Volume 1

Capítulo 30: Sexta Página do Diário

Acordei com uma aguda dor de cabeça, estava sob o sol forte, duas sombras me encaravam, uma, mais baixinha, disse com uma voz infantil:

— Senhora! Senhora! Ele está vivo…

A outra respondeu com uma voz feminina, porém adulta.

— Claro Surii, eu não o teria resgatado se ele não estivesse vivo.

Com certa dificuldade me sentei no chão, olhando bem para aquelas duas figuras femininas na minha frente. A primeira era pequena, magra, usava trapos, estava bastante suja, tinha cabelos curtos despenteados, a cor castanho claro estava misturada com muita poeira, e seus olhos tinham um brilho amarelo.

Notei que a ponta da flecha no meu ombro havia sido retirada e tinham feito um curativo no local, na mina perna quebrada também havia um pedaço da madeira mantendo o osso fraturado no local.

— Oi! Eu sou Shuri… Quer dizer, Surii! Agora sou uma pessoa do Leste, e esta é minha nova mãe, Miraa.

Olhei para a segunda pessoa, era alta, forte, não era musculosa mas passava uma sensação de segurança, sua pele escura e cabelos pretos longos, junto com e expressão tranquila e a postura elegante passavam a impressão de grandiosidade.

— Eu sou Miraa, Senhora do Leste. — Disse ela com uma voz adulta, porém gentil.

Tudo em Miraa me acalmava, era um exemplo de figura materna.

— E-Eu sou André… Digo… Deco…

Senti dificuldade em falar, lembrei que inalei muita daquela névoa escura que disseram ser corrosiva, então já era uma sorte eu estar vivo. Miraa vendo minha condição, afagou meus cabelos, enquanto dizia:

— Não se esforce para falar, você sofreu um pouco de desgaste. Mas agora tudo vai ficar bem, eu tirei você de lá antes que a névoa causasse algo permanente. Deco hein? Sabia que no leste “deco” é o nome da cor que se forma no céu quando o sol está nascendo? Aquela mistura de azul e laranja… É um belo nome.

Em seguida ela me pegou nos braços e me carregou até uma carruagem, vi que na porta tinha um emblema de uma montanha e um sol. Não era uma carruagem simples, eu já havia visto algumas parecidas com aquela, e sempre pertenciam a pessoas importantes, e se contar com a quantidade de soldados ao redor, com certeza aquela mulher era mesmo importante.

Peraí Ela disse Senhora do Leste? Ela é a “Rainha do Leste”?

Miraa me olhou com um sorriso, e disse:

— Acho que você finalmente entendeu quem eu sou!

Com toda certeza a minha cara de espanto com dois minutos de atraso denunciou que eu demorei a entender. Miraa me pôs no assento macio da carruagem, sentando ao meu lado, pôs minha cabeça sobre sua perna, eu não sabia como devia reagir, então apenas fiquei na minha e torci para que não fosse apenas mais uma das minhas alucinações.

— Como você foi parar lá em baixo? — A voz de Surii veio aos meus ouvidos com um flash de memórias ruins.

Tudo de ruim que tinha acontecido recentemente passou na minha cabeça, desde o castelo até eu desmaiar após inalar a névoa.

— Eu tava na festa de um ano da chegada dos “heróis” nesse mundo, mas eu fui expulso, e me jogaram naquele buraco…

— Quanto tempo você passou até te jogarem ali? — Miraa interrompeu minha explicação com uma breve pergunta.

— A noite inteira, quando me jogaram estava nascendo o sol… — Respondi.

— Então você passou todo esse tempo lá? — Miraa passou a mão nos meus cabelos.

— Como assim? — Eu fiquei assustado — Quanto tempo?

— A chegado dos heróis fez um ano há 22 dias, isso significa que você passou 21 dias preso na Grande Falha.

— Quê? — Eu não pude acreditar, para mim tinha se passado menos de um dia.

— Uau! — Surii exclamou com felicidade — Ele deve ser forte mesmo! Ninguém consegue passar tanto tempo lá em baixo! Pelo menos foi o que um dos guardas falou…

— É verdade! — Concordou Miraa — Isso apenas demonstra a sua força de vontade, eu acredito que você será um grande guerreiro no futuro. Mas por enquanto deve descansar.

Miraa me deu um pouco de água e algumas frutas frescas para comer, eu estava precisando muito. A viagem durou pouco menos de um dia, a velocidade da carruagem era alta e constante.

Miraa explicou durante a viagem, para Surii e eu, o funcionamento político e militar do Reino do Leste, era bastante simples, e muito diferente do Reino de Prata. O primeiro ponto importante era que não existiam nobres, todas as pessoas podiam ascender ou decair socialmente dependendo de suas capacidades em determinado cargo.

Assim, as posições políticas e profissões não eram hereditárias, a liberdade financeira existia, mas o governo promovia uma espécie de controle de renda para evitar acúmulos de renda e disparidades sociais. Eu nem sabia o que era disparidade.

O principal produto de exportação do Reino do Leste eram produtos agrícolas, frutas, carne e outros derivados de origem animal e vegetal. Frente aos outros reinos, o Leste ainda estava atrasado por estar vivendo da agricultura.

Quem quisesse um pedaço de terra para produzir deveria se cadastrar no setor de administração local, não há terra a venda, esta pertence a todos e é gerenciada pelo governo, que distribui para pessoas interessadas em produzir, e retira a posse das pessoas que não produzem o suficiente em sua área. Viva la revolucíon. Reforma Agrária wins.

Mesmo sendo a Senhora do Leste, Miraa não era exatamente uma rainha, já que o Reino do Leste não seguia um sistema tradicional de monarquia, ela também não tinha filhos biológicos, que era um dos requisitos dos governantes do Leste, porém adotou diversas crianças, e Surii era a mais recente. Pelo que entendi, Surii se chamava Shuri, e havia sido vendida pela sua própria família quando era muito nova, seu comprador era um ladrão, que se aproveitava de seu tamanho pequeno para fazê-la entrar nas casa para roubar coisas de valor.

Há duas semanas o ladrão que criava Surii foi capturado junto com a garota, ambos seriam condenados à forca, mas Miraa foi pessoalmente resgatar a garota para adota-la. Esta seria sua décima criança.

— Se você quiser pode ser o décimo primeiro…

Miraa disse essa frase me olhando nos olhos com uma expressão maternal. Eu não resisti, chorei.

Surii sorria, mas tinha lágrimas nos olhos.

— Seremos irmãos…

Foi um momento legal, eu senti que teria outra família. Mas não conseguia deixar de pensar nos ratos.

Como estariam meus amigos que me ajudaram por um ano inteiro?

Em breve Olho de Peixe teria que sair da toca dos ratos, e como os outros ficariam? Ele contava comigo para ajudar os mais novos.

Minhas preocupações foram interrompidas por Miraa, ela pôs minha cabeça para fora pela janela da carruagem para que eu visse uma das cenas mais lindas da minha vida.

Uma planície se estendia ao nosso redor, totalmente recoberta de cultivos e pessoas trabalhando na terra, e ao longe, no horizonte, quase no infinito, havia uma única montanha, cuja cor escura contrastava com a cor clara das plantas carregadas de espigas maduras.

— Seja bem-vindo ao Reino do Leste

Eu senti naquele momento que poderia me tornar forte, e um dia iria voltar para o Reino de Prata e me vingar.

Eu jurei para mim mesmo, que não deixaria que ninguém pisasse em mim, nunca mais.

A partir desse momento eu não serei mais André, meu nome agora é Deco, filho do Leste.



Comentários