Volume 1

Capítulo 27: Quinta Página do Diário

— POR QUE SE RECUSA A MORRER?

Aquela frase entrou pelos meus ouvidos e percorreu pelo meu corpo. Eu pensei em uma resposta, mas não encontrei, fiquei em silêncio por um tempo, mas meu coração não conseguiu suportar, eu explodi de raiva.

— Porque eu odeio tudo isso, tudo dá errado para mim, eu só queria viver em paz, eu odeio todo mundo, eu me odeio, eu odeio… Eu odeio…

— QUANTO ÓDIO! — Disse a voz grave.

— Me tira desse lugar! — Eu gritei para a voz na minha cabeça.

— SÓ AQUELES QUE TEM O CORAÇÃO PURO PODEM SAIR DESSE LUGAR…

— EU SOU PURO! — Gritei ainda mais alto — Puro ódio!

A voz desapareceu, achei então que a alucinação tinha acabado, resolvi continuar em frente, com muito esforço fiquei em pé novamente, a névoa começou a sumir, como se abrisse um caminho, aquilo era muito estranho, mas segui por ali.

Por mais que fosse muito suspeito, eu já tinha tacado o foda-se mesmo, em minha mente me convenci dizendo:

— O que é um peido pra quem já tá cagado?

Lentamente saí pulando em uma perna só, seguindo o espaço que se abria na névoa, em alguns minutos eu já não via a parede do abismo, e quanto mais no centro da grande falha, mais baixa a névoa flutuava, se de repente ela me envolvesse, seria meu fim.

Ao longe eu pude ver uma sombra imóvel, não conseguia discernir o que era, nem o tamanho exato, ou a distância, pois, a névoa escura distorcia muito, além da névoa, era a única coisa que conseguia ver. Parecia um amontoado de pedras, ou uma escultura estranha.

O caminho que se abria parecia ir na direção exata daquilo, conforme eu lentamente avançava, a névoa se fechava atrás de mim, o movimento de abrir e fechar o caminho seguia o meu ritmo, então eu concluí que alguém estava controlando a névoa.

Finalmente tudo começou a clarear ao meu redor, a névoa dissipou em torno de mim e do amontoado de pedras. Então eu vi claramente, era um esqueleto gigantesco, os ossos estavam limpos, brancos, brilhando…

— OLÁ! — Disse novamente a voz da alucinação.

— Então eu ainda estou alucinando… — Resmunguei.

— NÃO… EU ESTOU MESMO FALANDO COM VOCÊ!

— Não me diga que uma pilha de ossos está falando comigo…

— EXATAMENTE ISSO!

— E como isso não seria uma alucinação?

Eu estava em um estado de fraqueza física e emocional, mesmo que fosse em uma alucinação, eu tinha alguém para conversar. Mesmo que esse alguém fosse um fóssil.

— PRECISO DA SUA AJUDA! — A voz ficou mais suave e compassada.

— E eu preciso sair daqui… — Debochei.

— POSSO TE AJUDAR! MAS VOCÊ TERÁ QUE ME AJUDAR…

— Pensei que só quem tem coração puro pode sair… — Eu engrossei a voz, imitando a da alucinação.

— MAS VOCÊ DISSE QUE TEM O CORAÇÃO PURO.

Parei um pouco, cocei o queixo, e decidi ajudar, se ele pudesse me tirar dali, é claro.

— E como eu posso ajudar alguém tão grande e… Morto?

— VOCÊ PRECISA REUNIR MINHAS PARTES…

— Opa… Para aí! Você já tá querendo muito… Tem muito osso espalhado… E são grandes…

— PRIMEIRO OUÇA! DEPOIS DECIDA SE PODE AJUDAR

Achei melhor ficar calado, ele podia me matar usando a névoa a hora que quisesse.

— MINHA EXISTÊNCIA FOI DIVIDIDA EM 3! CORPO, MENTE E ESPÍRITO, SE VOCÊ REUNIR AS 3 PARTES PODEREI EXISTIR NOVAMENTE!

— E como eu faço isso?

Uma esfera de osso rolou em minha direção vindo do esqueleto gigante, peguei, era pequena, parecia uma bolinha de gude.

— MANTENHA ISSO COM VOCÊ ATÉ ENCONTRAR O QUE FALTA…

A voz começou a ficar cada vez mais fraca e distante, eu ainda não tinha decidido se aceitaria ou não ajudar, mas senti que precisava fazer algo para sair desse lugar, mesmo que aquele fosse o próprio demônio, ainda seria válido, se fosse capaz de me salvar.

Apertei a bolinha de osso e pus no bolso, mas a curiosidade me dominava.

— Quem é você?

— ACHO QUE ESSA DEVERIA TER SIDO A PRIMEIRA PERGUNTA!

Mesmo que eu concordasse, achei melhor dar uma de durão e fingir que não me importava, saber com quem se negocia é muito importante, eu tentaria lembrar disso dali em diante.

— EU SOU UMA EXISTÊNCIA MUITO ANTIGA, EU VI A AURORA DO UNIVERSO E O SURGIMENTO DOS DEUSES, EU VI OS HUMANOS VAGAREM PELA TERRA COMO ANIMAIS SELVAGENS E EVOLUÍREM, VI OS REIS TRAVANDO GUERRAS, A LOUCURA DOS PODEROSOS E A FÚRIA DOS IMORTAIS…

Confesso que não esperava uma resposta tão louca, mas ele continuou.

— EU VIM PRIMEIRO, E SEREI O ÚLTIMO A PARTIR, NÃO TENHO NOME, MAS ME CHAMAM DE MUITA COISA!

— E quem fez isso com você?

— ORA! QUEM MAIS TERIA SIDO SENÃO OS DEUSES! ELES TEMEM AQUILO QUE NÃO CONHECEM… AQUILO QUE NÃO CONTROLAM… AQUILO QUE PODE SER MAIOR DO QUE ELES!

A voz ficava cada vez mais fraca e distante, a ponto de eu quase não conseguir mais ouvir, acho que ele também notou, pois começou a se despedir.

— NOSSO ENCONTRO DE HOJE ESTÁ ACABANDO! ATÉ A PRÓXIMA! ME ENCONTRE! NÃO TENHA PRESSA, EU TE GUIAREI…

A névoa se abriu ao meu lado, formando um corredor, eu entendi que deveria seguir por ali, assim como cheguei, saí.

Depois de muito pular em um pé só, vi uma escadaria de pedra que parecia ser a saída do abismo, mas a névoa começou a se fechar, por mais que eu acelerasse o salto, o corredor começou a estreitar.

Tudo escureceu, senti a névoa envolver meu corpo, não consegui prender a respiração muito tempo, senti meus pulmões queimarem, minha consciência foi se esvaindo, e dessa vez não era alucinação, a voz soou na minha mente uma última vez.

— DESCULPA! EU…….. PARA VOCÊ…….. BOA SORTE!

Desmaiei. De novo.

Não sei quanto tempo se passou, mas quando acordei estava sob o sol forte, enquanto duas sombras me encaravam, uma, mais baixinha, disse com uma voz infantil:

— Senhora! Senhora! Ele está vivo…

A outra respondeu com uma voz feminina, porém adulta.

— Claro Surii, eu não o teria resgatado se ele não estivesse vivo.



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