Indulgência Brasileira

Autor(a): Excamosh


Volume 1

Capítulo 1: Demonstração

Meus pais mandaram uma mensagem dias atrás. Quando eu toquei no meu pulso para projetá-la, desacreditei. O conteúdo dela era um convite para um evento presencial da Tino, empresa do meu inventor de alterações genéticas preferidas, Palatino. 

A ficha caiu apenas ao vê-lo de perto.

— Mustang e Haika, obrigado por virem. Hoje teremos um anúncio bastante especial nessa floresta. — Palatino cumprimentou meus pais e, depois, olhou para baixo. — Você deve ser Maverick.

— Meu Deus! É real, é real… — falei. Meu coração quase saiu pela boca.

— Calma. Não temos como fazer um órgão aqui. — Ele se agachou e sorriu com a cabeça na diagonal.
Seu objetivo foi me acalmar, porém não funcionou. Tremi mais ainda ao ver seus olhos violetas na altura dos meus vermelhos. 

Cara a cara, seus detalhes brilhavam como o sol. Suas pupilas eram perfeitas, seu cabelo ruivo partido ao meio era incrível, seu terno dourado era elegante e a sua pele modificada para um tom parecido com a neve era sensacional, tudo tão perfeito para alguém tão jovem.

Algum dia, talvez eu possa deixar minha pele igual a dele. Por enquanto, eu me contentava com uma tonalidade entre as tulipas negras do meu pai e os lírios brancos da mãe.

— Terno bonito! — Palatino se levantou após acariciar meu coque castanho. — Apesar dele estar um pouco largo, combinou com você, pequeno samurai pinguim. 

— Valeu. Meus pais disseram que hoje seria um dia e tanto. — Pisquei para ele, ousando: — Tem como dar um spoiler?

— Segredos são segredos, filho. — Mustang me tocou no ombro. — Também estou ansioso pra saber o que ele apresentará, mas podemos esperar.

— Agradeço a compreensão. Me despeço pra não atrasar a surpresa — falou o diano, líder da nossa população.

O sol de nosso povo saiu de perto de mim, porém, no meio de um espaço aberto cercado de árvores, atrações infantis, mesas de funcionários com suas respectivas famílias, uma montanha-russa de emoções me aguardava.

Para começar a festa, pedi permissão ao meu pai. Ele concordou desde que eu retornasse a nossa mesa sem nenhum dente quebrado.

Faltava apenas a aprovação de Haika. Um beijo na bochecha dela e garanti o acesso livre.

Empolgado, tirei meu sapato e fiquei apenas de meia.

Meu objetivo era seguir até um amontado de crianças, pois elas mexiam na melhor atração do local: um arrozfálo.

Cheguei perto da multidão e ri ao ver um catarrento gritar quando o animal mugiu.

O medo dele era entendível. Um bubalino com espigas de arroz nas costas fazia até mesmo os peões de rodeio falsificarem atestado médico para não chegarem perto dele, um pirracento não ficaria para trás.

— Bicho feio! Morra como aqueles do outro lado. — O medroso correu aos braços do pai, chorando.

Ao contrário dele, eu adorava os arrozfálos, tanto que abri espaço entre as crianças para acariciar os pelos do bicho.

Embora deixassem uma coceira na mão, as espigas eram fofas tal qual a grama artificial onde eu pisava. Também eram cheirosos como o perfume de lavanda de Palatino.

Já que só eu tive coragem de tocar o animal, ele se virou para me encarar. De imediato, balançou a cabeça para tentar entender a situação.

— Calma, amigão — falei ao tocar nos chifres curvados dele.

— Quem é esse doido? — cochicharam um grupo de catarrentos.

— Outra vez… — comuniquei ao animal. — Que tal dar um apavoro neles?

O arrozfálo se agachou para eu montar nas costas dele. Infelizmente, não consegui ter minha montaria.

Um segurança pegou no meu braço, pois seria perigoso uma criança sair perfurada dali, mesmo com kits axolotes prontos para serem usados.

Olhei com rosto fechado para ele.

Se eu não pôde interagir com a melhor atração, todas as outras perderam a graça, então retornei aos meus pais para esperar o anúncio de Palatino.

Como a pressa era inimiga da perfeição e, como o meu diano era perfeito, ele demorou um pouco para subir no palco, mas logo pegou uma gravata-microfone.

Ele apertou o equipamento para cima e um zumbido veio de todas as árvores.

— Bom dia, meus queridos funcionários e funcionárias — Palatino disse as palavras introdutórias, mas, quando abriu a boca para continuar o discurso, veio para a borda do palco e se sentou, olhando para cada pessoa presente.

— Mãe, ele endoidou? — questionei pregado na cadeira. Haika apenas mandou eu ficar quieto.

— EU PODERIA. SIM, EU PODERIA SEGUIR O ROTEIRO DA MINHA EQUIPE — berrou, diminuindo o tom em seguida — mas eu não consigo. Enquanto meus cidadãos ficam inseguros com a existência daquelas criaturas, eu não posso adiar nenhum segundo a salvação de Paraíso, nossa querida cidade.

— Vixe, acho que ele tá chorando. — Estendi o pescoço para frente. Os meus novos olhos entenderam o recado e mudaram para a visão de águia, aproximando a imagem do diano. Confirmei a dúvida.

— Você aí! — O diano apontou para uma funcionária próxima. — Venha cá. Qual foi a última vez que você perdeu um parente por causa das criaturas fora do Paraíso?

— Semana passada. — A mulher se levantou da cadeira a fim de dirigir as palavras a todos. — Não foi um parente…, mas um amigo meu me informou que o primo do vizinho do tio do sobrinho do neto do irmão dele morreu por uma das criaturas na terça-feira.

— Estão vendo? Essas criaturas são pragas para nossa sociedade. Para apagar essa desgraça, inventei o próximo passo para a humanidade. — Palatino estralou os dedos e drones vieram do alto, descarregando algo coberto de cortinas no palco. — Apresento-lhes a bomba de pragas.

Os panos foram puxados e eu subi encima da cadeira para ver melhor.

Dentro de uma estrutura em forma de cilindro, uma esfera escarlate, como todos os olhos focados nela, girava e se debatia como um som automotivo do século XXI. Estava viva.

Enquanto eu tentava descobrir do que se tratava, a guarda pessoal do diano, formada pelos ternos de prata, abria espaço entre as mesas dos convidados.

— Tragam a coisa! — anunciou Palatino.

Com a ordem, os seguranças foram para dentro da mata e, depois do vento passar diversas vezes pela minha orelha, gritos de desespero me fizeram agarrar o braço do pai.

Surgindo da vegetação, uma jaula era trazida por cima dos ombros dos guardas e, dentro dela, uma das criaturas que assolavam Paraíso tentava quebrar as barras.

Todos os funcionários da Tino colocaram suas mãos sobre as bocas.

Eu apenas observava o ser atrás das pernas do pai.

Nunca vi um deles de perto. Até então, eu apenas ouvia histórias sobre como eram amedrontadores e, acima de tudo, a praga da sociedade.

Pela primeira vez, me encontrei com um biodemônio.

Nem minha mãe, uma geneticista renomada, conseguiu conter o espanto ao soltar um grito. Talvez ela tenha visto corpos piores do que aquilo, mas nada como aquilo.

O monstro tinha uma forma humanoide, mas sua pele era cheia de cicatrizes, cortes, hematomas e veias a mostra que pareciam arder ainda mais pela sua cor de pimenta. Seus detalhes doíam os meus olhos.

O pior era seus chifres retos, ou melhor, um chifre quebrado jorrando sangue e o outro remendando por um pedaço de sua bermuda.

Por mais doído que fosse olhar para ele, eu não conseguia virar o rosto, pois o biodemônio parecia pedir ajuda. Na verdade, ele pedia.

— Me ajude… por favor… — balbuciou o ser, perto da mesa onde estávamos.

— Ele fala? — perguntou a mesma criança do arrozfálo.

— Alguém… me ajude! — falava, mas saia seco.

— Vejam como é amedrontador! — avisou Palatino, batendo o pé no chão. — Ainda por cima está clamando por ajuda. Um ser que provocou as próprias dores pode ser perdoado? É claro que não.

A jaula foi posta no palco enquanto eu passava a mão na região dos olhos. O espetáculo começaria em breve.

Faltava apenas o diano liberar a bomba de pragas.

Depois de mais discurso, Palatino saiu do palco.

Sem ninguém por perto, o teto do cilindro desabrochava enquanto o biodemônio chutava a jaula. Todos os funcionários estavam antenados em suas atitudes.

Uma risada saída das árvores e, pronto, aquela esfera escarlate se moveu para cima. Ela se modulou para uma rosa.

Aos poucos, ela flutuou acima da jaula do prisioneiro. Parecia ser lenta, me enganei, pois ela estava apenas tomando sol antes de acordar.

Crás!

A flor foi direto ao chão, rodeando o prisioneiro. Consequentemente, a bomba de pragas abraçou o biodemônio após se fechar em um espiral.

Uma hora, ele estava de pé, em outra, agonizava no chão.

A cena durou minutos.

Antes de acabar, a rosa entrou em seus orifícios.

A sua pele vermelha derreteu após alguns segundos. Ele ainda continuava a se debater, mas apenas até seus músculos aparecerem.

Em um ato final, estendeu a mão. Quando os dedos perderam a força, tinha sobrado apenas ossos de um ser que acabei de conhecer.

A bomba de pragas retornou ao seu cilindro.

“Por quê?”, pensei, olhando para minha mãe e pai. Ambos sem sorrisos nos rostos.

— Vamos embora, Haika. — Mustang pegou o meu braço.

— Em casa faremos um bolo de chocolate. Tá bom, filho? — ela avisou.

— Tá.

Dei passos para fora da mesa, mas não deu para continuar.

— Senhor — relatou uma voz saindo das árvores — estamos sendo atacados de todos os lados.

— Porra! — xingou Palatino. — Desliguem o áudio e evacuem os funcionários. Se os biodemônios matarem um olho ver… — cortou a conexão.



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