Volume 2

Capítulo 89: Décima Oitava Página do Diário

Voltei apressado até o quarto da pousada para avisar a Shiduu onde estavam os escravos que procurávamos, queria tirá-los de lá o mais rápido possível. Minha ansiedade transbordava, e minhas pernas se moviam o mais rápido que podiam.

Ao chegar na pousada fui logo contando a Shiduu onde estavam as carroças, expliquei tudo direitinho para que ela não duvidasse de mim. Desde como pensei em lugares onde poderiam estar, até como os prisioneiros reagiram ao me ver.

Shiduu ouviu tudo com atenção e em seguida pediu que a levasse até o local, ela sugeriu que Surii e Gouroo ficassem no quarto nos esperando, se fôssemos os quatro poderíamos chamar atenção indevida, e isso era exatamente o que precisávamos evitar nesse momento.

Como alguém mais velha e, consequentemente, mais experiente nesse tipo de missão, Shiduu avaliou pontos que eu havia deixado passar. Segundo ela, as corroças haviam sido ordenadas de frente para o portão, de forma que se precisassem retirar os escravos com pressa, não perderiam tempo fazendo as manobras.

Ela também apontou para a rua, que era pavimentada, bem larga e pouco movimentada, dava de passar duas carroças ao mesmo tempo, o que aceleraria o o fluxo de saída, isso demonstrava que o local não fora escolhido a toa, talvez até fosse costumeiramente utilizado como ponto de descanso dos traficantes de escravos.

Quanto à forma como os escravos se comportavam, como se já tivessem desistido de viver, Shiduu comentou que poderia ser efeito de alguma droga anestésica, que misturada na ração daquelas pobres pessoas, lhes impunha em um estado quase vegetativo.

Com base nisso nós começamos a formular o nosso plano.

Primeiro passo era conseguir provar que os mercadores da caravana estavam envolvidos, mas como as carroças estavam separadas do restante da caravana, seria muito difícil. Então teríamos que esperar, e isso era angustiante.

O segundo passo era impedir que a caravana conseguisse levar os escravos para fora do Leste, e essa seria uma das tarefas mais difíceis. Já estávamos muito perto da tríplice fonteira que separava o Reino Leste, do Reino do Norte e do Reino de Prata.

O terceiro passo era conseguir informações que levasse a toda organização criminosa que lucrava com o tráfico de escravos, e como escravidão era proibida no Leste, nenhum deles poderia se safar. Mas se não conseguíssemos pegar algum, e este fugisse para o Reino de Prata, não poderíamos fazer mais nada, pois no vizinho ao oeste a escravidão era comum e legalizada.

Shiduu deixou dois dos guardas vigiando o local, era importante saber se eles tentariam fazer algo inesperado. E enquanto fazíamos os nossos preparativos, não podíamos ficar na frente daquela mansão, isso chamaria atenção.

Mas os mercadores devem ter percebido algo, pois não demorou muito até que um dos guardas chegasse na pousada, quase sem fôlego, anunciando que as carroças estavam sendo movidas. Pela descrição dele eu percebi que a avaliação da Shiduu sobre a rota de fuga estava correta.

— Então vamos seguir o plano reserva. — Shiduu disse levemente alterada.

— E temos um plano reserva? — Questionei.

— Agora temos. — Ela forçou um sorriso em minha direção — Acabei de imaginar ele.

Reunimos com os nossos guardas, e Shiduu começou a explicar o seu novo plano.

— Vamos fazer um resgate na estrada, pessoal. Então se preparem para situações que precisaremos improvisar — Ela disse — O desfiladeiro que se forma entre a Grande Falha e a Cordilheira Escaldante é a fronteira entre os dois reinos, se não pudermos pará-los antes de atravessarem, já era.

— Tá certo, sem pressão… — Comentei.

— Com certeza os guardas dos traficantes ficaram mais na retaguarda, para evitar que os sigamos, para figir desse jeito já devem saber que estamos na cola deles. — Shiduu continuou.

— Isso é algo que nós dois podemos resolver, mana. — Gouroo deu um olhar confiante.

— Mandaremos os nossos guardas darem a volta e esperarem na fronteira, mas para isso precisamos atrasar a caravana em pelo menos duas horas. Então enquanto eu e Gouroo enfrentamos os guardas inimigos, Deco e Surii devem alcançar e sabotar as carrroças.

— Deixa conosco! — Surii levantou o polegar.

— Isso aí! — Imitei o gesto de Surii.

— Então tudo que devemos fazer é atacr e salvar os escravos à força? — Um dos guardas perguntou — Achei que teríamos mais dificuldades.

— Não contem com a vitória ainda. — Shiduu reclamou — Nosso alvo é um grupo altamente preparado para esse tipo de situação.

E assim saímos. Montamos nos cavalos que troxemos puxando as carroças de mercadorias, e partimos. Devo admitir que não era muito adepto à cavalos, mas naquela situação eu não me daria o luxo de reclamar.

Cavalgamos por quase meia hora por uma estrada sinuosa e cheia de declives, o que era desfavorável ao ritmo das nossas montarias. Chegando na primeira bifurcação os guardas se se pararam de nós, seguimos apenas os quatro irmãos no encalço dos traficantes de escravos.

A formação do ambiente começava a ficar mais complicada conforme adiantávamos em direção ao norte, Shiddu havia comentado que estávamos próximo às cordilheiras, então fazia sentido. Então ouvimos sons à frente, finalmente alcançamos o nosso alvo.

As carroças estavam pouco mais de um quilômetro à frente, mas entre nós e elas haviam uma dúzia de guardas usando armaduras de couraça, típica vestimenta de mercenários. Shiduu tinha razão, os guardas ficariam na retaguarda para impedir da alcançarmos as carroças.

Para piorar a situação o terreno não era favorável a tentar dar a volta, cheio de abismos, ribanceiras, pedregulhos e umas formações rochosas muito estranhas. U lugar muito adequado para uma emboscada.

— Uma emboscada. — Shiduu disse calmamente, descendo de sua montaria e sacando um par de adagas curvadas — Eu já esperava por isso.

Mais mercenários começaram a sair de trás das formações rochosas ao nosso redor, estávamos encurralados. Eram pouco mais de vinte, ao todo, mas não parei pra contar, manter o foco no movimento deles era mais importante.

Gouroo sacou três flechas e pôs uma na corda do arco, prendendo as duas outras nos dentes. Nunca tinha visto ninguém fazer aquilo, mas achei legal e intimidante.

— Parem aqui e ninguém precisa morrer! — Bradou um dos guardas inimigos.

Aquilo também foi intimidante.

— Saiam da frente ou vou matá-los! — Shiduu respondeu.

Beleza, todo mundo ali era bom em intimidação, talvez aprender uma coisa ou outra pudesse ser útil no futuro.

— Nos matar? — O mercenário riu — O que uma garotinha frágil sabe sobre matar?

— A vida humana é uma coisa frágil, matar era fácil, o difícil era ter a coragem para tal ato. — Shiduu disse olhando para os que nos rodeavam — Se não tiverem coragem de ver alguém morrendo, sugiro que fechem os olhos, crianças.

Eu não fechei os olhos, pelo contrário, observei bem cada movimento de Shiduu. Ela deixou o corpo cair lentamente, e quando estava quase paralela ao solo desapareceu. Não perdi tempo procurando, sabia onde ela apareceria. Quando olhei para o mercenário tagarela vi sua cabeça desprendendo do corpo, e atrás dele estava Shiduu com umolhar frio.

Achei aquilo lindo, por mais que ela houvesse acabado de matar alguém, eu não me importava, a vida daquele homem não tinha significado algum para mim.

— Deco, agora! — Shiduu anunciou.

Não prdi um segundo sequer, nem olhei para trás, sabia que ela ficaria bem. Cabia a mim garantir que o restante do plano funcionasse.

Corri como se a minha própria vida dependesse de alcançar aquelas carroças, fazendo minhas pernas se moverem a uma velocidade que eu nem acreditava ser possível. O terreno irregular que começava a se formar na base da cordilheira não era suficiente para reduzir a minha velocidade.

Com o tempo a fadiga começou a se espalhar no meu corpo, mas ainda não podia me dar ao luxo de parar para descansar, haviam pessoas dependendo de mim para serem livres.

Mesmo assim não foi o suficiente, quando finalmente avistei a última carroça do comboio, ela já estava terminando de atravessar o desfiladeiro.

As carroças da caravana que levavam os escravos conseguiram atravessar a fronteira, era tarde demais. Nesse ponto, nada do que fizemos foi suficiente, não pudemos salvar aquelas pessoas, e agora elas teriam que trabalhar contra a sua vontade para manter os luxos de algum nobre gordo e fedorento.

Minhas pernas finalmente cederam ao cansaço, caí sobre os joelhos e gritei de dor e ódio. Sentia lágrimas descerem pelo meu rosto, minhas mãos tremiam devido à minha fraqueza. Fiquei lá, de joelhos neque chão pedregoso, vendo as carroças lentamente sumirem por entre as formações rochosas.

Aquilo me fez mal, eu senti ódio de mim mesmo, fui fraco e não consegui salvar aquelas pessoas, fui lento e não consegui alcançá-las. Mas eu não deixaria barato, se pelo menos pudesse pegar os culpados e fazê-los pagar por isso, outras pessoas não teriam que ser escravizadas.



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