Volume 13
Capítulo 5: O Brilho do Luar
A posição de reserva em Harutari era exatamente isso — apenas uma posição de reserva — e a situação ali estava bastante caótica.
Quando Shin ouviu esse relatório, ainda irritado apesar de ter derrubado o Morpho, sua frustração aumentou ainda mais.
Os soldados que haviam fugido se recusavam a voltar ao combate, e as unidades que retornavam se recusavam a cooperar.
As tropas de Vargus, que haviam chegado primeiro à posição, não confiavam nos soldados fugitivos, dizendo que os desgraçados que abandonaram suas famílias para morrer não mereciam receber suprimentos.
Todas essas exigências eram inadequadas para a situação, e Shin já estava farto daquilo tudo.
Ele ouviu um soldado que, sem motivo algum, conectou-se à frequência de emergência e murmurou a palavra monstros no rádio.
— …Se nós somos monstros
Então o que isso faz de vocês?
Vocês só sabem exibir sua fraqueza, mostrar sua estupidez, e ainda pioram a situação para todos.
Não passam de um estorvo. Seríamos melhores sem vocês.
Sua habilidade detectou outro Morpho. Estava causando problemas também.
Destruí-lo seria uma boa ideia.
— Todas as unidades. Vamos atrás da nossa próxima presa. Sigam-me.
Além do mais, aqueles soldados de infantaria que só sabiam xingar os outros não os seguiriam mesmo.
Então, que continuassem odiando.
Se eles pudessem se reunir em número, como a República fez, seria uma coisa. Mas como minoria, não poderiam fazer muita coisa. Nem mesmo o ódio deles valia alguma coisa.
Vocês são todos fracos demais.
— Sério mesmo.
Um impacto atingiu seu flanco desprotegido. Foi um ataque surpresa completo, vindo de uma posição onde nem o radar nem sua habilidade haviam detectado inimigos — e até mesmo Shin foi lançado para longe. Sacudindo a cabeça e olhando ao redor, ele avistou a Marca Pessoal de um lobisomem — o Wehrwolf de Raiden.
Ao perceber que acabara de levar um chute, Shin sentiu o sangue subir à cabeça.
— O que você tá?!
— O que você pensa que está fazendo?! Depois de ter chegado tão longe, agora acha que é Deus, é isso?!
Raiden havia aumentado um pouco a taxa de Ressonância e gritou com toda a força dos pulmões, fazendo os ouvidos de Shin zumbirem. Com Shin silenciado pela intensidade da raiva, Raiden continuou:
— Só porque as pessoas te chamam de Undertaker ou de rei, não significa que você tem que deixar isso subir à cabeça! Na prática, você se deprime e recua por qualquer coisa. Para de pensar como um covarde!
— Você...
Mas ele se lembrou das palavras que havia dito com a própria voz:
— Um Undertaker fraco que não consegue lutar sozinho...
— Ninguém aqui te vê mais como um Undertaker ou um ás. Se quer saber, você é mais como um cachorro idiota que não obedece ordens, não aprende nunca, e tem tanto poder sobrando que só causa problemas pros outros! Então para de sair por aí espalhando sua burrice, seu imbecil!
— Você continua exibindo sua estupidez e causando problemas.
Eu... eu também tô fazendo isso...
Ao ver que Shin havia congelado, Raiden de repente lhe lançou um sorriso tenso.
— Por isso, um cachorro como você precisa do dono segurando a coleira o tempo todo. Vai lá —
A voz dela o alcançou.
Ela já estava conectada ao Para-RAID havia algum tempo, mas ele estava tão tomado pela raiva e indignação que não havia percebido — aquela voz única, que soava como um sino de parata.
— Sua Majestade está esperando.
Ela disse, com um sorriso:
— Vejo que dessa vez está me ouvindo, Undertaker. A coronel Vladilena Milizé está reassumindo suas funções de comando. Desculpa por ter feito você se preocupar, Shin.
O Dispositivo RAID dela poderia ter sido confiscado e, mesmo que não tivesse sido, suas configurações poderiam ter sido apagadas ou, pelo menos, os dados com as tags dos comandantes, capitães e oficiais do Pacote de Ataque poderiam ter sido removidos. Ficava claro que a lealdade de Zashya ao entregá-lo era significativa.
O próprio Dispositivo RAID não teria sido confiscado, já que Zashya precisava dele para manter contato com Vika e seu regimento. Ela insistira em levar uma unidade reserva mesmo já tendo várias sobressalentes — Jonas talvez tenha percebido isso, mas, diante da situação nas linhas de frente, não fez nada a respeito. Talvez tenha sentido que deixar a Rainha de parata do Pacote de Ataque inativa numa hora daquelas não era uma opção.
Jonas, naquele momento, atuava como oficial de estado-maior na frente ocidental, reunindo e analisando informações. Enquanto isso, Annette servia como ponto de contato para o grupo que permaneceu na base, e Zashya auxiliava no comando do regimento destacado do Reino Unido.
Lena ainda estava naquele quarto luxuoso nos alojamentos do QG militar, que já havia se tornado um posto de comando improvisado.
— Desculpa por ter feito você se preocupar, Shin. Mas, falando sério… você tá aguentando mesmo? — perguntou ela com uma risadinha.
Shin claramente estava por um fio. O exército da Federação estava desmoronando, e ele estava sendo arrastado junto.
— …Lena — murmurou ele, com a voz de uma criança que acabou de levar uma bronca.
As palavras dela o atingiram como um balde de água fria, trazendo-o de volta à realidade. Ao recobrar a consciência, ele percebeu o quão anormais tinham sido seus pensamentos até ali, e por isso se sentiu tão repreendido e amedrontado. Perguntou a si mesmo, com vergonha, o que estava fazendo… e ficou apavorado com a ideia de que Lena pudesse culpá-lo ou se decepcionar com ele por causa daquilo.
— Tudo bem, Shin. Eu não ficaria decepcionada com você por causa disso. Porque eu também errei. Cometi inúmeros erros. Achei que conhecia a realidade, que já havia experimentado tragédias e crueldades o suficiente para ser mais esperta que a maioria. E ainda assim, cometi erros. Muitos, muitos erros. E provavelmente vou tropeçar da mesma forma no futuro. Sou o tipo de tola que cai nos mesmos obstáculos todas as vezes. Então, mesmo que você tenha falhado de forma espetacular, eu não seria a pessoa a te julgar por isso. Você sabe o quanto dói cair sozinho, então não precisa que eu te culpe para se sentir mal por isso.
— Shin, você estava prestes a seguir para o próximo Morpho, certo?
Ela o sentiu se mover levemente. Está tudo bem, pensou Lena, e então continuou com tranquilidade.
A decisão dele de que aquilo precisava ser eliminado não estava errada em si.
— Sim, precisamos eliminar esse inimigo se quisermos garantir uma retirada segura. Mas... você acha que consegue derrotá-lo? Na sua opinião.
Com o número atual de tropas, a distribuição inimiga, a munição restante e o terreno... Ele tomou essa decisão considerando todos os fatores que um comandante deveria levar em conta?
Shin fechou os olhos por um momento e fez uma pausa. Lena lhe perguntou como líder do esquadrão, e ele percebeu corretamente a confiança implícita naquela pergunta.
— Nós conseguimos.
— ...Coronel Grethe. — Lena pediu aprovação, e sua superior assentiu.
— Vamos apoiar esse ataque também. Vá em frente. No entanto, antes disso... Capitão.
— Estou ciente. Nossa prioridade máxima é retornar para Rüstkammer — respondeu Shin, com o tom voltando à sua habitual calma afiada.
— Mas o Morpho é um obstáculo importante no caminho da 1ª Divisão Blindada de volta à base, então vamos eliminá-lo. Não se preocupe, eu já me acalmei.
Para evitar qualquer confusão desnecessária, a 1ª Divisão Blindada permaneceu sob o comando dos oficiais do estado-maior, com Lena assumindo apenas o comando do destacamento Spearhead. Como o destacamento foi formado por unidades próximas que haviam seguido Shin, sua cadeia de comando e filiações estavam uma bagunça. Enquanto ouvia a voz de Lena, que rapidamente reorganizava o destacamento, Shin soltou um leve suspiro… Pensar que ele havia deixado a cadeia de comando nesse estado.
— …Raiden, obrigado. Você me ajudou.
Ele não conseguia trocar as configurações do Para-RAID de Lena, então usou o rádio para lhe dizer isso.
— Pode apostar — Raiden zombou. — A Lena ia ser a responsável por te dar aquele chute, mas eu a impedi. Deveria me agradecer por isso também. Você deu sorte que fui eu quem te bateu, porque se tivesse sido idiota o suficiente para gritar com a Lena, teria caído em depressão no meio da batalha e não teria se recuperado nunca mais.
— …É.
Ao olhar para trás e refletir sobre sua própria conduta, ele se sentia assustado em admitir que realmente havia agido daquela forma. Os Eighty-Six, seus aliados — eles não eram tolos. Apenas eram fracos, impotentes, e considerados descartáveis. E foi justamente esse pensamento que originou a divisão que tanto o enfurecia. Ele havia cometido aquele erro básico e vergonhoso de simplificar demais as coisas, assumindo que as pessoas que ele marcava como “diferentes” eram burras. Uma justificativa inconsciente, que o fazia acreditar que estavam descartando pessoas para preservar a si mesmos — fazendo com que ele ignorasse a arrogância, a frieza e a mentalidade estreita da discriminação.
Mas essa tendência também existia dentro dele.
“Eles” era uma palavra tão ambígua. Permitiria a qualquer um descartar os outros, rotulando-os como maus, hostis e nocivos, tudo por terem a única característica que todos, exceto a si mesmo, possuíam — o fato de serem diferentes.
Sem nem perceber, Shin havia feito a mesma coisa que a República fazia ao rotulá-lo, junto com seus companheiros, como Eighty-Six — o ato de arrancar o nome e o rosto de uma pessoa.
Palavras mentem. Pessoas mentem. E ele — ele, não mais ninguém — mentia para si mesmo constantemente. Tentava encobrir seus lados fracos e vergonhosos, enquanto exibia sua natureza tola, intolerante e cruel como se fosse uma forma de justiça e amor.
— É isso mesmo. Eu sou… fraco, covarde e idiota.
Ele já havia dito isso sobre si mesmo uma vez, mas havia se esquecido. E, quando as coisas apertaram, foi tolo o suficiente para esquecer de novo.
Raiden riu.
— Parece que você voltou ao normal… O próximo não é só sua presa. Tachina ficou furiosa por você ter devorado aquele sozinha, e eu também fiquei puto. Concentre-se no reconhecimento, ouviu?
— É… Desculpa.
O que havia a quinze quilômetros à frente estava escondido além do horizonte quando visto do solo, mas de um ponto elevado, deveria ser possível enxergar. Por isso, os dois subiram os degraus do campanário de uma igreja nos arredores da cidade em ruínas, esperando ao menos vislumbrar Neunarkis de longe.
Era uma escadaria em espiral antiga, íngreme e desgastada. Yuuto sabia que certamente não haveria minas autopropulsadas emboscadas no alto de um campanário de uma igreja abandonada. Deixou que Citri — que quase tropeçava nos próprios pés — fosse na frente, mantendo-se pronto para segurá-la se algo acontecesse.
No fim, nenhuma das garotas conseguiu. Todas desejavam voltar para casa, acreditando que poderiam completar a jornada. Mas não foi possível. Se ao menos Citri pudesse aguentar mais um dia… Mas o destino não lhe daria esse tempo extra. Talvez ela devesse simplesmente ter desistido — mas não agora, não quando estava tão perto.
Era uma escada longa e íngreme. Yuuto conseguia subir sem muito esforço, mas Citri, já à beira do colapso, arfava tentando respirar. Quando parecia prestes a cair, Yuuto finalmente estendeu a mão para apoiá-la, mesmo sabendo que ela não queria isso.
— Quer que eu te carregue?
— Não. Quero andar — até o fim.
Mas, apesar disso, suas pernas já não conseguiam mais se mover. Então ele lhe ofereceu o ombro, apoiando seu peso. A escada era estreita, e mal havia espaço para que os dois ficassem lado a lado, mas seu corpo era tão leve que isso não foi um problema.
Enquanto lutava por ar, com os cabelos longos encharcados de suor apesar do frio, Citri subia, penosamente, um degrau de cada vez.
— …Ei, Yuuto.
Ela falou entre respirações ofegantes, a voz carregada de dor. Ela não queria envolver ninguém.
— Se eu disser para você voltar, desça correndo as escadas. Se chegar a esse ponto, já vai ser tarde demais para mim, então não diga nada e corra na mesma hora.
Não se envolva nisso. Ela estava tão terrivelmente sem tempo que precisava dizer aquilo. Yuuto apertou os lábios. Só podia torcer para que ela ao menos resistisse até o topo.
Enquanto tomava os medicamentos prescritos para afastar a fadiga e engolia as rações líquidas terrivelmente doces, que forneceriam o mínimo de fluidos e calorias de que precisava, Gilwiese se preparava para seguir até sua unidade reserva. Como pausa, aquilo era um desastre.
Sua unidade, exausta após inúmeras batalhas, precisava de manutenção, e a linha de frente não lhe dava tempo nem para reabastecer ou recarregar a munição. A recém-formada posição de reserva em Harutari estava sendo atacada pelos Legion de todas as direções, e as tropas os enfrentavam desesperadamente.
— Você não precisa ir para a próxima batalha, Princesa. Volte junto com o soldado ferido.
— …S-sim, Irmão. — Svenja não retrucou e apenas assentiu, com o rosto nitidamente exausto e os lábios vermelhos de tanto mordê-los.
Ela sabia que, dali em diante, só o atrasaria — e não tinha forças para insistir ou discutir.
O Mock Turtle de Gilwiese e os outros Vánagandrs de cor índigo foram rapidamente rebocados até a estação de manutenção para serem consertados, reabastecidos e limpos da lama que entupia suas juntas… Embora, a essa altura, ter a armadura suja fosse o menor dos problemas.
No entanto, o Vánagandr que ele embarcou em seguida era de um vermelho impecável, como se jamais tivesse visto combate. Seu brilho orgulhoso parecia deslocado e quase ofensivo naquela batalha perdida, fazendo os rostos dos soldados derrotados se contorcerem de desgosto ao vê-lo passar.
Seus sensores de áudio captaram insultos sendo lançados em sua direção. Malditos nobres. Mas agora não era hora para se importar com isso, então ele ignorou. Por outro lado, o Para-RAID trouxe um relatório da equipe de artilharia na retaguarda. Isso, sim, exigia sua atenção. A unidade de artilharia estava pronta para disparar e começava a abrir fogo de supressão.
— Boas notícias.
Ao ouvir isso, partiram.
— Todas as unidades, avancem. Enquanto aqueles latões estão parados sob fogo de supressão, vamos atacá-los pelo flanco.
A pequena janela aberta na espessa parede de pedra mostrava a chuva de granizo lá fora. Apesar da estação, não era um manto de neve que cobria o campo de batalha e toda a morte ali presente, mas sim uma chuva gelada que derretia assim que tocava o chão, formando um lamaçal negro.
Sua mão, ao tocar a parede de pedra, se sujou de poeira, os dedos rasgando teias de aranha antigas. Um pássaro pousado na janela alçou voo, deixando penas sujas para trás. Algo guinchou — talvez um rato — ao fugir.
O rosto de Citri, pálido e doente — sua pele ainda mais clara do que o brilho da neve — era a única coisa que permanecia bela naquela escadaria em espiral.
— …Yuuto. Escuta.
Seu rosto tranquilo e sereno parecia permitir que ele espreitasse uma terra distante e divina.
— Obrigada… por vir comigo. Por me ajudar a cada passo. Por dizer que íamos juntos. Eu fiquei feliz. De verdade. Estou feliz por ter te conhecido. Eu… fui mesmo feliz.
— …Citri.
Yuuto a interrompeu com uma única palavra.
Ele não suportava ouvir aquilo. Se ela estava falando daquela maneira só porque ele estava ali com ela — se era culpa dele que Citri tivesse de dizer palavras tão bonitas no fim — então ele não queria escutar.
— Se você realmente sente isso, tudo bem. E eu acredito que sente. Mas é isso mesmo que você quer dizer agora?
…Eu não diria, se estivesse no seu lugar.
Ele já ouvira os gritos e lamentos de inúmeros Processadores do Setor Eighty-Sixthth, e ouvira os uivos dos Legion através da habilidade de Shin. Nenhum deles dizia palavras tão bonitas assim. Então ele queria ao menos oferecer isso a ela. Só podia levá-la até a borda de sua verdadeira terra natal, o lugar onde nasceu. Se não podia salvá-la de verdade, então queria ao menos lhe dar isso.
— Eu não consegui fazer nada por você. Então, pelo menos, posso ouvir.
Nesse momento, Citri virou-se para ele, e sua expressão pálida se desfez, se contorcendo como a de uma criança prestes a chorar.
Diante do oficial da polícia militar decapitado e da realização de que não faziam ideia de para onde ir, Miel ficou perdido. Por pouco não chorou como uma criança mais nova. Mas conseguiu conter esse impulso.
Foi movido por seu orgulho — o orgulho de ser filho de seu pai, o homem que seguiu sozinho para o Setor Eighty-Sixthth. E sabia que Theo — que tinha a mesma idade que ele quando foi jogado no campo de batalha — não teria chorado por tão pouco.
Agora não é hora de chorar. Ainda é cedo para desistir. Então não desista.
Não desista.
Não desista.
Ele esfregou os olhos com força para conter as lágrimas que se acumulavam e se pôs de pé. Pegou um punhado de terra, encharcada com o sangue do oficial, e o enfiou no bolso, meio inconscientemente. Aquele homem o havia protegido até o fim, e Miel precisava levá-lo consigo. Então, ao menos isso, ele levaria.
— Miel, o oficial...
— Não se preocupem. Vamos continuar! Ainda conseguimos andar, então vamos continuar!
Miel assentiu para seus amigos, que, apesar do medo, não soltavam as mãos das crianças menores. Olhou ao redor — havia grupos de soldados recuando por todos os lados. Se os seguissem, poderiam alcançar um local seguro.
Sem desviar os olhos de um desses grupos, para não perdê-los de vista, ele os seguiu. Eram apenas um grupo de crianças, então era provável que os perdessem em breve, mas havia outras unidades por perto que também podiam seguir. Continuaram avançando, consolando as crianças que, exaustas e assustadas, acabavam chorando.
Foi então que se depararam com uma poderosa unidade branca como a neve. Aquilo era sorte — era um Feldreß que apenas uma unidade do exército da Federação possuía, bem semelhante ao Juggernaut que Theo havia pilotado durante seu tempo na República. Um Reginleif.
O Pacote de Ataque!
— Por favor, parem!
Miel tirou o casaco e o balançou enquanto corria em direção ao Reginleif, gritando para que o rugido do gerador não abafasse sua voz.
— Estou procurando por Theoto Rikka! Um Eighty-Six! Conhecem ele?!
Miel sabia, é claro, que Theo provavelmente não estava no campo de batalha. Mas se soubessem que ele era conhecido de Theo, talvez estivessem menos inclinados a ignorá-lo e abandoná-lo. Ouviu um estalo alto de língua, seguido de uma voz irritada.
Theo nunca lhe contara nada sobre isso, mas Miel ao menos sabia que ele era um Alba vindo da República; um Eighty-Six provavelmente reagiria mal a isso.
— Aaah?! Não sei quem é esse. Talvez já tenha morrido, provavelmente no Setor Eighty-Sixthth...
— Não — um segundo Reginleif interrompeu o primeiro, fazendo o Processador irritado calar-se. — Já ouvi falar dele. Acho que ele era um dos do Undertaker da 1ª Divisão Blindada.
...Pelo visto, Theo servia sob o comando de alguém com um apelido assustador. Miel ficou surpreso, mas manteve o rosto impassível, tentando parecer que já sabia daquilo.
— Ah, o Undertaker Sem Cabeça. Nesse caso...
Os dois sensores ópticos vermelhos se voltaram para Miel como um par de olhos solitários, carmesim.
— …É melhor levarmos ele junto. O chefe estava bem puto antes.
— Tomara que isso melhore o humor dele… Ei, vocês aí, crianças.
Os sensores dos Reginleifs vasculharam Miel e os órfãos Alba aglomerados ao seu redor.
— A gente não vai proteger vocês, mas pode levar junto. Só que nada de choro ou reclamação, ou vamos largar vocês no meio do caminho. Entendido?
Atrás deles, uma máquina de transporte cujo nome ele não conhecia os observava com o olhar artificial de seus sensores ópticos.
Palavras escaparam dos lábios trêmulos dela.
— …Eu não quero morrer.
Aquelas palavras caíram sobre a pedra fria e congelante junto das lágrimas que escorriam por seu rosto. Deslizavam como pérolas por sua pele pálida.
— Eu não quero morrer. Nunca quis morrer. Meus pais adotivos, o senhor e a senhora Muller… eles foram gentis comigo. Minha irmãzinha nova, Kaniha, era doce e adorável. Eu queria viver com eles, voltar à escola, dizer o quanto eu era grata.
Mas ela não fez nada disso. Não conseguiu fazer.
Vivi com ela por apenas um ano… Será que Kaniha ainda se lembra de mim? Meus pais adotivos estão preocupados comigo ou me desprezam? Me odeiam por ter mentido, por nunca ter contado que não sou mais humana, que fui transformada numa bomba, uma arma biológica?
— Eu queria voltar para minha cidade natal, não para esse lugar vazio que eu nem conheço. Queria reencontrar todo mundo — minha mãe, meu pai, meus colegas da escola, o Dustin. Queria crescer, viajar até o Reino Unido, onde meus pais nasceram.
Queria ir embora, para bem longe, tão longe quanto meu coração me levasse.
Queria ir com você.
— Eu não quero morrer, eu não…!
As lágrimas caíam. Citri chorava, seu rosto se contorcendo enquanto as lágrimas escorriam sem parar.
…Quando Kiki e as outras partiram no fim, foi para não arrastar ninguém com elas — e, provavelmente, para poderem chorar onde ninguém visse. Porque elas não queriam isso. O tempo todo, elas só queriam chorar. Gritar que não queriam morrer.
Mas não podiam gritar. Seus gritos não chegavam a ninguém.
Enquanto Citri chorava, silenciosamente, sem parar, Yuuto apenas esperou. Ele havia dito que podia, ao menos, ouvi-la — e queria conceder isso a ela. Citri podia explodir a qualquer segundo, e ele podia acabar junto… mas não se importava.
Quando a onda de emoções finalmente se acalmou e o som do choro cessou, ela enxugou as lágrimas com força e apertou os lábios. Fungou uma última vez, então sussurrou um "obrigada", com a voz rouca.
— Já estou bem… Vamos.
As manchas de sangue vinham dos corpos dos Bleachers espalhados pelo chão, e a arma era a coronha agora entortada do rifle que Ernst segurava. Ele não havia atirado neles, nem usara a baioneta — que nem mesmo estava acoplada. Em vez disso, usara a coronha como um porrete, espancando-os repetidamente até que ficassem imóveis, golpeando os corpos até que a pele se rasgasse e o sangue escorresse.
A visão grotesca fez Theo congelar. Em termos de brutalidade, ele já tinha visto mortes bem piores no campo de batalha. Mas ali estavam corpos humanos destruídos por uma violência insistente e implacável — algo que nem mesmo as máquinas assassinas como os Legion cometiam.
E, apesar disso, Ernst apenas se virou para Theo com o sorriso de um pai pego pelo filho com a mão no pote de biscoitos.
— Ah… Desculpe por te mostrar isso. Que feio — um adulto perdendo a cabeça desse jeito.
— …!
— A Frederica tá com você também? Imagino que ela vá me desprezar depois disso… Me dá só um minutinho. Vou dar um jeito nessa bagunça. Não seria certo fazer esse estrago todo e deixar para outro limpar, né?
Dizendo isso com naturalidade, Ernst voltou a segurar o rifle na posição normal e o inclinou em direção ao chão, encostando-o na cabeça de uma mulher Alba caída ali — se Theo lembrava bem, era Primevére, a líder dos Bleachers. A cabeça dela estava afundada e sangrando, mas ele ainda ouvia uma respiração fraca. Ela estava viva. E Ernst tinha a arma apontada direto para ela.
— Ernst, ei, espera… Você não precisa matar ela!
Os homens estavam armados, então embora sua reação tivesse sido extrema, ainda se poderia argumentar que ele agiu em legítima defesa. Mas agora, nenhum dos Bleachers se movia. Não havia necessidade de machucar mais ninguém. Ele podia simplesmente deixar que os Flame Leopards cuidassem disso.
— É verdade. Mas também não vejo motivo para deixar vivos. Como eu disse, é só eu descontando minha raiva.
— Descontando…?!
— Afinal, nada mais importa para mim. Nada. E já que nada importa, bem… Acho que cada um deve viver como quiser. Mas se moscas barulhentas ficam zumbindo no meu ouvido quando eu já tô de mau humor, vou esmagar. São só um incômodo.
Theo o encarava, atônito, enquanto Ernst sorria.
— O quê? Não percebeu ainda? Achei que o Shin já tivesse sacado, por isso ele me detesta. Pensar que é só ele sendo um adolescente rebelde me deixa mais feliz, como seu tutor.
— …!
É claro que Theo tinha notado. Na verdade, sempre sentira um certo medo de Ernst. O jeito como ele dizia essas coisas com tanta seriedade assustadora, condenando todos, tudo — inclusive a si mesmo. Dizendo que queria ver a si próprio e o mundo desabarem… com aqueles olhos negros e vazios, que não viam valor em absolutamente nada.
Mas se ele mostrasse quem realmente era, tudo acabaria. Se todos o enxergassem como o monstro vazio que era, e não como o herói da revolução, a Federação perderia por completo sua estrutura. Nada era mais perturbador e assustador — tanto para os outros quanto para si mesmo — do que alguém que não via sentido algum em nada.
E, mais do que qualquer outra coisa, Ernst seria marcado como um monstro irrecuperável. Um assassino. E Theo não queria vê-lo chegar a esse ponto.
— Ernst, não. Por favor, pare—!
Mas Ernst não se virou mais para olhá-lo. As palavras de Theo pareciam bater nele e cair no chão, sem nunca alcançar seu coração. E mesmo assim…
Antes de Theo entrar na mansão, Frederica tinha contado a ele o que havia acontecido. Pediu sua ajuda. E, no final, lhe fez um pedido. Sua voz estava desesperada, como a de uma criança à beira do choro.
— Theo. Theo, por favor… diga. Sei que você não quer chamá-lo assim, mas só por agora, só neste momento… pense que são minhas palavras, ditas por você, no meu lugar…!
Frederica havia perdido seu direito de nascimento, seu país e todos ao seu redor. E, embora não tivesse sido diretamente pelas mãos de Ernst, ela não conseguia se obrigar a chamá-lo assim. Não conseguia esquecer nem perdoar a morte de seu jovem cavaleiro e dos outros que cuidavam dela. Ainda que fosse uma imperatriz fantoche, as pessoas ao seu redor haviam jurado lealdade a ela como soberana.
E por isso ela não conseguia aceitar o homem que matou sua família, o líder da revolução que assassinou seus vassalos. Em vez de usar aquele título, chamava-o de burocrata — e aquilo, provavelmente, era sua forma de resistir, de protestar… contra si mesma.
Ela sabia que não podia chamá-lo por aquele título, mas uma parte dela queria fazê-lo. Tendo subido ao trono ainda bebê, nunca conhecera o rosto verdadeiro daquela pessoa. E por isso precisava resistir a si mesma.
— Se esse conflito está corroendo a Frederica por dentro, por que eu, um mero espectador mais velho do que ela, alguém que nunca passou por esse tipo de dilema, deixaria isso me impedir?
Naquela noite, em que eles expressaram o desejo de voltar ao campo de batalha, Ernst voltou para casa mesmo estando ocupado com o trabalho, porque queria comemorar o Aniversário Sagrado. Chegou com os braços cheios de panfletos e materiais de referência sobre escolas, tendo separado tempo da sua agenda lotada para pensar no futuro deles.
Naquele momento, apenas naquele momento, esse firedrake — com suas falsidades e olhos vazios — não parecia estar mentindo. E foi por isso—
— Já chega… pai.
E então, como se a palavra fosse tecida da mais pura magia — o furioso firedrake congelou.
— V-você…
Suas mãos caíram, inertes, e o fuzil de assalto, com a coronha torta, escorregou de seus dedos. Caiu com um baque surdo, inofensivo, no chão ao lado de Primevére.
— Você não pode dizer isso — isso não é justo…
Sua expressão se desfez, como se fosse chorar a qualquer instante.Ernst era o mais velho entre os adultos que Theo conhecia, aparentemente velho o bastante para ter tido um filho mais velho do que o próprio Theo. Mas agora, ele olhava para Theo — e para Frederica, observando à distância — com a expressão de uma criança pequena e perdida.
— Eu teria gostado de cumprir esse papel para vocês. Sei que fui encarregado de cuidar de vocês no lugar de seus verdadeiros pais, mas… se você pudesse me chamar de pai, eu teria querido isso. Mas me chamar assim agora, nesse momento, nesse lugar… não é justo…!
Ele lentamente cobriu o rosto com as mãos. Suas mãos manchadas de sangue. As mãos que, até há pouco, procuravam dar o golpe final na mulher aos seus pés. As mesmas mãos que seus filhos seguraram, impedindo-o por pouco de desferi-lo.
— Isso não é justo. Eu não posso trair vocês. Que tipo de pai seria eu se traísse dois de meus próprios filhos, que estão tentando me impedir juntos, com lágrimas nos olhos? Eu sou—
Seus soluços escaparam entre os dedos manchados de sangue, junto com as lágrimas.
— Eu sou o pai de vocês, afinal de contas… Eu não tenho o direito de fazer vocês sofrerem…!
No topo da torre, o sino que deveria estar ali não existia mais, restando apenas um vasto piso de pedra e grandes janelas cobertas de granizo.
As janelas cercavam todo o cômodo, oferecendo uma vista para todas as direções cardeais.
Citri aproximou-se da janela voltada para o oeste. Já era quase o crepúsculo, mas nuvens negras e espessas ocultavam o brilho do pôr do sol. Ao longe, sobre as planícies vazias onde um dia estivera Neunarkis, pairava uma névoa carregada de granizo.
Ela olhava para o horizonte, os olhos vermelhos e inchados de tanto chorar, as bochechas ainda marcadas pelas lágrimas.
— Sempre achei que aquela cidade era como um palácio feito de luar.
Sua cidade natal. A cidade consumida pela Legion, para a qual ela desejava tanto retornar.
— Era o meu conto de fadas preferido, sabia? Um príncipe vivendo num palácio lunar, feito da luz dourada da lua cheia. Todas as noites, os espíritos do céu estrelado refletido no lago atravessavam uma ponte feita de arco-íris noturno para encontrá-lo. — Ela se virou para ele, sorrindo com os lábios trêmulos e o rosto pálido. — Se aquele príncipe realmente existisse, tenho certeza de que ele seria como você, Yuuto.
Yuuto sorriu, apesar de si mesmo.
— É a primeira vez que alguém diz algo assim sobre mim.
As pessoas costumavam dizer que ele era como um Juggernaut. Algumas vezes, até mais do que isso. Chamavam-no de máquina de combate sem emoções, como uma Legion, um Juggernaut. Porque ele sempre encarava tudo com frieza, aceitando as coisas como elas eram.
Ele conseguia sobreviver, mas não era forte o bastante para proteger os outros, e parecia que todos ao seu lado sempre encontravam um jeito de morrer e deixá-lo para trás.
E assim, sem jamais permitir que nenhum deles permanecesse em seu coração, ele sobreviveu ao Setor Eighty-Sixthth.
— A primeira vez — disse Citri, com uma risadinha. — Então vou dizer mais. Seu cabelo é bonito, da cor da lua, e seus olhos brilham como fogo de saudade.
Citri, cega aos piores traços de Yuuto, continuava a descrevê-lo com palavras que não combinavam com ele, palavras tão belas que chegavam a doer.
Ele nunca tentou carregar nenhuma maldição, mas ser amaldiçoado teria sido preferível àquilo. Diante daquele auto-apagamento covarde, aquelas palavras pesavam ainda mais.
Como uma fada linda e cruel, saída de um lago iluminado pelas estrelas.
— Eu sou a primeira garota a dizer algo assim sobre você. Então provavelmente você nunca vai se esquecer de mim. Eu serei...
— sua maldição, então.
Por um momento, Yuuto fechou os olhos. E então, conseguiu esboçar algo parecido com um sorriso.
— Certo. Vamos juntos, Citri.
Citri sorriu, em êxtase.
— Obrigada.
A quem aquelas palavras eram dirigidas?
Seus dedos delicados alcançaram o cabelo e desataram uma das fitas que o prendia. Ele aceitou a fita e, após uma breve hesitação, beijou o dorso da mão dela. Aquele era o seu juramento, sua maneira de dizer: Eu aceito sua maldição.
Citri sorriu e, mantendo o sorriso, deu um passo para trás. Depois outro.
Aquilo era realmente o fim.
— E quero te pedir mais uma coisa. Não olhe para o que vai acontecer agora. Não olhe para mim.
Quero que você, justamente você, me guarde na memória como eu era. Que pense em mim como alguém bonita.
— …Sim.
Ele se virou nos calcanhares, como se quisesse se libertar do olhar dela.
Atrás dele, podia sentir Citri se inclinando para fora da janela, como se estivesse retornando aos céus. Ela fez aquilo para que a torre de pedra — e sua escada em espiral — não desmoronasse antes que Yuuto conseguisse descer.
Uma explosão sacudiu a escuridão da escadaria em espiral, o estrondo reverberando pelas paredes.
Yuuto nunca se virou para olhar.
Eles se reagruparam com a força remanescente no ponto de encontro da Cidade de Nakiviki, dentro do território de Montizoto, e então seguiram para o noroeste antes de darem a volta e retornarem a Rüstkammer. Shin deixou o Undertaker — desgastado pela viagem de volta — com os mecânicos designados, Guren e Touka, e ficou em um canto do hangar. Enquanto tomava um caneco de sopa que voluntários civis da equipe de suprimentos haviam lhe dado, o Segundo-Tenente Perschmann se aproximou de Shin.
— É bom ver que você voltou, Capitão.
— Vamos entrar em ação de novo assim que a manutenção for concluída. Como está o andamento da fortificação?
— Já terminamos. Tenho o mapa bem aqui, e estamos preparando os dados para distribuir a todos os Reginleifs. Também entregaremos cópias aos Wulfsrin que já estão posicionados.
Ele estendeu o mapa e começou a memorizar todas as trincheiras, impedimentos antitanque e posições de artilharia ali desenhados, enquanto fazia mais perguntas. Os engenheiros e operadores de metralhadoras pesadas já haviam recuado. Restavam apenas—
— E os civis da Cidade de Fortrapide?
— Os engenheiros não puderam levá-los junto, então estão permanecendo na base. A cidade foi confirmada como vazia — respondeu o Segundo-Tenente Perschmann.
— Estamos com nossas famílias e os pequenos todos reunidos em um só lugar, Capitão — acrescentou uma soldado Vargus que havia vindo com ele.
Muitos dos meninos Wulfsrin, que estavam no início da adolescência, atuavam pela base como mensageiros e assistentes de engenharia de combate. Os mais novos ainda eram apenas crianças pequenas, sem utilidade direta no campo de batalha — mas que também precisavam ser evacuadas.
Ou pelo menos foi o que Shin pensou, até que a soldado continuou com frieza:
— Mas mesmo os pequenos são Wulfsrin. Criamos eles para não começarem a chorar se um projétil cair por perto. Mesmo que os civis entrem em pânico, os pequenos vão acalmar eles ou pelo menos mantê-los no lugar. Pode ficar tranquilo.
Então eles não eram alvos de evacuação — e sim responsáveis por manter a ordem nos abrigos. Só agora Shin pensou que a tradição de usar os Vargus como guardas de fronteira era realmente cruel.
Enquanto isso, a soldado passou a falar num tom afetado e brincalhão:
— Aliás, Capitão, qual a sua faixa etária? Se quiser, pode se divertir com uma mulher mais velha como eu depois disso tudo…
Claro que ela estava brincando. Aquilo era apenas sua forma de aliviar o clima e dar ao jovem oficial um pequeno descanso mental, depois de tantas horas de combate e retirada, atolado na lama, com apenas uma batalha defensiva interminável à frente.
E funcionou — Shin deu uma risada. Um breve sopro de ar, mas ainda assim um riso, mesmo que um pouco forçado.
— Desculpa, mas eu tenho namorada. Tenta com outro.
— Eu imaginei que alguém como você teria uma mulher… ou duas… ou três… ou quatro. Por isso disse “se divertir” — respondeu ela, com um sorriso malicioso.
— Eu só tenho uma. E, além disso, é uma das comandantes desta base. E ainda por cima… uma rainha.
Se tivesse uma segunda ou terceira, estaria em apuros. Essas palavras fizeram a soldado endireitar a postura na hora.
— Certo, vou manter a boca fechada. Se eu arrumar briga com Sua Majestade, ela pode mandar cortar minha cabeça.
Por algum motivo, Perschmann assentiu vigorosamente ao lado dela, como quem dizia: “Decisão sábia.”
Ao retornar para a tropa principal, ela soube que Dustin estava desaparecido em combate.
Com o tempo que passaram no campo de batalha, os Eighty-Six haviam aprendido a deixar a dor e as preocupações de lado durante o combate. Era apenas graças à sua força como guerreira que Anju conseguia se manter composta.
— Entendi. Recebido, Yuu, Kurena.
Sua dor parecia mais leve do que esperava. E, claro, não sentia raiva. Yuu e Kurena não eram culpados pelo que havia acontecido. E ela tampouco estava revoltada com este mundo, por mais cruel e cínico que fosse.
Ela soltou um suspiro forte.
Não existiam milagres neste mundo. Nenhuma salvação verdadeira. Qualquer salvação concedida por alguém — por Deus — não passava de um capricho inconstante, no fim das contas. E por isso…
E por isso…
— Eu não vou pedir que o salvem.
Ela não sabia se era a Deus, ao destino ou a quem quer que fosse, mas nunca encontrara — e nunca encontraria — palavras para suplicar. Se tudo o que fizesse fosse rezar pela salvação de Dustin, viveria se lamentando por não tê-lo salvado com as próprias mãos. Se dependesse de milagres, viveria o resto da vida amargurada pelas preces não atendidas.
Eu me recuso a viver assim.
Me recuso a viver parada, esperando que a salvação venha até mim.
Não vou guardar rancor por aquilo que me acontecer — seja pelas mãos do mundo, de Deus ou do destino.
Ah, mas…
— Daiya…
Eu queria ter ido com você.
— Dustin…
Eu queria que você tivesse voltado para mim.
Por favor. Tudo bem...?
— Volta para mim, Dustin.
Enquanto o combate prosseguia, os soldados em retirada ainda iam retornando lentamente.
Entre a lama e as árvores caídas, mãos estendidas vestidas em uniformes negros de metal emergiam, clamando por socorro.
— Quantos deles tem aí?! Já perdeu a graça!
Com as pernas de sua unidade, o jovem comandante da divisão blindada chutou para longe a mina autopropelida disfarçada de soldado ferido.
As minas metálicas autopropelidas apresentavam leituras de radar diferentes das dos Vánagandrs.
Graças ao sistema de segurança e alarmes do console de apoio, um Vánagandr dificilmente as confundiria.
Claro, mesmo com o radar, ainda havia chance de uma passar despercebida e explodir. Mas com tantos desses monstros de sucata por perto, o perigo já era mais que suficiente.
Ao contrário da infantaria comum e da infantaria blindada, a unidade blindada era protegida por placas espessas que lhes permitiam correr mais riscos.
Afinal…
— Espera. Não me deixa aqui…
— para trás, infantaria! Todas essas coisas são minas autopropelidas —
ignorem elas!
Os soldados em retirada, que haviam diminuído o passo, congelaram ao ouvir seu grito.
Provavelmente ouviram a voz de um camarada. Ou talvez fossem apenas pessoas boas, que não conseguiam se obrigar a abandonar alguém em apuros.
De fato, alguns soldados que se viraram tinham o rosto sujo de lama e sangue coagulado — rostos que pareciam prestes a chorar.
— …Tem certeza de que são minas autopropelidas, né? A gente não quer deixar ninguém para trás de novo…
O comandante da divisão blindada conteve o impulso de estalar a língua… Eles já haviam deixado gente para trás. Um soldado ferido que não conseguia continuar. Outra unidade que ficou para lutar mais.
Isso deixava os soldados relutantes em ignorar uma voz pedindo socorro… e era assim que as minas autopropelidas os atraíam.
— É, essas coisas são Legion… então vocês não estão deixando ninguém para trás. Não tem ninguém para salvar.
Toda a linha de frente tinha desmoronado, com tropas em retirada espalhadas pelo campo de batalha.
Muitos soldados feridos de verdade foram deixados para trás. Muitas pessoas não tiveram outra escolha senão abandonar um aliado ferido e fugir.
E essas armas foram feitas justamente para se aproveitar e predar esse caos — essa culpa.
As minas autopropelidas, por design, miravam diretamente nas pessoas boas, que tentavam aliviar a culpa por terem traído seus companheiros e fugido. Elas eram a encarnação da malícia, zombando dos que tinham consciência e coração bondoso, esfregando na cara deles que quem não tem esses sentimentos tem mais chance de sobreviver.
…Maldição.
— Não vamos deixar vocês levarem a melhor, seus pedaços de lixo metálico.
paraguejando contra elas, o comandante da divisão blindada avançou na direção oposta à das forças de infantaria, que se dirigiam para a posição de reserva de Harutari. Então girou a direção de seu Vánagandr, encarando o enxame mecânico que os perseguia.
A área ao redor de Rüstkammer, a floresta de Zasifanoksa, era uma mistura de árvores coníferas e de folhas largas — flora típica da Federação.
O antigo governador da região deixara o local paraticamente intocado, usando-o como área de caça.
Assim, o lugar havia se tornado uma floresta com terreno irregular, cheio de raízes e galhos que dificultavam a passagem de pessoas.
Eles usaram esses obstáculos naturais, reforçando-os e cortando partes que atrapalhavam a defesa.
Cavaram trincheiras como cicatrizes na terra, instalaram valas antitanque, casamatas e barreiras metálicas.
Através da tela óptica, Michihi podia ver o sol da manhã brilhando por entre as copas das árvores e refletindo nas barreiras antitanque.
Ver aquela floresta familiar — que haviam visitado tantas vezes para treinar, caçar e pescar — transformada daquela forma mexeu com seu coração.
Michihi, assim como todos os Eighty-Six, não tinha memórias de sua terra natal.
Mas se tivessem… ver o próprio lar transformado em campo de batalha sem dúvida traria esse tipo de angústia.
Ver memórias preciosas — os lugares que evocavam saudade — se tornarem cenário de morte e sangue.
É realmente assustador… Essa base virou nosso refúgio. Mas é justamente por isso…
— Quem eles pensam que são, pisando no nosso quintal? Essa é a nossa base. Nosso lar.
Essa era a floresta por onde haviam marchado durante os treinamentos, onde caçaram tantas vezes, pescaram, brincaram. Era o quintal deles.
Conheciam cada rio, cada vale e cada inclinação, como cada árvore crescia, cada cantinho e recanto dessa floresta.
A floresta onde vivemos por seis meses com certeza ficará do nosso lado.
Os esquadrões de Reginleif se escondiam em instalações defensivas desconhecidas, montadas no terreno familiar da floresta, conectados aos Alkonosts e às tropas Vargus que cooperavam com eles via Ressonância Sensorial.
Em algum lugar entre as árvores, Undertaker estava escondido, com Shin ouvindo com atenção os gritos das Legion que se aproximavam.
— Todas as unidades, eles estão vindo… Vamos fazer contato primeiro no ponto 934. Dentro de cento e cinquenta segundos, a vanguarda inimiga deve estar ao alcance. Provavelmente é uma divisão blindada.
Ao dizer isso, o Undertaker do Pacote de Ataque sorriu friamente.
— Estão tão confiantes de que venceram que nem se deram o trabalho de mandar batedores na frente. Vamos esfregar nossas botas nas caras convencidas deles e mandar todo mundo de volta para casa.
As tropas Vargus que não conheciam sua habilidade caíram em um silêncio confuso.
Enquanto isso, os Eighty-Six, as Sirins e a unidade de Bernholdt — que já servia ao lado de Shin há muito tempo — responderam com calma:
— “““Entendido.”””
Abriram fogo com precisão no ponto que ele indicara. Esse foi o tiro de abertura da batalha pela base Rüstkammer.
A armadura de alumínio e a fibra interna à prova de balas conseguiram deter a maioria dos estilhaços… mas não todos.
— O Para-RAID… É, foi pro espaço.
O cristal nervoso quase-orgânico que era o núcleo de suas funções fora partido ao meio por um estilhaço.
Além disso, sua unidade estava gravemente danificada e fora de operação, a câmara de seu fuzil de assalto estava quebrada, e seu corpo inteiro doía — tanto pelos impactos quanto por torções.
Não conseguia ouvir com o ouvido direito — o tímpano devia ter estourado.
Por outro lado, se o Para-RAID não tivesse absorvido aquele estilhaço, ele teria atravessado seu pescoço e o matado.
Sua perna direita, onde ficava preso o coldre da pistola, não teve a mesma sorte: um fragmento havia se alojado dolorosamente em sua carne.
— …Acho que posso me considerar com sorte por ainda ter minha pistola, né.
Ela não servia para enfrentar as Legion, mas era útil o suficiente para se matar.
O rádio, como sempre, estava inútil por causa da interferência das Eintagsfliege.
Ele recuperou sua mochila de sua unidade e começou a caminhar pesadamente pela floresta desconhecida da Federação.
Um arbusto se agitou, fazendo-o se virar rapidamente — apenas para encontrar uma garotinha de sete anos de idade, vestida com um uniforme. Por um momento, ele ficou confuso, mas logo percebeu que devia ser uma Mascote. Uma “filha simbólica” que a Federação empregava para impedir que os soldados traíssem o exército.
Ela devia ter se separado da sua unidade… ou, talvez, tivesse sido descartada.
Ele congelou. Ela o encarou, mas seus pequenos lábios não se moveram. Seu olhar voltado para cima vacilava, expressando emoção, mas ela não conseguia pedir por salvação. Havia sido abandonada, deixada para trás no campo de batalha pelos soldados que deveriam ser sua família.
Mas ele não podia culpá-los por isso. Afinal…
— …Eu também não posso te salvar.
Sou fraco, e só cuidar de mim mesmo já está me consumindo por completo. Se eu tentar ajudar uma criança, eu não vou sobreviver.
Então não é minha culpa. Eu preciso deixá-la para trás. E já tinha abandonado a Citri uma vez — o que é mais uma nessa conta?
Já tinha deixado alguém para morrer uma vez, então podia muito bem continuar largando as pessoas à própria sorte.
Sou um desgraçado miserável que traiu o desejo da Anju, então podia muito bem viver como um covarde — só para fracassar e morrer no final.
A menina que o olhava não tinha uma pistola, nem estava em condições de andar por um campo de batalha.
Ele desviou o olhar daquela garotinha, tão mais fraca e nova que ele, enquanto a própria consciência o acusava.
Precisava desviar o olhar da pura culpa que aquilo causava.
Afinal, eu sou… Eu sou… Eu sou…
Dustin, escuta…
Mas então uma voz cruzou sua mente. Uma voz gentil, serena. Um par de olhos que ele achava mais bonito que o ponto mais alto do céu.
Você é puro. Sei que você não gosta de trapaças.
Eu…
— Então diga a si mesmo que está fazendo isso por mim. E volte para casa.
Vou transformar até essas palavras em uma maldição? Convencer a mim mesmo de que foram ditas por mim?
Essas palavras que desejavam tanto que eu voltasse vivo, que tentaram carregar o peso da minha vergonha e covardia?
Vou transformar suas palavras — as palavras de uma bruxa gentil — em uma maldição também?
Vou transformar suas palavras em mentira, só para você não me odiar?
— Você não pode se permitir trapacear.
Foi exatamente o que você disse. Eu odeio trapaças e covardia. Não consigo me perdoar por fazer isso.
— Cumpara sua promessa e não morra.
— Volte para mim.
Mas você disse que estaria lá para me receber. Que me acolheria de volta.
Mesmo que eu não consiga salvar ninguém, mesmo que já tenha abandonado alguém uma vez…
O mínimo que posso fazer é não fazer você chorar. Ser alguém de quem não só eu, mas alguém tão gentil quanto você, não se envergonharia.
Mesmo sendo fraco, posso pelo menos fazer isso. Posso ao menos me esforçar para fazer isso!
— Vem cá. — Dustin estendeu a mão.
A garota olhou da mão dele para seu rosto, confusa.
— Vem. Vamos voltar juntos!
Por um segundo, a menina pareceu prestes a chorar. Ela correu até ele, que a segurou e a levantou nos braços.
Seria mais rápido do que tentar acompanhar o passo de uma garotinha, e não era como se sua pistola fosse ser útil contra os Legion.
Teriam que apenas se esconder, esperar eles passarem e seguir o exército em retirada.
Ele não podia lutar. Se os Legion aparecessem em seu caminho, ele não conseguiria enfrentá-los.
Simplesmente não era forte o bastante para isso.
Mas mesmo os fracos, apesar da fraqueza, têm seus próprios caminhos.
— Fica quietinha por um tempo, tá bom? Eu prometo que vou te levar em segurança.
Porque, se nada mais, eu preciso voltar em segurança.
Um pato ou ganso, que infelizmente ainda se lembrava de como era ser alimentado por humanos, se aproximou de Yuuto, que o matou com um bastão e o cortou em pedaços.
Qualquer sensibilidade que o teria feito se sentir mal com a visão de sangue, depois de tudo o que aconteceu nesse dia, já tinha se desgastado há muito tempo.
Ele estava em território dos Legion, numa área onde Ameise patrulhavam e sondavam, atraídas pelo som da explosão.
Apesar disso, ele voltou para a floresta e se escondeu, acendendo uma fogueira numa cova rasa para ocultar seu brilho. Usou o fogo para cozinhar a carne.
Era um método de conservar energia em um campo de batalha no inverno.
Ou pelo menos, essa era sua intenção. Mas agora que estava completamente sozinho, sem nenhuma voz por perto, finalmente percebeu que esse não era o único motivo.
Um corvo pousou ao lado dele com o bater de asas. Deve estar com fome, tão longe da linha de frente, sem humanos por perto para lhe dar restos. Yuuto jogou um pedaço de carne para ele, mas, em vez de comer e sair voando, o corvo permaneceu no lugar, bicando o chão.
Um corvo. Um necrófago que se alimentava da carne dos mortos.
— Ei.
O corvo não poderia entender seu chamado, mas inclinou a cabeça pequena, curioso, como se tivesse entendido.
— Amanhã, você vai lá e come ela, não vai?
Ou talvez os ratos cheguem aos restos dela ainda esta noite.
E tudo bem, também.
Ele disse que levaria seu coração com ele, mas queria que a carne que restasse dela pudesse servir de sustento para os pássaros no céu ou para os animais que rastejam por aí.
Em algum momento, nesse ciclo, ela acabaria encontrando o caminho de volta para sua terra natal.
Poderia ver o mundo inteiro, como sempre quis.
Ele não fez uma sepultura para ela. Afinal, ela pediu para ele não vê-la. E os Eighty-Six nem sequer tinham sepulturas.
Ela e seus amigos eram Eighty-Six. Eles seguiram em frente, até o destino final.
Assim como eu.
Um dia e uma noite inteiros se passaram, mas todas as dez frentes de batalha da Federação ainda estavam presas em combate. Um oficial de pessoal, vindo de dentro da base de Rüstkammer, disse a Lena que assumiria por ela, então ela deveria descansar. Lena concordou e desligou o Para-RAID.
O oficial tático que originalmente a substituiria havia se ferido mais cedo e precisou ser hospitalizado.
Os combates se intensificaram tanto que até balas perdidas começaram a alcançar o posto de comando na retaguarda da linha defensiva.
Disseram-lhe para descansar, mas a mente de Lena estava alerta demais para dormir.
O estado de excitação fazia com que o corpo priorizasse o envio de sangue ao cérebro, então nem mesmo seu estômago negligenciado mostrava sinais de fome.
Mas ainda assim, comer alguma coisinha, só para ter algo no estômago, e fechar os olhos por um tempo, seria melhor que nada. Com isso em mente, ela pegou TP — que estava quietinho num canto da mesa — e foi até a cama no cômodo ao lado.
Depois de ter passado pela primeira ofensiva em larga escala, TP havia aprendido bem a perceber quando situações de emergência estavam prestes a começar, e sempre ficava ao lado de Lena para não se separar dela caso algo acontecesse.
Jonas entrou na sala carregando mapas impressos e colados à mão do teatro de operações de Rüstkammer e das zonas de combate ao redor — os mesmos que Lena havia solicitado mais cedo.
A essa altura, as redes de comunicação da Federação estavam completamente congestionadas devido à imensa quantidade de dados sendo transmitidos o tempo todo. Não havia mapas em tempo real que Lena pudesse consultar no momento, então ter mapas em papel nos quais ela pudesse escrever era prático e útil.
— O número de unidades sobreviventes em cada setor ainda está incerto, coronel Milizé. Com os combates em andamento, está tudo tão caótico que não conseguimos co— Hã?
Jonas se assustou — TP havia pulado nele, soltando um rosnado intimidador.
O pelo estava eriçado, as costas arqueadas, a cauda rígida e os dentes à mostra como um pequeno leão furioso. TP estava totalmente pronto para lutar. Jonas, que não se lembrava de ter feito algo que provocasse aquela criaturinha, recuou, confuso.
Essa cena absurda estava tão fora de sintonia com a tensão do posto de comando em plena batalha que Lena quase caiu na risada. Desviou o olhar, lutando contra a vontade de rir.
Ou melhor — Jonas parecia realmente não entender o que tinha feito de errado, mas TP estava agindo exatamente como se esperava. Na verdade, Jonas merecia aquilo.
— TP me ama. Então, considerando o tanto que você me importunou, é natural que ele fique agressivo perto de você.
— Ah…! Entendo que esteja chateada com o que aconteceu, mas de forma alguma foi assédio…
Jonas pareceu ofendido com a insinuação e se apressou em tentar se explicar.
— Você diz isso depois de forçar uma mulher a sair, trancá-la em um cômodo e deixá-la confinada, ansiosa e com medo? — comentou Zashya friamente. — Esquece assédio, isso aí foi abuso descarado. Coisa de cafetão. Inimigo declarado de toda a mulherada.
— Um cafe—?!
Vendo Jonas ficar completamente sem palavras diante da acusação, Lena não conseguiu se conter e riu, pegando TP nos braços.
Rir ajudou a tirá-la da tensão do campo de batalha, e ela percebeu com gratidão que isso fez sua fadiga e fome virem à tona.
— Vamos, TP. Esquece esse valentão, vamos dormir juntinhos.
— Miau.
— Eu não sou um valentão…!
TP ronronou de repente. E, depois de se atrapalhar com uma besteira por um tempo, Jonas parecia exausto à sua própria maneira. Comparada aos outros três comandantes, Lena estava sozinha lidando com uma carga de trabalho que normalmente exigiria vários oficiais de estado-maior, então seu cansaço era compreensível.
Enquanto Lena os ignorava e seguia para o quarto, Annette se aproximou.
— Desiste, segundo-tenente. Você é um valentão, um inimigo declarado da mulherada e uma pessoa assustadora… Aqui, chá. Você deve estar cansado; algo doce deve te ajudar a acordar.
— Obrigado, major… Urgh, tá amargo! O que você colocou aqui?!
— Ah, foi mal — disse Annette, com a voz completamente monótona e sem o menor sinal de arrependimento. — Acho que confundi o açúcar com o café instantâneo.
— Eles são de cores opostas, pelo amor de Deus! — reclamou Jonas, sério demais.
Ele tinha caído na pegadinha dela sem nem perceber, o que só mostrava o quanto sua mente já não estava funcionando direito.
Com um sorriso sarcástico, Lena deixou um comentário final:
— Você também devia descansar, segundo-tenente. Tenho certeza de que seu mestre vai te dar essa ordem em breve.
E, com isso, Lena desapareceu no quarto para tirar um cochilo.
Os pelotões e esquadrões — e, em alguns casos raros, até mesmo indivíduos — que tinham se separado dos combates durante a retirada e os bombardeios do Morpho começaram a retornar gradualmente à base de Rüstkammer ao longo de três dias.
Não havia tempo de sobra para reinseri-los em suas unidades ou pelotões originais. Depois de um breve descanso, eram organizados em esquadrões improvisados e enviados para os pontos onde mais faltavam mãos.
Frederica, que tinha voltado ao posto de comando, começou confirmando a segurança dos soldados desaparecidos cujos rostos conhecia, mas logo precisou ser enviada para ajudar a entender a situação em toda a linha de frente.
Sim, Ernst estava seguro. Apesar de o ataque ser um problema gravíssimo para a Federação, ninguém dava muita atenção a isso no momento — todos estavam ocupados demais e sob tensão demais.
Os membros da equipe de pesquisa do Reginleif foram incorporados à equipe de manutenção no hangar. A infantaria e a infantaria blindada que haviam fugido para essa base foram imediatamente enviadas para reforçar a linha defensiva, e os funcionários da instalação e motoristas também se juntaram ao esforço. Mesmo sendo soldados, o pessoal do almoxarifado ajudava a descarregar os feridos.
Os Eighty-Six contavam uns aos outros a história de como o padre saiu da aposentadoria com um rifle em mãos, atirando até ficar sem munição, só para depois pegar uma pedra e usá-la para acabar com uma mina autopropulsada. O fato de conseguirem brincar mesmo em uma hora como aquela era uma prova de quão calejados pela guerra todos estavam.
— …Mas, capitão, se juntar todas as histórias, a única maneira de elas fazerem sentido é se houver uns cinco padres correndo por aí — comentou Bernholdt, estremecendo com a imagem mental.
Todos presentes riram. Estavam sem munição, sem combustível e escondidos em uma depressão natural, agarrados a seus fuzis de assalto. Com estilhaços e balas zumbindo acima, não podiam se levantar. Fido voltou, carregado com munição, combustível e também pacotes de rações de combate aquecidas, graciosamente providenciadas pela equipe de suprimentos. Não havia tempo para refeições durante o combate, então mesmo que as rações tivessem esfriado um pouco, ainda era melhor do que comê-las frias.
Um rapaz Processor de outra divisão blindada, cujo nome Shin não sabia, abriu um pacote e engoliu o conteúdo. Seu rosto estava emagrecido e exausto, pois só havia conseguido cochilar um pouco entre as tarefas de manutenção e reabastecimento, e precisava se manter de pé com aquelas rações que mal podiam ser chamadas de comida.
— Queria que tivéssemos cinco dele. Seria ótimo se ele se dividisse e a gente tivesse mais cópias — comentou o rapaz.
— Ele não vai se dividir, e nem adiantaria — Mika balançou a cabeça.
— Se ele conseguisse fazer isso, seria uma ameaça maior que a Legion — acrescentou Raiden.
Ambos tinham sorrisos estranhos e cansados nos rostos, provavelmente por causa da fadiga. Ainda assim, estavam sorrindo. Brincavam e tinham energia para rir.
Podemos continuar lutando.
Shin terminou sua modesta desculpa para uma refeição ao mesmo tempo em que Fido finalizava o reabastecimento dos Reginleifs. Ele pegou seu fuzil de assalto e, ainda agachado, conseguiu de alguma forma deslizar até o cockpit do Undertaker. Novas ordens chegaram de Lena. O que significava—
— Acho que podemos ir ver se o padre realmente se dividiu na batalha. Tô ansioso para descobrir.
Verificar a situação de cada posição e seguir para ajudar onde fosse necessário. Essa era a ordem implícita de Shin, e alguém — mais uma vez, uma voz desconhecida — riu.
— Entendido. Vamos dizer que estamos indo ajudar nosso padre multiplicador, Capitão Undertaker.
— Ele não precisa da nossa ajuda; nem a Legion é páreo para o padre. Aquela parte da pedra não é invenção, se quer saber — disse outro.
Uma mina autopropulsada provavelmente não esperaria ser derrotada por algo tão primitivo quanto uma pedra. Ouvindo Shin falar com uma voz sofrida e completamente séria, todos os outros fizeram o sinal da cruz e juntaram as mãos em oração.
E então, alguém se conectou à Para-RAID. A voz firme de sua Rainha mais uma vez ecoou no campo de batalha.
— Handler Um para todas as unidades do destacamento Spearhead!
Em meio à tempestade de balas, Shin e os outros trocaram olhares e sorrisos. Não precisavam mais confirmar a situação. Agora, tinham a honra de lutar mais uma vez sob as ordens de Sua Majestade.
Depois que o médico militar recusou com firmeza receitar-lhe mais remédios, e seus subordinados e a equipe de manutenção trabalharam juntos para basicamente arrastá-lo para fora de sua unidade, Gilwiese não teve outra escolha senão tirar um cochilo.
A situação havia chegado a um ponto em que ele, como comandante do regimento, teve de deixar seu vice assumir o comando por um tempo para que pudesse descansar. Isso porque os soldados de infantaria em fuga haviam sido recuperados na posição de reserva de Harutari; como resultado, as unidades blindadas ganharam mais liberdade de ação, e os engenheiros de combate e unidades de transporte conseguiram abrir rotas seguras, permitindo que o apoio e os suprimentos fluíssem corretamente e que as tropas lançassem contra-ataques.
No entanto, os soldados dispersos vagavam por lugares onde não deveriam estar, e seu estado de confusão fazia com que não contribuíssem muito com o exército.
Se ao menos conseguíssemos fazê-los lutar, as unidades blindadas — nós, descendentes dos cavaleiros de armadura — não seríamos superadas por esses pedaços de sucata.
O estado da batalha começava a se inclinar gradualmente a seu favor. Assim que dormisse um pouco, ele partiria para empurrar o inimigo de volta.
“Esperem só para ver,” pensou Gilwiese com firmeza, antes de a exaustão finalmente puxar sua mente para o pântano do sono.
— Saia da frente, seu trambolho gigante! Um dragão superdimensionado como você não vai se meter no caminho da Caçada Selvagem da Casa Nouzen!
Ainda assim, os Dinosauria eram as cartas na manga da Legion, e eram oponentes que até mesmo a Divisão Ossos Loucos tinha dificuldade em enfrentar — certamente não eram o tipo de inimigo que Yatrai podia chamar impunemente de “trambolho gigante”. E, no entanto…
Provavelmente julgando que era hora de recuar, as unidades blindadas pesadas da Legion acabaram sendo derrotadas pela Divisão Ossos Loucos. Com risadas sedentas por sangue e uivos, a divisão perseguiu os inimigos em retirada, ao mesmo tempo em que se mantinha consciente para não avançar demais.
Eles mantinham uma formação ofensiva, encarando a força inimiga, que avançava em formação de cunha, e rasgando-a de frente. Ter a formação de Harutari às suas costas lhes dava liberdade de movimento. Não havia medo de avançarem demais nas linhas inimigas e acabarem isolados por um colapso dos aliados.
O Azhi Dahāka tinha uma eficiência de combustível muito baixa, então ficar isolado atrás das linhas inimigas era especialmente fatal para ele. A menos que as linhas defensivas dos aliados fossem firmes, nem mesmo esse dragão negro devorador de homens poderia voar livremente pelo campo de batalha.
Sim, ao contrário da frágil e desfeita linha Saentis-Historics, a formação de reserva de Harutari agora era firme. E isso se devia ao fato de que os soldados derrotados que vieram para cá estavam cercados por cercas de gado com armas apontadas para eles, sem outra escolha senão lutar. Quando suas próprias vidas e as de outros estavam em jogo, até mesmo aqueles covardes lutavam com unhas e dentes.
Eles resistiam à investida metálica com todo o desespero frenético de ratos em pânico, apoiados pela experiência e teimosia de lobas velhas e experientes. Era uma resistência frágil, mas eficaz por enquanto.
…O que aconteceria depois era uma questão sobre a qual Yatrai não pensava — e sinceramente, não queria pensar naquele momento.
— Lorde Yatrai, o senhor está deixando suas emoções transparecerem.
— Ninguém está ouvindo além de você, Vice-Capitão… Mas eu sei. Só estou cansado, só isso.
O sangue Nouzen lhe dava uma resistência robusta que a maioria das pessoas não conseguiria igualar, mas pilotar um Azhi Dahāka — com sua mobilidade intensa — em um combate defensivo prolongado, sem pausa, cobrava um preço até mesmo dele.
Enquanto Yatrai suava no calor da cabine e pela quantidade excessiva de adrenalina bombeando em seu cérebro, sua vice-capitã pareceu sorrir de canto.
— Você sempre foi alto demais pro seu próprio bem. Tem um banho quente e uma cerveja gelada te esperando quando tudo isso acabar, então aguenta só mais um pouco. Ou prefere me usar como forma de relaxar?
— Ei, para com isso — respondeu ele, cansado.
Ela lutava ao lado dele há tanto tempo quanto ele próprio, então não havia como saber o quão exausta ela estava. Ou o quanto ele estava, aliás. Apesar disso, a donzela — tão bela quanto e bem mais feroz que qualquer cortesã lendária — riu da reação apática de Yatrai, com uma voz linda demais para o campo de batalha.
A batalha se arrastou, e a data e o ano mudaram — 2 de janeiro do ano 2151 do calendário estelar.
O combate na terceira frente norte finalmente começava a desacelerar, e essa notícia começou a se espalhar pelas demais frentes. A mídia também noticiou o fato. Comandantes nas outras nove frentes encorajavam suas tropas, e soldados animavam seus companheiros dizendo que só precisavam lutar um pouco mais, enquanto empurravam de volta para as trincheiras os desertores — que haviam interpretado as boas novas e a melhora da situação como sinal para fugirem de novo.
No dia seguinte, 3 de janeiro. Pouco antes do meio-dia, os combates no teatro de Rüstkammer finalmente cessaram. Os Eighty-Six haviam conseguido defender sua nova cidade natal.
Ao ouvir que a Legion nos setores vizinhos também começava a recuar, Shin soltou um longo suspiro de alívio. Os combates ainda continuavam em fúria por toda a frente ocidental como um todo, mas mesmo assim…
— Lena, coronel Grethe, as forças inimigas estão recuando do teatro de Rüstkammer e não há sinais de que lançarão outro ataque. As retaguardas e unidades inimigas em todos os setores também começaram a se retirar. A batalha na frente ocidental deve terminar em breve.
— Entendido. Vou relatar aos superiores, capitão… Você ainda aguenta continuar? Pode nos ajudar a coletar informações sobre os movimentos do inimigo por mais um tempo?
Vários dias de combate já haviam se passado, e apesar da habilidade de Shin ser uma precaução essencial caso a Legion lançasse um novo ataque, a voz de Grethe carregava um tom de preocupação. Você pode dizer não, se achar que não consegue.
Shin fechou os olhos. Honestamente, ele gostaria de descansar imediatamente, e estava tão exausto que só de fechar os olhos já sentia sua consciência começando a se apagar. No entanto—
— É possível… se me derem algo especial para me motivar.
Ele sugeriu doces de forma despreocupada, ao que Grethe sorriu:
— Termos aceitáveis… Você ouviu, coronel Milizé. Pode providenciar um prêmio para ele?
Lena se atrapalhou com a súbita mudança de foco para ela:
— Aaah, h-hum, sim… Eu te dou um beijo quando voltar, Shin!
…Isso foi dito pelo Para-RAID, e não pelo Processador diretamente, então não foi registrado pelo gravador de missão dessa vez. Mas, ao ouvir Grethe e os oficiais do estado-maior que estavam ouvindo tentarem conter o riso, ele ficou desconcertado.
O combate imediato terminou, e a Legion estava em retirada. Anju só conseguia observar tudo com um enorme sentimento de incredulidade.
…Acabou?
Eu sobrevivi.
Só esse pensamento já fazia sua cabeça girar, como se a realidade estivesse ficando distante.
Mas Dustin se foi.
Dustin não voltou no fim das contas.
Então por que fui eu quem sobreviveu?
Sua mente de guerreira ainda conseguia se agarrar a um fiapo de compostura, já que o fim do combate ainda não havia sido oficialmente anunciado. Se nada mais, toda a dor e arrependimento que sentia ainda não transbordavam pelo buraco que aquilo havia rasgado em seu peito.
Ela abriu a escotilha da Snow Witch e saiu cambaleando da máquina — um ato imprudente e sem sentido que podia muito bem acabar em desastre, mas ninguém a impediu. E, no fim, os combates em toda a área cessaram. Não havia mais balas perdidas ou estilhaços voando para atravessá-la.
— Anju… Anju!
Aquele chamado a tirou de seus pensamentos, e então viu Kurena correndo em sua direção. Ela pulava entre concreto quebrado e árvores caídas como um coelho, correndo até ela. Uma parte vaga da mente de Anju pensou que era perigoso correr do lado de fora da unidade. E se houvesse projéteis não detonados por ali?
Kurena agarrou a mão de Anju com força, puxando-a. Parecia uma criança à beira de chorar.
— Vem! Rápido!
— Kurena, o que houve?
Sua voz saiu apática, quase sem tom, o que pareceu ser o suficiente para fazer Kurena cair no choro de vez enquanto a puxava pela mão.
— Só vem comigo, anda logo!
Na verdade, ela já estava chorando desde que correu até ali.
— O Dustin voltou!
— …!
O choque fez Anju congelar por um segundo. Todas as emoções que ela vinha reprimindo emergiram de uma vez. Ela puxou o braço da mão de Kurena, quase de forma brusca, e então correu pelo caminho de onde Kurena tinha vindo.
O impulso de Anju ao se soltar, somado à exaustão da batalha, fez Kurena tropeçar para trás.
— Ai! — ela reclamou, mas seus lábios se curvavam num sorriso.
Graças a Deus… De verdade, obrigada, Deus.
Tohru, que passava por perto, se aproximou com um sorriso sarcástico e lhe estendeu a mão, que ela aceitou de bom grado.
— Tudo bem?
— É. Agora está tudo bem.
Tanto comigo quanto com a Anju.
Quando Kurena, com sua visão de franco-atiradora, avistou Dustin, ele ainda estava relativamente longe; no momento em que Anju correu até ele, ele tinha acabado de chegar ao portão da base de Rüstkammer. Assim que a viu, seu rosto sujo se suavizou num sorriso. Mas foi aí que Anju parou de repente.
— Dustin.
Ela não fazia ideia do que dizer. Não esteve com Dustin quando tudo aconteceu, nem foi procurá-lo depois. Ela priorizou suas responsabilidades como comandante da Pacote de Ataque em vez dele. Por isso, não fazia ideia do que dizer a Dustin, que tinha voltado por conta própria.
Dustin, no entanto, simplesmente sorriu para Anju, que permanecia parada diante dele.
Era um sorriso despreocupado.
— Anju… Que bom que você está bem. Eu só consegui voltar por sua causa.
— …Hã?
Como assim?, pensou ela. Eu não estava lá por ele, não fui procurá-lo, não fiz nada por ele.
— Eu ouvi sua voz me dizendo para voltar… Você desejou isso, não foi?
— …!
— Esse desejo me alcançou. Me fez sentir que eu precisava voltar. Foi assim que continuei vivo e consegui voltar até aqui. Talvez eu tenha trapaceado, talvez tenha sido tão fraco a ponto de precisar trapacear, mas saber que você estava me esperando foi o que me manteve de pé… Foi graças a você. Graças às suas palavras.
— Então diga a si mesmo que está fazendo isso por mim. E volte.
— Não deixe sua pureza te levar à morte. Volte para mim custe o que custar.
— Eu voltei, Anju… Eu te disse, não disse? Que não ia te deixar para trás.
Não vou fazer você sofrer de novo.
— …!
As emoções transbordaram e encheram seu coração. Algo quente escorreu por suas bochechas. Incapaz de pronunciar qualquer palavra, Anju se jogou no peito do amado sobrevivente, segurando-o com força. Seus braços se fecharam ao redor das costas dele, e, ao sentir suas lágrimas silenciosas, Dustin pensou:
Anju lhe disse para trapacear. Mas não disse para abandonar os outros ou abrir mão do próprio senso de justiça. Tudo o que ela queria era que ele voltasse vivo. Tudo o que ela desejava era que ele evitasse seguir aquela justiça, aquele senso de missão — aquela ambição arrogante e presunçosa de salvar todos ao redor até o fim — mesmo que isso o levasse ao abismo.
Mesmo que voltasse derrotado e quebrado, sem ter conseguido salvar ninguém. Mesmo que tivesse que se arrastar de volta, impotente e em parantos — ela sempre o aceitaria e o acolheria de volta.
Era só isso que ela queria fazer.
Quando conseguiu se acalmar, Anju olhou para baixo e viu uma garotinha de uns sete anos que estava agarrada à perna de Dustin o tempo todo.
— Quem é ela, Dustin?
— Ah… — Dustin parou para pensar e, brincando, pegou a menina no colo.
— Ela é nossa filha. Sua e minha.
— O que você tá dizendo…?!
Ela o cutucou de leve, mas Dustin estava tão exausto que isso bastou para fazê-lo cambalear e sentar-se no chão. Como ele ainda tinha energia para fazer piada, Anju concluiu que ele provavelmente estava bem, e decidiu ignorá-lo por ora. Então se virou para a garotinha, ficando na mesma altura que ela. Siri, que observava de longe, julgou que era o momento certo para intervir. Aproximou-se para resgatar Dustin, jogando-o no ombro como um saco de batatas.
— Você é uma Mascote, certo? — perguntou Anju.
A garota assentiu timidamente... Explicou, com a voz fraca e nervosa por estar falando com alguém que não conhecia, que o "moço legal" a havia salvado.
— Entendo. Ele é muito gentil, mas sei que você deve ter ficado com medo no campo de batalha. Você foi muito corajosa... Venha. Vamos te dar algo quentinho para comer na nossa base.
— ...Eu posso entrar?
— Claro que pode.
A garota olhou para ela, surpresa, e Anju assentiu com um sorriso. Uma pequena Mascote, sozinha no campo de batalha. Sua unidade provavelmente a havia abandonado.
— O Dustin — nosso querido camarada — trouxe você até aqui, afinal. Então vamos voltar.
Para o nosso lar.
— Meu Deus, que batalha...
— Surpreende termos saído vivos disso...
Afinal, haviam acabado de passar por aquela confusão caótica disfarçada de retirada e por dias de combates em meio ao caos, com pelotões, batalhões e divisões blindadas todos misturados.
Claude, que assentiu para Suiu da 4ª Divisão Blindada, estava sentado ao lado de Saki, que parecia exausta. Nenhum dos dois fazia ideia de por que estavam juntos, considerando que pertenciam a batalhões diferentes, ou como tinham ido parar no meio da 4ª Divisão Blindada.
Ao observarem o abrigo destruído no meio da floresta castigada pela guerra, acabaram, contra a vontade, notando as pessoas no canto.
— ...Ainda tem gente da República aqui.
— Estamos lutando há dias; por que eles ainda não fugiram...?
Refugiados da República estavam agachados num canto, tentando claramente não atrapalhar ninguém. Haviam sido pegos no meio da evacuação quando a linha de frente desmoronou e acabaram sendo arrastados para o combate. De algum modo, conseguiram alcançar a linha defensiva de Rüstkammer, de onde foram recolhidos e enviados para trincheiras ou abrigos para não causarem problemas perambulando por aí. Com tantos tiros e estilhaços voando, muitos deles não conseguiram avançar mais fundo na linha defensiva.
Até hoje, tudo o que haviam lhes dito era para permanecer onde estavam e não atrapalhar ninguém. Ainda assim, aquilo era apenas uma solução improvisada e temporária — civis não podiam continuar numa base na linha de frente ou em suas trincheiras.
— O pessoal da logística deve chegar em breve com os suprimentos, então podemos pedir que levem essas pessoas de volta.
— Eles não vão gostar, claro. Mas quem se importa?
Toda aquela conversa sobre novas minas autopropulsadas ou vírus suicidas... e a ideia de que todos da República eram traidores. Enquanto Claude refletia sobre como lidariam com eles a partir de agora, considerando essas ideias, Suiu se levantou com naturalidade.
— Se o pessoal da logística vai recolhê-los, é melhor reunirmos todo mundo. Tragam os que estão nas trincheiras.
— Você acha que consegue? Uma capitã como você deve ter coisas mais importantes pra fazer depois disso, né?
— Relaxa... Claude, não é? Você não quer acabar se metendo em confusão enquanto ainda tá cansado, certo?
O cansaço o fizera perder a paciência durante a batalha e atirar os óculos longe — agora, seus olhos prateados estavam à mostra. Suiu falou enquanto lançava um olhar furtivo em direção aos olhos dele. Em seguida, deu de ombros, como se dissesse que não havia alternativa.
— Eu sou uma capitã, afinal. Pode deixar comigo.
Mas, independentemente disso, mesmo sendo uma Eighty-Six forjada pelo campo de batalha, ela ainda era menor do que um garoto como Claude — e, comparada a Saki, seus braços eram finos e os ombros, estreitos. Claude e Saki trocaram um olhar confuso.
— ...A gente acabou de dizer que uma capitã teria outras coisas pra fazer.
— E se a gente simplesmente dissesse “sim” e jogasse tudo nas suas costas, nossa imagem ia ficar bem feia.
— Então, dito isso... pode deixar o trabalho sujo com a gente, minha dama.
Claude estendeu a mão de forma exagerada, o que fez Suiu cair na risada. Parecia a primeira vez em muito tempo que riam daquele jeito.
— Se você não sorrir, você perde, no fim das contas.
Kurena dissera isso uma vez, e Claude achava que era verdade. Então ele ia rir — mesmo que tivesse que forçar. Não ia mais se deixar levar pela tristeza, pelo desespero, ou pelo lamento.
Deve ter sido uma cena engraçada, porque Suiu levou a mão à barriga de tanto rir. Assentiu, enxugando com a ponta do dedo uma lágrima de riso.
— Nossa, isso foi tão galante que eu quase me apaixonei... Muito bem, vou contar com vocês, meus cavaleiros.
— Podia ter nos chamado de Príncipes Encantados — disse Saki, com sinceridade.
Suiu caiu na risada novamente.
Rito se virou surpreso, notando um lampejo de cabelo preto comprido no canto do olho.
O sensor óptico de Milan acompanhou seu olhar, avistando a figura de uma garota se afastando. Seu cabelo cacheado escorria pelas costas esguias, e ela usava um par de botas resistentes, grandes demais para seus tornozelos finos. Os fios longos esvoaçavam ao vento gelado enquanto ela se aproximava de um grupo de cidadãos da República.
Mesmo uma garota não ficaria tão magra depois de viver no campo de batalha tanto tempo quanto um Eighty-Six. E ela também não era uma garota de Wulfsrin — os Vargus tinham uma estrutura óssea mais robusta e uma estatura maior, fruto de gerações como soldados.
Todos das cidades vizinhas já haviam evacuado há muito tempo, e como ela tinha cabelo preto, não podia ser cidadã da República — já que eles haviam expulsado qualquer um que não fosse Alba.
O que significava que ela só podia ser—
Ele ligou o alto-falante externo e chamou rapidamente:
— ...Você!
O olhar da garota se voltou para ele. Olhos azuis, lânguidos e apáticos.
— Você é o Actaeon, não é?
Ele deveria ter aumentado o volume do alto-falante, para alertar o pessoal da República. Mas manteve-o baixo, como se tivesse medo que eles ouvissem.
A garota pareceu perceber algo e sorriu para ele.
— Ah... Você é um Eighty-Six, né? Do Esquadrão de Ataque.
Igual a mim — Eighty-Six.
Diferente de mim — Esquadrão de Ataque.
— Que bom. Fico feliz que você vá continuar vivo.
Ao contrário de nós, que vamos morrer. Condenados a morrer, não importa o quê.
— ...!
— Isso é bom. Então... Por favor. Só me deixe fazer isso.
Ela sorriu. Seus olhos azuis, tão exaustos e resignados, traziam um leve tom de lamento. Ela implorava com aquele olhar vazio e sem brilho — o olhar de uma bruxa. Até mesmo seu ódio, outrora ardente, agora se esfarelara sob a perseguição e a fuga constantes.
— Só diga que não me viu. Finja que não me notou. Ao menos me deixe ter... minha vingança.
Vingança contra a República — que me transformou em um Actaeon.
Rito cerrou os dentes.
— Eu não posso.
Ele abriu a escotilha. Não achava certo dizer aquelas palavras por um alto-falante, com o rosto escondido dentro da unidade.
— Eu não posso. Eu não quero deixar que você se torne uma assassina. Mesmo que isso seja vingança, mesmo que você deseje isso... eu não quero que você mate pessoas.
Como o Tenente Aldrecht, que virou um Shepherd para se vingar; como o fantasma dele, que andava por aí massacrando o povo da República. Ele se transformou numa máquina de matar para vingar a esposa e a filha e, mesmo assim, congelou no fim... porque nunca esqueceu o rosto da filha.
Rito não fazia ideia do que Aldrecht enfrentou nos seus momentos finais. Foi a dor? O arrependimento? O vazio?
Seja o que for, ele não encontrou satisfação. Tinha jogado fora a própria humanidade, a paz da morte, a esperança de reencontrar a esposa e a filha — e o que encontrou no fim de tudo não foi realização, nem paz.
E Rito não queria que isso acontecesse com aquela garota. Não queria que ela morresse com nada além de arrependimento, vazio e tristeza ocupando sua mente.
— Você é uma Eighty-Six, assim como eu... então eu não quero que passe por essa dor.
A boca da garota ficou entreaberta. Ela piscou uma vez, depois outra.
E então sorriu, como se não tivesse escolha a não ser aceitar. Era a primeira vez que se encontravam, mas ver aquele garoto — mais novo que ela — tentar impedi-la, como se fossem velhos companheiros, fez com que ela sorrisse como uma irmã mais velha ouvindo uma desculpa do irmão caçula.
— Nesse caso, me impeça de matá-los. Não temos muito tempo.
Você me mata.
Curiosamente, ele não sentiu nenhum conflito quanto a isso.
— Tá bom.
Era exatamente o que o Capitão Nouzen sempre fazia. Exatamente o que ele fazia com os camaradas prestes a morrer.
Ele puxou o fuzil de assalto que sua unidade carregava para autodefesa, estendeu a coronha com movimentos rápidos e mirou. As balas de um fuzil tinham velocidade inicial mais alta e peso maior, o que as tornava mais confiáveis que as de uma pistola.
Alinhou a mira com a garota. Ela fechou os olhos com um sorriso.
— Obrigada.
— É…
Ele puxou o gatilho. Alvejada no peito a curta distância, a garota desabou no chão ainda sorrindo. E então… O calor queimando sua mente, todos os pensamentos, percepções e julgamentos — tudo foi varrido.
…Hã?
Todas as cores diante de seus olhos se transformaram em um redemoinho vertiginoso e desordenado. Pontos brancos e pretos tomaram um lado do campo de visão, e então as cores pararam de mudar.
Ah, não — o vermelho se espalhava sobre o chão salpicado. Escarlate escorria em padrões aleatórios sobre o branco da neve. Um ruído agudo ecoou em seus ouvidos — ele conhecia aquele som, mas o vazio em sua mente não o deixava lembrar o que era.
Baleado, ele tombou para fora da unidade e caiu de lado na lama nevada, sem conseguir se sustentar. Mas, a essa altura, Rito já não conseguia entender o que estava acontecendo. O impacto o fez virar o rosto para outro lado — e ele viu botas militares se aproximando, entrando em seu campo de visão.
Elas pararam bem na sua frente.
Ele não conseguia levantar o rosto, mas ouviu uma voz vindo de cima. Já não podia compreender a emoção ou o significado daquelas palavras.
— Assassino.
— …?
eu sou rito
um eighty-six
então eu não sou um assassino.
(Azure: Slk mano as descrições de tudo nessa obra e incrivel e da para sentir o peso da cena.)
Ouvindo passos se aproximarem por entre as árvores quebradas, antes mesmo de Lerche se virar, seus sensores já haviam se concentrado na voz que chamava por ela e Ludmila. Os passos indicavam que o corpo pesava cerca de cem quilos, e a voz era de uma mulher. Havia algo de estranho em seu tom — soava alarmada, quase desesperada.
— V-vocês duas… Vocês são Eighty-Six…? Não, como eu deveria chamá-las? Vocês estão com esse menino…?
— Ah, não, não somos Eighty-Six — disse Lerche, virando-se.
Se aquela pessoa assumia que “Eighty-Six” era um termo depreciativo que não devia ser usado, então devia ser da República. Chegando à mesma conclusão, Ludmila virou a cabeça e o sensor óptico para observá-la também…
— Além do mais, os próprios Eighty-Six carregam esse nome com orgulho. Esse título não é uma marca de vergonha, mas…
Mas então Lerche parou de falar ao ver a mulher. Naquele momento, Ludmila sentiu como se seu coração — inexistente — congelasse de choque.
A mulher era jovem, baixa e esguia. Mas o motivo do peso calculado ser maior era porque havia alguém em seus braços. Seus braços delicados, seu peito, suas bochechas e até os cabelos cor de luar estavam manchados de vermelho. A mulher soluçava, tomada pelo choro.
— Me desculpa. E-eu… eu não consegui salvá-lo. Eu ouvi a voz dele, então eu sabia que ele estava lá… eu devia ter me aproximado. Não consegui salvá-lo, não cheguei a tempo. Ele é tão pequeno, e mesmo assim eu não consegui protegê-lo. Me desculpa, me desculpa, me desculpa…
Lerche parou ao lado de Ludmila, seus olhos Emerōd arregalados ao máximo. Ludmila não possuía um recurso que permitisse arrepiar-se… e ainda assim, tremia. Paralisada, tentou chamar pelo nome dele.
— Senhor…
Pare.
Lerche, não.
Por favor, não me lembre do nome dele. Nem desse fato.
Uma vez… Quando foi? Sim, foi a mim de antes. Ele olhou para mim com medo. Disse que não queria morrer, que tinha medo da morte. Ao olhar para nós, ele se deu conta disso. E saber disso… me deu paz — a certeza de que ele não morreria como nós morremos.
E mesmo assim… ele…
— Senhor… Rito…
O fato de nós, aves da morte, pronunciarmos seu nome não seria nada além de um presságio funesto — um desrespeito. E, ainda assim, Lerche, que sempre evitava chamar as pessoas pelo nome, o fez agora, com uma expressão vazia, atônita.
A ave da morte que jamais chamaria os vivos pelo nome havia dito o nome dele. E com isso, ficava claro — sem espaço para dúvida — que o garoto estava morto.
Acolhido nos braços da mulher, com o crânio despedaçado por um tiro, seu conteúdo, sua vida, sua identidade se derramando ali… estava o cadáver de Rito Oriya.
†
Estar quase meio enterrado na lama coberta de neve acabou sendo uma bênção. Henry rastejou para fora junto com os subordinados que haviam se escondido com ele no mesmo lugar — as mesmas trincheiras — por cerca de meio dia.
— Quantos conseguiram? — perguntou ele.
O Primeiro-Tenente Nino, o comandante da companhia que estivera ao seu lado nas trincheiras, suspirou diante da pergunta, com o rosto sujo e emagrecido.
— Você, eu, esse garoto aqui e uns dez soldados, mais ou menos.
— Eu também, se fizer diferença. E mais sete dos meus homens — disse o Primeiro-Tenente Kareli, caminhando com dificuldade até eles.
Ou seja, esses vinte soldados eram os únicos sobreviventes de duas companhias que, juntas, somavam quatrocentos homens. O restante havia sido dizimado ou dispersado.
Eles olharam ao redor do campo de batalha, coberto por cadáveres e destroços, e não havia sinal algum da Legion ou de tropas aliadas.
— A frente oeste — ou melhor, a posição de reserva de Harutari — conseguiu segurá-los. Vamos aproveitar para nos reunir com a posição mais próxima…
Mas então ele notou o semblante contraído do Primeiro-Tenente Nino e o enrijecer do jovem soldado. Isso fez Henry captar a mensagem não dita.
— …Certo. Nenhuma posição aceitaria um soldado da República, não é?
E, embora não tivesse dito em voz alta, os soldados infantis — uma minoria na Federação — provavelmente também seriam rejeitados.
O Primeiro-Tenente Nino balançou a cabeça.
— Não é por causa de você. Duvido que alguém aceite qualquer outra unidade neste ponto. Todos acham que qualquer um que não seja do seu próprio grupo é inimigo… Está todo mundo assim agora.
— Ninguém quis resgatar a gente nem oferecer fogo de cobertura… — disse o Primeiro-Tenente Kareli, amargamente. — E eles sabiam que a nossa unidade tinha ficado pra trás.
Mas, dito isso, as unidades de coleta da Legion, os Tausendfüßler, viriam antes de muito tempo. E mesmo que não viessem, era só uma questão de tempo até o próximo ataque começar. Se quisessem sobreviver, precisariam voltar ao território aliado. E ainda assim…
Quando essa realidade caiu sobre Henry, ele se pôs de pé. Hesitou por um instante, engoliu a culpa, mas se obrigou a tomar uma decisão. A vida dele não era a única em risco — e ele não queria deixar Claude com raiva de novo.
— Vamos para a base Rüstkammer — a base do Esquadrão de Ataque.
Seus subordinados o olharam com desconfiança. O Primeiro-Tenente Nino arqueou uma sobrancelha, e o Primeiro-Tenente Kareli pareceu alarmado. Mas Henry continuou, firme. Era a única coisa na qual conseguia acreditar, mesmo naquela situação. Mesmo diante de tudo, Claude e os Eighty-Six que lutavam ao lado dele…
— Eu tenho um irmão mais novo. Tenho certeza de que eles vão nos acolher.
O presidente, Ernst Zimmerman, havia retornado à sua propriedade para se recuperar, com seu vice-presidente assumindo suas funções e finalmente tomando a decisão de aprovar o alistamento militar forçado. Começando pelos evacuados dos territórios; minorias e servos que não sabiam nem escrever o próprio nome; pessoas de regiões extremamente pobres; as classes mais baixas da capital; e, por fim, até mesmo os cidadãos ricos e instruídos da capital, que apenas observavam tudo, achando-se isentos desse dever.
Quando o primeiro grupo foi convocado, o grupo seguinte não reagiu contra a lei. Pelo contrário, concordaram com ela, achando que eram uma parte mais capaz da população e diferentes dos fracos e imprestáveis.
E por causa disso, quando chegou a vez deles serem recrutados, o grupo anterior — agora soldados treinados — os reuniu sem piedade, movidos por vingança. Os novos recrutas eram menosprezados e maltratados — os que foram convocados primeiro e os que vieram depois passaram a se odiar profundamente.
Não odiavam o Senado, que aprovou a convocação; nem os grandes nobres que ocupavam o alto escalão militar. Era o mesmo método que os nobres do Império usavam para manter o povo sob controle.
E Ernst não conseguiu deter essas maquinações. Seu cargo como presidente continuava o mesmo, assim como todas as responsabilidades que o acompanhavam — mas todo o poder e autoridade haviam sido transferidos ao vice-presidente, sem qualquer sinal de retorno.
— Isso, por si só, é resultado da minha conduta até agora… então consigo entender — disse Ernst.
Confinado em casa sob o pretexto de estar se recuperando, Ernst sorriu em sua sala de estar, agora limpa das manchas de sangue. Apesar da prisão domiciliar, sua empregada Teresa foi autorizada a voltar — e, nesse ponto, era a única pessoa disposta a ouvi-lo.
Ela permanecia imóvel, com os lábios cerrados, sendo a irmã gêmea idêntica de sua falecida esposa. Desviando o olhar dela, Ernst se afundou na poltrona, suspirando. Seu rosto não era o de um firedrake (dragão de fogo) que se cansou do mundo, mas o de um pai impotente.
— Pode ser tarde demais pra dizer isso agora, mas não acho que era necessário. O alistamento e o isolamento do povo da República são inevitáveis neste ponto, e francamente não me importo com isso, então deixem que façam — mas eu queria ao menos manter meus filhos a salvo.
A balança, que antes estava equilibrada por não haver peso algum sobre ela, agora recebia o fardo da piedade familiar — e se inclinava completamente para um lado.
A 1ª Divisão Blindada, que antes era composta por sete batalhões, sofreu baixas severas, sendo reestruturada em apenas quatro. Entre os capitães, Mitsuda — que comandava o 5º Batalhão de Artilharia — havia morrido em combate. E—
— A investigação sobre o soldado que atirou no Rito está em andamento na retaguarda — disse Raiden, tentando manter a voz firme.
Shin apenas assentiu em silêncio. Parecia inabalável, mas, na verdade, mantinha os lábios comprimidos. O próprio Raiden precisava conter sua tristeza e raiva.
Rito era como um irmão mais novo para eles. Nunca imaginaram que ele pudesse morrer — e, ainda assim, teve um fim trágico e violento.
— Sim, uma morte horrível. Rito não morreu em combate. De todas as possibilidades, foi um humano — um soldado da Federação — quem o matou. O culpado era um dos sobreviventes das unidades que fugiram durante a batalha. A mulher que carregou o corpo de Rito disse que soldados da própria unidade dele foram os que capturaram o soldado, e tentaram reanimar Rito, mas acabaram apenas ficando ali parados, pois estava claro que ele não tinha salvação.
— Grethe disse que o soldado será responsabilizado e punido por suas ações. Provavelmente executado por um pelotão de fuzilamento. Um soldado da Federação pode ter matado Rito, mas o exército da Federação não aprovou sua morte. Isso era um pequeno consolo para Raiden — e Shin provavelmente sentia o mesmo.
— O oficial comandante do soldado nos enviou uma carta de desculpas. A coronel Grethe disse que não precisamos nos forçar a lê-la —
— Uma carta de desculpas, né? Vou dar uma olhada, então.
Grethe devia ter lido primeiro, então provavelmente continha um pedido de desculpas sincero, e não apenas desculpas esfarrapadas, e Shin não se sentia inclinado a rejeitá-la friamente. Ele não queria usar a morte de Rito como motivo para tratar todos os soldados da Federação como pessoas frias e cruéis. Percebendo as intenções implícitas de Shin, Raiden fechou os olhos.
— …Certo. Deixe-me lê-la depois também.
Porque, sinceramente, se fosse lê-la agora, só sentiria ódio deles. Suspirou, tentando liberar a indignação que enchia seu coração, e retomou a reunião.
— As 2ª e 4ª Divisões Blindadas também precisam ter seus batalhões reestruturados. A 3ª Divisão Blindada terá que ser dissolvida, e seus soldados remanescentes serão reorganizados nas outras três divisões.
A 3ª Divisão Blindada havia sido atingida diretamente pelo primeiro bombardeio do Morpho. Além disso, o comandante da divisão, Canaan, estava desaparecido em combate, junto com seu esquadrão Longbow, o que significava que essa divisão foi a que sofreu as maiores perdas entre as quatro. Seus números haviam sido tão reduzidos que ela já não podia mais funcionar como uma divisão blindada, e, por isso, seus sobreviventes seriam utilizados para suprir as perdas das outras divisões.
No entanto.
— Mas sobre a 3ª Divisão Blindada… os sobreviventes do grupo desaparecido de Canaan acabam de retornar.
— Achei que dessa vez, eu fosse morrer de verdade.
Canaan voltou com os sobreviventes de seu esquadrão — no total, não havia soldados suficientes nem para formar um único esquadrão. Com uma expressão exausta, Canaan falou enquanto os últimos soldados arrastavam-se de volta à base. Aparentemente, eram os últimos.
Sentado ao lado de seu Reginleif — tão danificado que até mesmo Shin ficou chocado por ele ter conseguido voltar naquela condição —, ele fez um sinal de positivo e apontou.
— Além disso… acho que ele era um capitão de batalhão enviado para o seu grupo, certo? Não sei o que ele estava fazendo tão perto da linha de frente, ou por que estava sozinho.
— Jaeger.
Ao se virar, Dustin esboçou um leve sorriso ao ver o garoto de cabelos dourados e olhos vermelhos que havia desaparecido com Citri. Ele escapara sozinho do território da Legion, sem nem mesmo uma pistola. Além disso, teve que atravessar o campo de batalha gelado ao norte, evitando os próprios soldados de seu exército, já que era considerado um desertor. Após uma jornada tão difícil, até mesmo Yuuto parecia visivelmente abatido e exausto.
E embora o próprio Yuuto talvez não percebesse, seus olhos estavam distorcidos por uma raiva tão intensa que nem sequer podia ser traduzida em uma emoção clara — não conseguia sequer se transformar em lágrimas.
— Me desculpe. Recebi sua mensagem, mas não consegui ir.
— Tudo bem — Yuuto balançou a cabeça. — Ela sabia que estava fazendo um pedido irracional.
Dustin assentiu em silêncio, compreendendo. Agora percebia que ela não o estava cobrando, nem o culpando por sua impotência. Sabia que era irracional, mas ainda assim queria vê-lo — queria vê-lo uma última vez. Mesmo à beira da morte, Citri ainda era gentil e doce.
— Posso…? Devo perguntar como foi?
— Ela se foi com um sorriso. Chorou e teve medo durante o caminho, mas no fim… ela sorriu.
— Sério? Então isso é… algo bom, certo?
Se, no final, ela conseguiu encerrar sua vida com um sorriso… Dustin ainda não sabia se isso era verdade. Talvez nunca soubesse, pelo resto da vida.
Yuuto observou seu aceno vago com o olhar atento de um corvo antes de dizer:
— Ela me deixou uma lembrança.
Mas, ao contrário do que disse, não a tirou do bolso do peito — uma fita de cabelo violeta-clara, da mesma cor de seus olhos. Ele havia notado que um fio do longo cabelo dourado dela estava enrolado na fita, e a dobrara com cuidado para que não caísse.
Dustin olhou para ele. Yuuto inconscientemente cerrou a mão direita — a mesma que segurou a dela pela última vez — e esboçou um sorriso ligeiramente provocativo.
— Não vou te dar. Eu é que vou levá-la comigo.
Então serei sua maldição.
Yuuto realmente sentia que viveria melhor com uma maldição lançada sobre si. Talvez estivesse errado por sentir isso — ou talvez tivesse razão. Ele realmente não sabia. E quando aquela maldição caiu sobre ele, foi incrivelmente doloroso.
Mas ele não queria que essa maldição fosse quebrada.
Provavelmente nunca a esqueceria, enquanto vivesse. A garota que ele não salvou — e que, mesmo assim, sorriu para ele no fim.
A declaração de Yuuto fez Dustin esboçar um sorriso dolorido. Isso era óbvio, afinal de contas.
— É… você devia mesmo. Eu não sou qualificado para isso.
Não eu, que não consegui — que falhei em escolhê-la.
Não eu, que escolhi outra pessoa em seu lugar.
— Já carrego a maldição da Bruxa da Neve. A Bruxa da Neve mirou em mim e me derrubou. Então não sou digno de segurar a mão da Citri.
A gentil maldição que a bruxa bondosa lançou sobre ele — uma maldição que o forçava a continuar vivo.
Dustin suspirou, rindo com um toque de desprezo. Sim, isso era óbvio — ele não precisava sair por aí dizendo isso. Mas Yuuto não captou essa nuance.
— Além disso… foi ela quem deixou isso para você. Porque foi você quem esteve com ela em seus momentos finais, e mais ninguém. Ela decidiu que seria a maldição que você carregaria.
Não foi?
Yuuto sorriu suavemente. Era um sorriso dolorido, que representava as lágrimas que ele ainda não sabia derramar.
— …É verdade.
Palavras e desejos. Orações e emoções. Tudo o que as pessoas direcionam umas às outras são maldições. Elas prendem nossos passos, impedem-nos de seguir em frente, distorcem o caminho à nossa frente. Fazem-nos tomar desvios errados, mudando até mesmo nossa alma de forma definitiva.
Mas… as maldições que se aceita, apesar disso — poderiam ao menos ser chamadas de amor?
A capital da Federação, Sankt Jeder, não suportou o agravamento da ordem pública causado pelos confrontos entre os residentes e os evacuados. Elementos desestabilizadores conseguiram fazer refém ninguém menos que o próprio presidente, evidenciando que a polícia da capital não tinha força para manter a paz.
Com esse pretexto, algumas divisões foram deslocadas para Sankt Jeder e seus arredores. Entre elas estavam a Divisão Leopardo Flamejante do arquiducado de Brantolote e a Divisão Fogo-Fátuo do marquesado Nouzen. Ao mesmo tempo, os meios de comunicação começaram a ser suprimidos.
Manifestações, reuniões e protestos foram proibidos. Cidadãos andando após o anoitecer passaram a ser reprimidos, com a justificativa oficial de manter os apagões e preservar a ordem pública.
Os moradores sentiam-se sufocados por verem suas vidas virarem de cabeça para baixo da noite para o dia, ao se depararem com uniformes carmesim e pretos controlando a cidade — mas não havia nada que pudessem fazer. Aquilo não era a polícia, era o exército — e divisões blindadas, ainda por cima. Mesmo que se reunissem, civis desarmados não conseguiriam enfrentá-los.
E assim, tudo o que podiam fazer era esperar, com a frustração se acumulando, sem saída.
Mas, por outro lado, havia aqueles que encaravam a visão majestosa das armas blindadas — os heroicos Vánagandrs carmesim — dominando Sankt Jeder com um genuíno senso de alívio. Aqueles acostumados a serem governados, que viam obedecer ao domínio dos antigos nobres como algo natural.
Isso significava que não precisariam mais fazer nada. Não haveria necessidade de tomar decisões, de assumir responsabilidades. Não teriam que se engajar no ato cansativo e trabalhoso de usar a própria vontade e deveres para guiar suas vidas.
Se agissem assim, os outros cidadãos não lhes perguntariam por que não agiam como eles. Os outros civis não os chamariam mais de preguiçosos ou inúteis. Os outros civis não os culpariam por todos não conseguirem viver em paz. Não teriam mais que encarar a impotência de ter que abandonar os outros.
Tudo seria tão mais simples. Tão mais pacífico.
Não deveríamos ter nos tornado a Federação. Não deveríamos ter nos tornado cidadãos.
A Federação já não dispunha de pessoal suficiente para enviar a polícia militar para o que, no papel, era apenas um setor de evacuados de segunda categoria. Graças a isso, o povo da República não precisava viver cercado por armas. Mas, apesar disso, eles enfrentavam o que, na prática, era uma espécie de campo de internação.
A discriminação contra os Eighty-Six e a ineficácia dos soldados voluntários da República. As escutas. O Actaeon. A declaração de independência que quase parecia ter sido coordenada com o ataque da Legion.
Suspeitas e acusações se acumularam, levando os cidadãos ao redor a erguerem um muro em torno do setor de evacuados. O povo da República foi enclausurado por cercas, como gado, enquanto grupos de vigilantes eram formados para impedir que saíssem delas. Os cidadãos agiam como se, ao isolar e cortar contato com o povo da República, estivessem extirpando a calamidade que caíra sobre eles. Como se, talvez, ao fazerem isso, até mesmo a Legion desaparecesse.
Como quem tenta empurrar a culpa. Como uma forma de escapismo.
— …Por que chegamos a esse ponto?
O povo da República olhava, atônito, para a cerca — construída às pressas, mas ainda assim alta demais. A altura daquele muro representava a intensidade da hostilidade dos cidadãos da Federação. Ver esse ódio convertido em forma física, escancarado à sua frente de maneira tão crua, era algo aterrador. Era o tipo de malícia que uma pessoa comum esconderia por vergonha — mas ali estava, exibida com indiferença fria e calculada, ao ponto de silenciar os republicanos em choque.
Todos à sua volta já não passavam de animais e demônios com forma humana. Não eram mais pessoas… e talvez não houvesse mais pessoas em parte alguma deste vasto mundo.
— Só queríamos viver em paz… Uma vida pacífica — era só isso que pedíamos…
— Presume-se que todos os membros do Actaeon estejam mortos, e os remanescentes dos Bleachers foram expostos. No entanto, dadas as condições da guerra e da frente interna, precisaremos que vocês três permaneçam na base do quartel-general militar.
Em outras palavras, o Segundo-Tenente Jonas Degen mantinha a fachada de uma expressão fria enquanto reprimia o arrependimento e a consciência. Já tendo visto através dessa máscara, Lena, Zashya e Annette encaravam Jonas com expressões igualmente geladas.
— Não temos objeções quanto a você comandar o Esquadrão de Ataque. Deixaremos os Dispositivos RAID sob seus cuidados, e você poderá contatá-los diariamente. Forneceremos qualquer informação necessária para o comando da guerra, incluindo sobre o teatro de operações de Rüstkammer, e eu passarei a atuar como oficial de estado-maior a partir de agora.
Jonas mantinha os olhos fixos em Lena, que permanecia em silêncio. Por mais que ela sentisse o contrário, como soldado da Federação, Jonas não podia permitir que Lena seguisse adiante com aquilo.
— Mas não podemos aprovar seu retorno à base de Rüstkammer. Coronel Milizé, Major Penrose, tenho certeza de que ambas estão cientes do colapso do exército e de como isso causou um declínio no padrão de vida. Mais do que tudo, o medo de serem aniquilados pelas máquinas de matar tem pesado sobre as pessoas, e os civis estão procurando soldados para descontar suas frustrações. Não podemos permitir seu retorno à linha de frente, em nome da segurança pessoal de vocês.
E como soldados da República, Lena e Annette sabiam muito bem do que os civis em busca de um bode expiatório eram capazes.
— Comodoro Ehrenfried.
Willem compreendia, com amarga clareza, que durante a terceira ofensiva em larga escala, a estrutura organizacional das forças armadas da Federação havia colapsado por completo. A Federação, seu exército e seus soldados se despedaçaram pelo medo, fragmentando-se em facções.
A nobreza — que outrora governara o povo por meio do monopólio da força e da violência, e mantinha seus privilégios assegurados por laços de sangue — havia sido abolida com a revolução. Isso significava que o único elemento restante que mantinha a Federação unida — a percepção dos cidadãos de que eram companheiros entre si — havia sido destruído pelos próprios cidadãos.
A essa altura, a Federação era apenas uma carcaça, um país só no nome. Uma grande massa de pessoas que não se unia como nação. Pessoas que só enxergavam os defeitos umas das outras, ocupadas demais com desprezo, inimizade e desconfiança para cooperar — um agregado disforme de pequenos e impotentes grupos.
E o mesmo podia ser dito do exército. Ele havia se fragmentado em facções que se odiavam e se viam como inimigas: soldados da Federação e voluntários; Vargus e civis; ex-nobres e ex-plebeus; gente do interior e gente da cidade; veteranos e reservistas.
— Comodoro, esta é minha decisão. Minha ordem, minha responsabilidade e meu crime.
E com essa consciência, o tenente-general que comandava todo o exército da frente oeste deu sua ordem. Ele a emitiu para Willem, que havia sido destituído de seu cargo de chefe do estado-maior e, portanto, não podia dar essa ordem por conta própria.
Era uma ordem para garantir que os soldados da Federação — que já não podiam mais ser esperados para cooperar, se unir ou sequer lutar nas mesmas trincheiras — ainda cumprissem seu dever de defender a nação.
Uma ordem para assegurar que eles pudessem repelir, mesmo que por pouco, a invasão do Legion no futuro.
— Entendido? Você não teve envolvimento nesta decisão. Você se opôs ao seu superior cruel e, por isso, foi destituído do cargo. Apenas um comandante fez a escolha errada diante deste cenário, e nenhuma culpa recai sobre o exército da frente oeste como um todo.
...E, ainda assim, Willem pensava que aquilo era apenas escapismo disfarçado de sacrifício. Inércia camuflada de frieza. Recorrer à crueldade era o caminho fácil, e ceder a esse tipo de pensamento não era algo que nobres e comandantes como eles tinham o direito de fazer.
— Você acha que isso é escapismo, não é, Comodoro? — perguntou o tenente-general, com firmeza.
Willem o encarou, surpreso com o fato de seu superior ter lido seus pensamentos com tanta clareza. O tenente-general o fitava diretamente, com os olhos carmesim ardendo.
— E é exatamente isso. Isto é escapismo. Um ato imperdoável de inércia. Por isso, você deve continuar lutando.
Os olhos carmesim flamejantes de um Piropo — um Piropo para se opor a Willem, um Ônix.
— Zombe de mim por ser preguiçoso e apático, um velho patético que fugiu de suas responsabilidades. Ganhe mérito o bastante para ter esse direito... Eu não tenho mais tempo, mas você ainda tem. Tempo suficiente para combater o escapismo, a inércia, a intolerância que dominam este país.
Você, que consegue reconhecer o escapismo tolo pelo que ele é.
Willem fechou os olhos, demonstrando sua concordância e respeito por aquele velho general.
— Sim, senhor.
— Não — respondeu Lena friamente. — Isso não é tudo, não é, segundo-tenente? Na verdade, essa é a verdadeira razão.
Um Eighty-Six atirando em uma civil — e ainda por cima, uma jovem garota.
No instante em que viu isso, o soldado da infantaria blindada disparou imediatamente contra o Eighty-Six. Essa era a reação natural de um soldado honrado, com o dever de proteger civis indefesos. Ele até lamentava não poder usar seu fuzil de assalto pesado, inutilizado após longos combates, e ter que recorrer ao fuzil reserva. Mas os projéteis de 12,7 mm foram mais do que suficientes para despedaçar o Eighty-Six.
No entanto, quando o corpo da garota explodiu no momento seguinte, o soldado da infantaria blindada entendeu seu erro. E, embora soubesse o que havia feito de errado, não havia como voltar atrás. O Eighty-Six havia atirado contra um Actaeon, o que significava que ele estava apenas tentando defender os civis de uma arma suicida... e o soldado blindado o matou por isso.
Ele o matou — e não havia como desfazer isso. Ele era um assassino. E, pior ainda, aquilo não era apenas um assassinato. Era fragging: matar um companheiro de armas. E o exército odiava fraggers mais do que qualquer outra coisa.
O soldado não conseguia aceitar isso.
Quando o imobilizaram e começaram a acusá-lo, ele se recusou a admitir qualquer culpa. Eu não sou um assassino, disse ele. Não foi fragging. Aquele Eighty-Six matou uma garota indefesa. Só por acaso ela era um Actaeon, e talvez ele só quisesse parecer que ela era uma ameaça, para justificar o que fez.
Então talvez eu tenha matado ele, mas não foi assassinato. E não foi fragging.
E assim, antes de ser entregue à polícia militar, o soldado encontrou uma oportunidade e passou as filmagens para um fotógrafo de guerra imprudente que havia se infiltrado no campo de batalha. Para contar ao público que ele não fez nada de errado.
Para dizer a todos: Eu vi o que vi. Então fazia sentido atirar.
As famílias do povo foram levadas embora, e eles se viram mais uma vez sob um regime de baionetas e botas militares. E a razão para isso foram duas derrotas em rápida sucessão. A Federação estava, agora, completamente cercada pelas máquinas assassinas, que se aproximavam cada vez mais, momento após momento, sem ninguém para detê-las. A situação era puro terror.
E foi por isso que as caçadas aos Actaeon não cessaram.
As verdadeiras garotas Actaeon já estavam todas mortas, mas bastava alguém apontar para outra pessoa, dizendo que ela estava infectada, para que ninguém conseguisse impedir a população de se unir para expulsá-la. O governo anunciava repetidamente que não existiam novos modelos de minas autopropulsadas nem vírus de atentado suicida, mas os ataques contra os evacuados, as minorias, as famílias de soldados e os soldados feridos não paravam.
Não era apenas uma questão de ser difícil erradicar os rumores — era que a ideia de uma nova mina ambulante ou de um vírus suicida dava às pessoas uma justificativa aceitável para afastar os indesejáveis. Era uma ferramenta conveniente para extravasar sua raiva sob o disfarce de justiça.
Uma garota Celena, cuja irmã se alistou e morreu em combate, foi expulsa da escola. Famílias que adotaram crianças Actaeon ou crianças monitoradas por escutas foram alvo de abusos verbais e perseguições, até serem forçadas a deixar a cidade. Minorias tiveram suas casas incendiadas, e hotéis que abrigavam evacuados sofreram tanto assédio que acabaram desistindo de funcionar como pontos de refúgio.
Tudo isso levou a um agravamento da ordem pública, aumentando ainda mais o descontentamento e a ansiedade dos cidadãos. Os Actaeon já não bastavam. O povo precisava de um crime mais claro, de um mal mais definido para perseguir.
Pecadores imperdoáveis, irremediáveis — um “outro” diferente, que pudessem culpar por tudo de forma ruidosa e orgulhosa.
Como a República, por exemplo. Ou como…
…a unidade de elite de heróis que foi salva pela Federação, mas falhou em evitar essa derrota. Aqueles que feriram pessoas — como escutas, como Actaeon, como Legion.
Os berserkers sedentos por combate, nascidos da República, do Setor Eighty-Sixth.
A transmissão de TV apresentou aquilo como uma filmagem chocante — o momento em que Rito atira na garota Actaeon. Apenas aquele momento, sem nenhum contexto. A cena havia sido extraída do sensor óptico do infantaria blindado. Quando Raiden se levantou, chocado com o fato de o exército ter deixado isso vazar, o âncora continuou seu relato com uma indignação equivocada e entusiasmo.
Imagens em vídeo da Esquadrão de Ataque — dos Eighty-Six — matando uma inocente. Prova divisiva de que eles também eram inimigos.
Os Eighty-Six eram os arqui-inimigos da humanidade.
Eles se tornaram Legion por vontade própria, juntando-se às máquinas assassinas.
Conspiraram com os Legion como escutas.
Transformaram-se em Actaeon, matando incontáveis civis inocentes por toda a Federação.
E, em meio ao combate, mataram civis. Provavelmente já haviam matado inúmeros soldados da Federação até então. E foi por isso que a Federação começou a perder batalha após batalha desde que eles apareceram.
Perdemos por causa deles.
Eles são traidores. Viraram as costas para a humanidade, tornando-se animais determinados a nos caçar. Os maiores pecadores de todos.
…Foram eles que mataram Rito.
Foi um soldado da Federação que tirou sua vida, e ainda assim o povo da República escolheu ignorar esse fato, se fazendo de vítima. Assim como sempre fizeram, pintaram a si mesmos como vítimas enquanto permaneciam voluntariamente cegos aos próprios crimes.
— Isso só pode ser uma piada de mau gosto…
Os chefes de estado-maior e vice-comandantes de cada frente — incluindo o chefe de estado-maior da frente oeste, Willem Ehrenfried — foram destituídos de seus cargos um após o outro. Sempre com a mesma justificativa: insubordinação.
Todos eram generais promissores, subordinados diretos ou considerados os futuros sucessores dos comandantes supremos de suas respectivas frentes.
Depois de afastar seus sucessores mais promissores, todos os quartéis-generais das frentes emitiram a ordem.
— Como eu sou a Rainha dos Eighty-Six, vocês me mantêm aqui na capital como refém para que eles continuem sob controle. Para coagi-los a obedecer à vontade das Forças Armadas da Federação, embora seja natural que se sintam indignados, ressentidos e até inclinados a se rebelar.
Com os Eighty-Six se tornando tanto um escape para a frustração do povo pela derrota, quanto alvos de sua suspeita e desconfiança, eles não podiam mais retornar à Federação, tampouco lutar ao lado dos soldados federados.
— Para evitar que os Eighty-Six traiam ou se oponham a vocês. Para garantir que continuem sendo a sua arma contra a Legion, como têm sido até agora. É por isso que vocês me mantêm como refém.
— …Pequeno Undertaker.
Ele ainda se irritava com aquele apelido, mesmo agora, mas já estava acostumado. Ao ouvir Shiden chamá-lo, Shin se virou para ela, com o olhar tão exasperado como sempre.
No entanto, Shiden não estava olhando para ele; em vez disso, fitava com desconfiança a janela, observando o céu a leste.
— Aqueles são aviões de transporte? Sou só eu, ou eles são diferentes dos que costumamos ver?
Nem era uma questão de serem diferentes ou não, já que não havia voos programados para aquele dia. Também não havia sinais de movimentação na pista da base, o que significava que não haviam recebido informações sobre pousos de emergência.
Shin se aproximou da janela, desconfiado. Os aviões eram realmente diferentes — não só quanto ao modelo, mas também pela quantidade. Voavam em formação, dez aeronaves vindas do leste, onde ficavam as bases ao redor de Sankt Jeder.
Parecia que não tinham negócios em Rüstkammer, pois faziam uma rota a uma boa distância, com as laterais expostas. As portas de suas fuselagens alongadas se abriram para fora. Shin reconheceu aquela estrutura. Não eram aviões de carga; eram bombardeiros. Tinham o mesmo mecanismo dos bombardeiros que haviam realizado um ataque suicida no campo de batalha nevado do Reino Unido.
…O que bombardeiros estavam fazendo ali?
Estariam se preparando para lançar bombas tão longe atrás das próprias linhas de frente?
Mas, então, um momento depois, ele percebeu. E a realização fez cada poro de sua pele se abrir e todos os pelos de seu corpo se arrepiarem.
— Coronel!
Ele se conectou com Grethe, irritado demais para ajustar as configurações do Para-RAID. Normalmente, não entraria em contato diretamente com Grethe, preferindo avisar seu assistente para informá-la de que ele a estava procurando, mas agora não era hora para formalidades.
— Capitão Nouzen?! É a Legion…?
— Não, mas é urgente! Reúna toda a unidade e todos os esquadrões Vargus imediatamente!
Ela associou a urgência das palavras dele e o contato direto com a habilidade que ele possuía, mas Shin a interrompeu. O fato de que ela confiava nele o suficiente para ouvi-lo, apesar da confusão, era algo pelo qual Shin se sentia sinceramente grato.
Eles também tinham sorte de que os ataques intermitentes da Legion, que vinham ocorrendo desde a retirada, haviam cessado na noite anterior. Isso dava tempo para o Esquadrão de Ataque se reagrupar, e Shin queria evitar que os membros da unidade presenciassem aquilo no meio de uma batalha.
— Farei o reconhecimento enquanto isso — por favor, assuma o comando da unidade como comandante de brigada antes que comecem a especular ou se dispersar por causa de desinformação!
Desta vez havia muito mais pessoas do que da outra vez. Manter todos reunidos exigiria experiência, habilidade e conhecimento. Não podiam se dar ao luxo de demorar para reagir inicialmente.
Pelo canto do olho, ele viu Shiden, que percebeu o que ele estava dizendo e se virou. Ela gritava no Para-RAID — “reúnam-se, agrupem-se, avisem os outros” — enquanto ordenava aos pesquisadores e trabalhadores civis que não possuíam Dispositivos RAID que corressem. Até mesmo a menor perda de informação, até mesmo uma única pessoa relutante em compartilhar inteligência e cooperar, poderia ser fatal para o que estava por vir.
O sinal para a aproximação não programada das aeronaves soou… Ele sentiu que Grethe deixava sua mesa, provavelmente tendo sido informada pela torre de comando da pista. Ouviu o suspiro incrédulo dela ao olhar pela janela, quando também percebeu o que estava acontecendo.
— Estamos sendo isolados da Federação continental. A frente ocidental… todas as frentes da Federação estão prestes a se tornar o Setor Eighty-Sixth!
Os pássaros metálicos liberaram suas entranhas explosivas. Bombas caíram do céu, chovendo sobre a retaguarda da linha de frente. Elas despencaram, fincando-se no solo. Não explodiram, e isso porque não haviam sido lançadas para atingir inimigos de cima.
Minas de disseminação.
Uma arma que se ativava ao detectar um humano, um veículo ou um tanque — e, ao fazê-lo, impedia o avanço e a retirada de unidades militares. E incontáveis delas haviam sido lançadas e espalhadas muito atrás da base do Esquadrão de Ataque em Rüstkammer, dos alojamentos do povo Vargus na cidade de Fortrapide, e da linha de reserva em Harutari.
Exatamente como a República, certa vez, instalou muros e campos minados para garantir que os Juggernauts e suas “unidades de Processadores” não pudessem recuar do campo de batalha.
Apenas quando a primeira camada dessas linhas foi estabelecida — e o exército da frente ocidental e todas as forças da Federação foram bloqueadas de recuar — é que a ordem foi transmitida. Diante de todos os membros da unidade, Grethe não escondeu a verdade.
De agora em diante, o Esquadrão de Ataque deveria defender a base de Rüstkammer até o amargo fim. Não lhes seria permitido recuar. A mesma ordem foi dada a todas as unidades em todas as frentes. Isso, é claro, gerou uma explosão de raiva e descontentamento, mas, com o campo minado prendendo-os no campo de batalha, suas reclamações não chegariam ao outro lado.
Eles não poderiam retornar para seus lares pacíficos.
Teriam que repelir a invasão da Legion para proteger as pessoas que os haviam abandonado, e os soldados no campo de batalha não tinham outra forma de sobreviver senão obedecer às ordens e lutar. O outro lado tinha controle sobre seus suprimentos e sua rota de fuga, enquanto a Legion avançava bem diante de seus olhos. Não tinham meios nem oportunidade de se rebelar contra sua pátria distante.
Seu caminho à frente estava fechado pela Legion — suas costas, cercadas pela malícia da humanidade.
Essa situação não era diferente do campo de batalha da República, outrora chamado de Setor Eighty-Sixth.
Nota do tradutor
Azure: E pessoal que capítulo incrivel e preocupante tambem, agora e esperar o proximo volume ser lançado que sera no fim do ano, então vejo vocês novalmente em breve!
Aproveitando para avisar que a Mahou Scan agora se chama Katzenfallen, espero o suporte de vocês nesse nova jornada!
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