Murphy Brasileira

Autor(a): Otavio Ramos


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 7: Kiyoko Miyazaki

Na manhã seguinte, Ella se despediu do Vendedor Viajante, pegou sua mochila e retomou sua jornada para Vigon, determinada a encontrar o coliseu.

Fortemente escondido nas entranhas da cidade subterrânea, somente um verdadeiro explorador conseguiria encontrá-lo. A garota percorria entre as pontes dispostas pela cidade que conectavam becos e vielas.

Enquanto caminhava, admirava as pichações e vegetações que cobriam o local. Ella achava bela a forma que a natureza conseguia florescer mesmo na atmosfera sombria de Vigon.

Na sua frente, se encontrava um dos vários elevadores espalhados pela cidade. O mesmo estava desativado.

Ella estava prestes a partir, mas no último instante, lembrou-se que carregava consigo o cristal de Neofásio. Rapidamente, o apanhou da sua mochila.

Sem saber como usá-lo nessa situação, apenas o aproximou dos botões do elevador.

Partículas de eletricidade emergiram do cristal e saltaram em direção ao elevador, fazendo-o ligar.

A luz dele ascendeu e um som desconhecido ecoou. Foi um tanto quanto satisfatório para Ella.

”Boa, parece que é só aproximar para transferir energia então. É bom saber. Agora, como essa coisa funciona?“ pensou Ella, guardando o cristal na mochila e abrindo a grade que cobria a porta do elevador.

Dentro do pequeno cubículo que era o interior do elevador, Ella seguiu sua intuição e pressionou a seta para baixo. O elevador começou a descer lentamente, atingindo o solo após um minuto.

As portas se abriram.

Diante dela, uma garota de cabelos negros com mechas brancas a encarava, seus olhos estavam olhos arregalados ao ver o elevador ativado.

Ella se assustou e, instintivamente, sacou seu revólver, apontando para a garota.

— Uau, como você fez isso? — perguntou a garota, com a arma apontada para sua cabeça.

— Fica longe de mim. Não quero ter que atirar em você. Você está armada? — indagou Ella, rispidamente.

— Qual é, relaxa. Só fiz uma pergunta… tenho somente a minha espada comigo — respondeu ela, recuando lentamente com as mãos levantadas.

— Você é uma Caçadora?

— Sou. Era, na real — disse ela, dando uma risada amigável. — Teoricamente, a CCV não existe mais, então acho que essa profissão também deixou de desistir.

— Qual o seu nome? — perguntou Ella, ainda com a arma apontada para a cabeça dela.

— Kiyoko, mas você pode me chamar de Koko. E você? — disse a garota, estendendo sua mão gentilmente para Ella.

Ella relutou em dizer seu nome, conforme vivia em Rubra, mais desconfiava de todos.

No entanto, sentiu em Kiyoko uma energia positiva, aparentava ser uma pessoa boa. Decidiu dar um voto de confiança a ela.

— Ella. Prazer — respondeu, apertando a mão de Kiyoko e guardando sua Colt Python em seu coldre.

— Então, Ella, o que te traz à Vigon e como ligou esse elevador? Sempre tentei ligar eles pra poupar a caminhada, mas nunca consegui — perguntou Kiyoko, animada.

Ella aprendeu que não podia revelar sua verdadeira identidade a qualquer um e nem quais eram seus reais objetivos. Isso já havia a metido numa encrenca.

— Estou tentando chegar no coliseu, mas está meio complicado. — Ella riu. — E o elevador, eu ativei usando um cristal de Neofásio.

— O coliseu tá meio longe, mas posso te levar pra lá. Eu estava indo pra lá mesmo. Preciso chegar na superfície.

— Sério? O que você vai fazer lá em cima? — perguntou Ella, caminhando ao lado de Kiyoko.

— Eu sou da UCC. Vim para Vigon em uma missão de reconhecimento, mas já terminei. Você deve conhecer essa comunidade, né?

— Ah, sim. O Vendedor Viajante me contou sobre ela. É para lá que estou indo. Você deve conhecer ele, não é?

— Quem não conhece ele. — Kiyoko riu amigavelmente. — Admito ter uma leve paixonite por ele.

— Eu também gosto dele. Ele é um bom homem.

Juntas, caminharam e conversaram por horas e horas. Era uma experiência única para Ella, nunca teve uma amiga da sua idade.

Poder conversar sobre assuntos que gostava com uma garota que a compreendia era algo maravilhoso para ela.

No final do dia, improvisaram um acampamento dentro de uma casa abandonada, era um tanto quanto confortável.

Deitaram e adormeceram, estavam realmente exaustas.

No entanto, não sabiam que, no andar de cima, um homem cochilava.

Se tratava do Vendedor Viajante, por algum motivo, ele estava as seguindo durante todo o trajeto. Com sua presença oculta, nenhuma das duas o notou.

No dia seguinte teriam que descer ainda mais a fundo nas profundezas de Vigon, uma boa noite de sono seria necessário para todos.

Despertaram logo pela manhã e saíram da casa. Ella surpreendeu Kiyoko com uma pergunta incomum.

— Ei, por que os seus olhos são assim? — perguntou Ella, inocentemente, olhando estranhamente para os olhos dela.

— Assim como? O que você quer dizer? — Kiyoko estranhou sua pergunta.

— É que… seus olhos são meio puxados, sabe? Eu nunca vi olhos como os seus.

Kiyoko riu amigavelmente.

— Eu sou asiática. Nasci em Tóquio, no Japão, você sabe onde fica, não é? Por isso que meus olhos são assim. —Kiyoko sorriu.

— Japão? Onde fica isso?

— Fica em uma ilha aqui perto de Rubra. Você nunca estudou geografia, Ella?

— Eu só sei ler e escrever — disse Ella, um tanto envergonhada. — E também sei matemática básica. Eu passei minha infância treinando, então não tive muito tempo para estudar.

— Bom, pessoas de ascendência asiática geralmente têm olhos puxados como os meus, entendeu?

— Ah, entendi. Seus olhos são realmente bem bonitos — respondeu Ella, com um sorriso caloroso

— Você acha? Ninguém nunca disse que meus olhos são bonitos — disse Kiyoko, constrangida. — Os seus também são lindos, eu adoraria ter olhos verdes.

— Ei, Kiyoko, você disse que nasceu no Japão, como você veio parar aqui em Rubra?

— Ah, é uma longa história. — Kiyoko riu.

— Eu adoro histórias longas.

Kiyoko decidiu compartilhar sua história de vida com Ella enquanto caminhavam juntas.

— Tudo começou quando eu era uma criança — iniciou Kiyoko, com sua voz suave, transportando Ella para uma memória distante.

Kiyoko tinha um irmão mais velho chamado Iori, junto a ele, dois amigos que ela considerava como irmãos; Takashi e Yumi. A brincadeira favorita deles era duelar com espadas de madeiras.

Ela nunca foi muito forte, tampouco habilidosa com sua vontade, mas Takashi... ele era o melhor, melhor até mesmo que os adultos.

Na geração passada, o sonho da maioria das crianças era o de se tornar um caçador.

Devido a forte propaganda, acabou se tornando algo cultural, uma profissão que todas crianças almejavam, assim como os astronautas em gerações passadas.

Eles moravam em uma aldeia remota do Japão, nunca tiveram boas condições, portanto, suas perspectivas de vida, assim como a maioria das crianças pobres, se restringiam a se tornarem caçadores do Vazio.

O que ela não imaginava, é que tudo mudaria tão rápido.

Kiyoko se lembrava como se fosse ontem, estava na varanda de sua casa jogando cartas com seu irmão; seus pais dormiam nesse horário, era aproximadamente meia noite e meia.

Tudo estava tranquilo, uma noite iluminada como qualquer outra. Até que repentinamente, gritos ecoaram no sul da aldeia.

Os dois se assustaram e correram para dentro de casa imediatamente, no entanto, foram surpreendidos por uma criatura do Vazio despedaçando uma das paredes violentamente.

Seus pais subitamente acordaram e se depararam com aquele monstro horrendo, com olhos brancos que brilhavam em um vazio ocular.

Eram humildes agricultores, possuíam vontades, mas tinham um conhecimento quase nulo sobre. Foram mortos brutalmente na frente deles.

— Espera, vamos descer por aqui. Pelo que me lembro o coliseu fica seguindo o caminho leste — orientou Kiyoko.

— Ok, ok. Continua a história, quero saber o que aconteceu — respondeu Ella, curiosa.

— Onde eu parei?… É mesmo — prosseguiu a contar a história.

Quando seus pais morreram, saíram correndo para fora de casa imediatamente.

Iori pegou Kiyoko pela mão e a guiou.

A pobre garota, ainda uma criança, estava paralisada de medo.

A aldeia estava um caos, diversas criaturas do Vazio perseguindo todos os moradores, sangue por todos os lados, gritos ecoando de todos os cantos e cadáveres espalhados com suas tripas para fora.

Era uma cena abominável, uma criança jamais deveria ver isso.

Kiyoko falava com uma voz trêmula ao relembrar este trauma.

Os dois começaram a serem perseguidos por uma criatura do Vazio, corriam desesperadamente pelas suas vidas enquanto Kiyoko chorava constantemente.

Correram até que seus fôlegos se esgotassem.

Kiyoko, com as pernas exaustas de tanto correr, tropeçou em uma pedra.

A expressão de medo ficou escancarada no rosto de Iori. Ele sabia que se voltasse para buscar sua irmã, ele morreria. Mas de forma alguma ele iria abandonar sua irmã.

A garota viu o corpo de seu irmão se inclinando em sua direção e fechou seus olhos. Ela não queria ver sua fatídica morte, só queria que tudo aquilo acabasse o mais rápido possível.

Nesse momento, os gritos de dor da criatura ecoaram por todo o local.

— Só por curiosidade — interrompeu Ella — Você sabe qual criatura era?

— Era um devorador noturno, ele era enorme, quase do tamanho de um urso. Voltando onde eu estava...

Ao ouvir os gritos de dor da criatura, ela se virou rapidamente. Um homem alto com uma espada havia cortado ela ao meio.

Era como se Deus tivesse ouvido suas orações quando mais precisava e tivesse mandado um caçador para salvá-la.

O caçador pegou ela e seu irmão em seus braços e correu em direção à entrada da aldeia.

Ele perguntou aos dois se sabiam onde havia mais vivos, sem hesitar, responderam a localização da casa do Takashi e Yumi.

Chegando na casa, se depararam com Yumi escondida dentro de um armário, com uma faca.

Ela tentou acertar o caçador, mas foi desarmada numa velocidade imperceptível. Quando viu que seus amigos estavam juntos a ele, se acalmou.

Juntos do caçador, foram procurar o Takashi.

Não muito longe da casa, lá estava ele, encurralado por um predador de almas. Aquele era facilmente o maior que eles já viram em suas vidas.

O caçador com um ataque célere como um raio, decepou a cabeça da criatura.

A ameaça chegou ao fim, todas as criaturas foram mortas pelo caçador e algumas fugiram, mas eles estavam a salvo.

Possivelmente eles foram os únicos sobreviventes da aldeia, não tinham mais família e nem para onde ir. Mesmo que vivos, estavam desolados.

Mas o homem foi o herói que eles precisavam.

Ele se apresentou como Shan, deixou claro que cuidaria deles daquele dia em diante.

A razão pelo qual ele fez isso era desconhecida. Talvez tenha se sentido culpado por não ter chegado a tempo, mas um fato é: se ele quisesse, poderia deixá-los em um orfanato, mas em um gesto de bondade, ele os adotou.

As crianças caminharam muito até chegar na casa do caçador, ele morava no topo de uma montanha, no entanto, era uma caminhada recompensadora, a vista era magnífica.

Sua casa era cheia de espadas e utensílios de artes marciais. Kiyoko perguntou a ele o que eram aquelas coisas.

Ele contou que era um professor de artes marciais e, também, um Águia aposentado.

Kiyoko, naquele momento, cansada de ser fraca, de perder para os seus medos, só queria se tornar mais forte.

Se ela fosse forte, poderia ter protegido os seus pais e a sua aldeia.

Sua fraqueza, uma hora ou outra, seria a razão de sua morte.

Ela clamou para que Shan o treinasse e todos os seus irmãos fizeram o mesmo. Um sorriso acolhedor surgiu em seu rosto.

Assim seguiu a vida deles, treinaram durante cinco anos e raramente saíam da montanha. Tiveram Shan como pai e ele os teve como seus filhos.

Com o tempo, ficaram muitos fortes, principalmente Takashi e Yumi, os dois tinham o que chamavam de “Dom dos Caçadores”.

— Desculpa te interromper de novo — disse Ella, constrangida — Mas o que é o Dom dos Caçadores? O Vendedor Viajante falou que eu tenho isso, mas não faço ideia do que seja.

— O Dom dos Caçadores se consiste em um conjunto de habilidades inata. As que eu conheço são: percepção aguçada, visão além do alcance, inteligência intuitiva e pensamento rápido. Essas capacidades são inerentes àqueles que se tornam caçadores, embora existem exceções de indivíduos que as possuem naturalmente. Você por exemplo, deve ser um desses.

— Ah, agora faz sentido. Pode continuar a história então, acho que agora começa a melhor parte — brincou Ella.

— Espera. Estou sentindo a presença de sete pessoas, vem cá. — Kiyoko puxou a mão de Ella.

Kiyoko e Ella se aproximaram furtivamente da borda de uma plataforma e avistaram um grupo de sete homens mascarados.

Seis deles usavam máscaras de caveira branca, enquanto o sétimo se diferenciava com uma máscara de caveira dourada. Estavam no solo da cidade.

Todos estavam fortemente armados, quem eram e o que estavam fazendo naquelas terras desoladas?



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