. É possível ver uma figura feminina que andava pela estrada onde havia ocorrido a batalha entre os seres híbridos e os aventureiros, até então, pouco conhecidos na região. Essa figura andava calmamente, olhando para o chão como quem busca um item interessante que se perdeu em seu caminho. E esse olhar calmo e atento se seguiu até que, finalmente, ela encontra o que tanto estava procurando. 

– … É bem aqui! – Falou a mulher desconhecida.

E bem ali, onde a mulher havia dito que estava seu objetivo, ela fecha os seus olhos e se abaixa, colocando uma de suas mãos no chão, aparentemente tentando sentir algo que estava além de seus sentidos. E tendo a oportunidade de experimentar o que essa mulher via em seu aparente transe, logo percebemos que sua mente viajava por dentro da rocha e da terra que constituía todo o solo desta região. E foi assim, até que finalmente ela encontrou o que procurava. 

O Leão, que parecia ter sido esmagado pelo chão que o havia engolido, na verdade estava encapsulado abaixo da terra, sem quase nenhum ferimento. E vendo o estado de inércia que ele apresentava, a mente extra-sensorial da mulher focou na testa do leão, onde o símbolo brilhante de um triângulo em espiral ainda se fazia aparente. 

Com a mão que estava no chão, a mulher empurrou o solo, onde o mesmo sede, reverberando exatamente na testa do leão, fazendo uma estaca se formar, e cortando sua testa, resultando no desaparecimento da marca misteriosa que o leão carregava. Com isso, imediatamente o Leão acorda de seu sono forçado com uma profunda inspiração desesperada. Percebendo o despertar de seu objetivo, a mulher agora põe suas duas mãos ao chão, e em um simples movimento ela abre a terra até a parte onde o leão estava encapsulado, causando tremores de terra sentidos principalmente nas regiões mais ao redor da floresta onde estavam. 

Agora livre de seu túmulo de pedra, o Leão olhou para cima na esperança de ver algo que o ajude a entender como ele chegou a essa situação tão desconfortável. Mas ele ainda estava atordoado, e essa condição só o permitia enxergar borrões e sombras em qualquer direção em que se olhava. 

– Olhe pra cá criatura! – Falou a mulher que o salvou.

–... QUEM É VOCÊ? – Gritou o Leão enquanto buscava a direção exata de onde vinha aquela voz. 

– Eu!? Eu sou quem te resguarda desde o momento em que te vi! Sou quem viu valor em você e veio te tirar das entranhas da morte! Eu!?... Eu sou ...sua nova tutora!

Enquanto a mulher falava, a visão do Leão começava a voltar ao normal. Tornando assim possível que ele conseguisse ver a fonte da voz que se dirigia a ele com tanta intimidade. 

Era uma mulher de cabelos verdes e curtos, com um manto branco cheio de adornos verdes e vermelhos. Porém o que mais chamava a atenção do leão eram aqueles olhos constantemente vidrados e tão claros que beiravam o branco. 

– … O QUE VOCÊ QUER? – Gritou novamente o leão.

– Eu quero ver a sua evolução! Desenvolver o seu potencial! Até você se tornar o que você realmente é! Um agente do destino! Agindo de acordo com a ordem vigente no universo! Assim seremos iguais! E por consequência… teremos objetivos iguais! – Falou a mulher.

 – RESPONDA NA MINHA LINGUA MULHER! - Reclamou o leão.

– Quero trocar uma ajuda por outra! – Respondeu a mulher. – Você deve estar confuso agora! E provavelmente eu não estou ajudando não é!?

– NÃO SEI COMO VOCÊ PODE ME AJUDAR! E TAMBÉM NÃO SEI SE QUERO AJUDA-LA! – Gritava o Leão.

– Você se lembra de quem é, Criatura!? – Perguntou a mulher.

O Leão ficou quieto, tentando encontrar em suas lembranças uma resposta para a pergunta feita pela mulher estranha.

– Então é isso criatura! Eu te dou seu passado esquecido e você me ajuda a conseguir meu futuro merecido! – Propõe a mulher.

– EU SOU EU! E É TUDO QUE PRECISO LEMBRAR! E NÃO QUERO DEVER NADA A NINGUÉM! MUITO MENOS A UMA MULHER ESTRANHA QUE QUER QUE EU A SIRVA! - Respondeu o Leão.

– Se quisesse cobrar uma dívida, cobraria a da sua vida que acabei de salvar! – Falou a mulher de maneira firme. – Mas não é esse tipo de lealdade que busco aqui agora! Eu busco um igual! Alguém para servir junto comigo aos desígnios da ordem natural! E que tenha a mesma vontade que eu de corrigir os erros que consomem a perfeição deste mundo!... Mas se o que você disse é verdade… e realmente isso é tudo que você precisa… Então é aqui que nos separamos! 

O Leão se cala e olha fixamente para os olhos daquela mulher. Ela não titubiava, não se mexia e não cedia sua aura de determinação. Assim, vendo que suas palavras eram realmente sinceras e dignas de confiança, o leão sentiu uma grande vontade de realmente descobrir o que essa estranha mulher queria dizer com tantas palavras difíceis. 

– Não sei se somos iguais, estranha!... Mas com certeza somos sinceros!... E agora vou ser sincero com você! Desde que acordei… eu sinto que estou devendo uma facada em alguém! E no começo pensei que fosse em você!... Mas você falou tanto que deu pra perceber que… seja lá o que for que eu sinto… o que eu sinto é antigo… e não é com você!... Sendo assim… o acordo é o seguinte… Eu vou com você, e você me ajuda com a facada, e você vem comigo, e eu te ajudo a ter o que você merece! Mesmo que seja outra facada!

– Então está selado! – Falou a mulher enquanto movimenta uma das mãos para levantar o solo do grande buraco, trazendo assim o leão até a superfície novamente. 

Agora, realmente de frente um para o outro, a mulher andou até onde o leão estava e estendeu sua mão, aparentando querer comprimentá-lo de forma amigável. Porém, o Leão, sem deixar de olhar nos olhos da mulher, ficou desconfiado com tamanha demonstração de intimidade em tão pouco tempo. Com tudo, mesmo assim, ele retribui, tentando cumprimentar a mulher apertando a mão estendida dela. Nesse momento, a mulher ao invés de apertar sua mão, ela o segura em seu antebraço, surpreendendo ao leão, que já muda seu semblante para um aspecto mais intimidador.

– Faça o mesmo! – Disse a mulher

O Leão, sempre lendo as intenções da mulher através de seus olhos, não viu nenhuma intenção agressiva vinda dessa figura tão singular, que parecia realmente querer cumprir com o que havia prometido. E novamente, ele cedeu, a segurando também em seu antebraço com a mão que ele estendeu para cumprimentá-la. Tudo estava bem, os dois eram verdadeiros em suas convicções, e não havia motivo para que não ajudassem um ao outro naquele momento. 

Lentamente uma luz esverdeada começou a brilhar nos antebraços dos dois. Os mesmos antebraços que estavam sendo apertados em sinal de acordo, nesse instante brilhavam com uma luz que emanava cumplicidade e calma. O Leão não se sentiu alarmado, já que não experimentava dor nem temor. E quando a luz finalmente cessou, a mulher soltou o leão, que fez o mesmo, tendo em vista que, o que estava acontecendo entre eles, já havia acabado. 

– Agora somos um realmente. – Explicou a mulher.

– Do que que você tá falando, mulher? – Perguntou o leão em tom ríspido.

Mas ela não respondeu nada. Somente puxou uma faca de sua cintura e fez um pequeno corte na palma de sua mão direita. 

O Leão logo sentiu uma queimação repentina em sua própria mão, o que o fez olhar rapidamente para a mesma, vendo assim, que o exato corte que ela havia feito em si mesma com aquela faca, agora também estava desenhado perfeitamente em sua mão esquerda. 

– Agora quando olharmos um para o outro, veremos a nós mesmos! – falou a mulher – Refletidos em um espelho de destinos… Agora… Nós temos um caminho comum!... E nossos usurpadores nos conhecerão novamente.

O leão não ficou satisfeito em saber que tem uma ligação desse gênero com a mulher, e logo a questiona sobre esse fato tão incômodo para ele.

– Não quero esse tipo de bruxaria no meu corpo, mulher! Desfaça agora!

Ela, sempre com um semblante de calma e atenção, respondeu o Leão sem alterar sua voz.

– Eu não posso!

O leão totalmente contrariado cerrou seus punhos e falou novamente para mulher.

– Faça! Ou seu destino termina aqui nas minhas mãos!

Mesmo ameaçada, a mulher não se abalou, e respondeu com a mesma calma que sempre demonstrou.

– Eu não posso!... Mas você pode!

O leão fica confuso. E um pouco mais calmo perguntou novamente a mulher.

– Do que você tá falando bruxa!?

– Olhe para o braço selado com nossa aliança! – Responde a mulher.

O leão olhou, e viu um símbolo de luz fraca no exato local onde a mulher o havia segurado para selar seu acordo. E antes de ter tempo de pensar sobre o que viu, o leão foi novamente respondido pela mulher.

– Esse símbolo representa nosso acordo!… Eu o fiz… mas só você pode desfazer!... Porém, uma vez desfeito...Não poderá ser refeito!... Então, quando achar que não terá mais nenhuma vantagem em ser um em dois comigo… tudo que você tem que fazer é cobrir esse símbolo com sua mão e dizer! Desisto!... E nossos caminhos nunca mais se cruzarão.

O leão olhou por um tempo para esse símbolo, o examinando bem, para ter certeza de que não era algum tipo de truque, ou alguma maldição que aquela mulher poderia ter vinculado ao seu ser. Mas o leão continua a não ver mentiras em suas palavras, e nem temor em suas feições. Tudo isso fez com que ele chegasse a uma conclusão.

– Espero que você esteja falando a verdade bruxa! Porquê não vou pensar duas vezes antes de arrancar sua espinha se descobrir que você está me enrolando, ouviu!?

– Ótimo! – Exclamou a mulher – Então meu nome é Géa.

O leão desviou seu olhar de Géa e endureceu seu rosto, demonstrando ao mesmo tempo incômodo, preocupação e raiva. 

– Eu sei da sua falta de memória. – falou Géa – Mas já pensei em algo para resolver isso. E no caminho vamos fazer sua iniciação! Quero começar logo a cultivar seu Kengen.

– Meu o que!? – Perguntou o Leão intrigado.

– Você vai descobrir. – Respondeu Géa.

Voltando a Novah e Shiem. Os dois ainda estavam se questionando sobre a origem dos pequenos tremores que estavam ocorrendo de maneira incomum na região. 

– Já são dois só hoje… – Falou Novah.

– Será que vai piorar? – Perguntou Shiem.

– … Humm… Não sei… Pode ser só um tremor incomum mesmo… Mas… A verdade é que pode ser qualquer coisa – Respondeu Novah 

– Quer investigar? – Perguntou Novamente Shiem.

– … Não sei… Mas o pior nem é isso… – Falou Novah

– É o que então? – Insiste em perguntar Shiem.

– É que isso começa a acontecer justamente quando vou deixar o velho sozinho. – Respondeu Novah

Shiem percebeu a aparência preocupada de sua companhia, que olhava na direção da mansão em ruínas com receio. Já que a distância era grande e a visão de sua casa já não era mais possível. 

– Você quer voltar e esperar as coisas acalmarem – Falou Shiem.

– Quero! – Respondeu Novah – Mas não posso!... Nós vamos demorar meses pra chegar. E se ficarmos... Vamos acabar pegando o inverno em Lyli ao invés de em Titônia. Aí realmente vamos nos ferrar. 

–... Hum entendi... – Respondeu Shiem – Vocês realmente planejaram a viagem toda né!?

– Sim!… Por sete anos!... – Respondeu Novah.

Dessa forma, Novah e Shiem continuaram em direção à saída da cidade onde eles foram acolhidos até este momento. Momento derradeiro que marca o início de virada na vida dos dois novos companheiros de viagem, e agora também de destino. 

 

 



Comentários