Volume 1 – Arco 1

Prólogo: O Bárbaro

O gigante seguia um rastro de sangue na trilha com seu machado em punhos. Perto dali, não se via um único ser vivo além dele; não que existisse alguém corajoso ou burro o suficiente para isso. Decerto até as árvores pareciam se afastar dele, mesmo sem ventar.

Tinha a altura de dois homens e a arma que carregava era quase metade de seu tamanho. Mas andava mancando, visivelmente ferido. Seja lá o que no mundo conseguira machucar aquele gigante, seria prudente manter-se o mais distante possível.

De qualquer forma, aquela lerdeza só o deixava mais ansioso e por isso mais firme segurava sua arma. Seus olhos, quase escondidos pela juba negra, fixavam sonhadores o pico do monte à frente.

— Ragnar! — gritou o gigante enquanto balançava seu machado, uma forma de anunciar sua chegada e também de explodir sua raiva. 

O grito assustou até mesmo os animais alados, que voaram para longe dali. Sua excitação fora tanta que quase partira o cabo de seu machado em dois. Suas tatuagens nos braços ficaram estranhamente mais vivas, como se estivessem em brasa.

Ragnar! — berrou o bárbaro mais uma vez, as suas veias saltadas no pálido pescoço.

Quando chegou na extremidade mais alta do monte, se deparou com uma entrada enorme que dava a uma caverna. Haviam também duas esculturas estranhas — meio-homem, meio-animal — que se posicionavam como guardiãs aos dois lados do arco.

Ele ficou parado por um tempo, absorto em uma análise cuidadosa. Talvez calculasse se deveria entrar ou não, já que não dava para ver muito adentro, embora a passagem estivesse aberta. O sol conseguia iluminar poucos metros. O resto era uma penumbra medonha, não natural. Poderia ser uma armadilha.

Após um curto momento, resolveu pôr o machado mais junto ao peito e adentrar a caverna. Ele parou antes de ser engolido totalmente pela penumbra. Olhava de esguelha de um lado a outro, com os olhos apertados e desconfiados. Então encheu o peito e gritou:

— Rag…! — Mas, antes que pudesse terminar, uma saraivada de morcegos se debandaram do teto e por isso recuou com alguns passos incertos, se protegendo. E, quando o último alado saiu voando, um vulto do teto se lançou sobre ele com um berro agudo.

O gigante desviou por pouco. Levantou sua arma e golpeou no ar a criatura a jogando para frente da caverna. A perna machucada do bárbaro tremeu em protesto, então se apoiou no machado.

— Morra! — gritou o gigante, ofegante.

— Não! — uivou o oponente. Estava no negrume e não podia-se ver nada além de sua silhueta, mas falava em um tom choroso. — Como foi que me achou?

Estava jogado em cima de degraus de escadas que davam até uma espécie de altar; dos lados haviam outras esculturas como às duas da entrada; e acima, de onde a criatura o atacou, haviam diversas estalactites apontando ameaçadoramente para baixo, como lâminas enormes e afiadas.

— Eu — continuou o bárbaro — posso sentir seu cheiro podre a distância, criatura imunda!

— Não! Piedade! Por favor! Piedade! — implorou enquanto ofegava. 

A testa do bárbaro se franziu, ele puxou seu machado em posição de combate e disse furioso:

— Não pense que vai me enganar com suas súplicas! — A distância entre os dois diminuia gradualmente enquanto falava. E sob seus pés ouvia-se o chão fazer um barulho incomum, como se não pisasse em solo firme e sim em outra coisa. O bárbaro não pareceu notar, pois, continuou: — Vi você partir meus irmãos como se fossem nada! Vi o que fez a minha…! — Ele parou de se aproximar, aparentemente de má vontade. Então disse: — Minha família, Ragnar! Vai pagar… pelo que fez!

Aquela altura, a escuridão já se havia convertido em uma meia-luz. E deu de ver Ragnar: Seu corpo era coberto de pelos enegrecidos; suas pernas eram como patas traseiras de uma cabra; seu torso e braços eram quase humanos, ossudos e esticados; e tinha uma cabeça com chifres ondulados projetados para fora do crânio.

Por mais assustador que fosse, agora a criatura encontrava-se deitada pateticamente sobre os lances da escada, ofegante e apreensiva. Pressionava a mão, que mais parecia uma tarântula, sobre uma ferida recém-aberta nas costelas.

— Tolo! — exclamou a criatura, agora parecendo mais irritada do que chorosa. — Dei uma última oportunidade para você me dizer...

— Tolo? — interrompeu o gigante. — Tolice foi deixar você viver. Deveria ter arrancado sua cabeça há muito tempo, como fiz com seus amigos.

A criatura se levantou mais rápido que os reflexos do bárbaro. Ela pisou no chão e uma onda de impacto se espalhou pela caverna, que fez as estalactites balançarem ansiosas.

— Bárbaro, o que te faz pensar que tenho medo de você? — continuou Ragnar, a criatura não parecia dar atenção a qualquer outra coisa. — Seus gritos não são ameaça para mim! E seja lá quem foi que o ajudou a tentar me matar, saiba que também não tenho medo dele!

O bárbaro não parecia encarar o oponente. Mirava, lívido, em direção às costelas da criatura, onde acertara o golpe. Mas agora só tinha uma leve marca, uma cicatriz.

— Não precisei de ajuda para acabar com seus homens — disse o bárbaro, com voz firme, o corpo em posição de combate. — Nem vou precisar de ajuda para arrancar sua cabeça…

— Não minta para mim!

E a criatura se jogou de uma vez para cima do bárbaro de cima a baixo, tão rápido que ele mal teve tempo de rolar para trás. Suas costas foram arranhadas pelas garras da criatura, que encravaram no chão. 

Como a criatura podia se mover tão rapidamente? Parecia que uma mão invisível a carregava de um lado a outro da sala. Embora fosse mais magra que seu oponente, não poderia ser tão rápida, poderia?

O bárbaro se levantou depressa, girou o corpo, brandiu seu machado em direção a criatura. Ela desviou com velocidade e voltou para seu lugar inicial.

O bárbaro apoiou o antebraço sobre sua arma mais uma vez enquanto contorcia suas costas. O corte feito pelas garras de Ragnar queimava sua pele e fazia a área fervilhar. A demonstração de fraqueza não passou despercebida pela criatura.

— Dói, não é? — Não tirava os olhos de cima do gigante. — Foi assim que seus irmãos morreram, bárbaro. Partidos em dois como bonecos de palha. Agora, vou perguntar apenas uma última vez: Quem foi que o enviou? Foi aquele escriba imprestável, não foi?!

Um bufo saiu das narinas do bárbaro enquanto se colocava de pé e empunhava seu machado com mais força. Suas tatuagens pareciam acender. — Você foi derrotado por mim, seu fracassado! Você e aquelas suas criaturas imundas!

— Só os matou porque fui desatento! — gritou Ragnar, estufando o peito. Expressava toda fúria que sua cara animalesca permitia.

— Cale a boca! — E o bárbaro deu um impulso para frente, mas era um fingimento. Ragnar caiu na finta e se atirou, tão rápido quanto da última vez. 

E então os olhos do bárbaro brilharam numa cor escarlate muito forte. Foi num piscar de olhos. Quando a cor voltou ao normal, foram as tatuagens em seu corpo que pegaram fogo. Então ele chutou o chão com toda força que pôde. 

Toda a caverna vibrou e o chão fez sinal de que se partiria. O teto balançou. A criatura recuou sob efeito da onda de impacto. Agora o ar estava mais quente em volta do bárbaro que agora voltara à sua habitual palidez.

Ragnar tinha uma expressão assustada, os olhos saltados. E depois de alguns segundos de preocupação, a criatura bufou em desprezo e deu uma risada canina. Abriu novamente suas asas e disparou à frente.

Em seguida o que aconteceu também foi muito rápido. Uma estalactite enorme caiu diretamente sobre Ragnar. Mas não exatamente em cima da criatura e sim sobre uma de suas asas. Isso explicava sua velocidade incomum; e o motivo de não ser facilmente visível era por conta de sua cor escura, idêntica às das paredes.

De qualquer forma, não houve tempo de comemoração, pois o chão afundou enquanto a criatura, desesperada, caiu na cratera que ia se abrindo. O bárbaro correu para longe do buraco que continuava a enlanguescer e quando viu que não conseguiria escapar se jogou na cabeça de uma das estátuas.

Conseguiu se manter agarrado na cabeça de um homem meio-cobra enquanto via o piso quebrar como uma casca de ovo e desaparecer em uma queda sem fim. Se estava com alguma expressão de alívio por trás da barba, não ficou com ela por muito mais tempo.

Ouvi-se um estalo e um solavanco vindo da estátua. Lentamente ela se inclinava para dentro do buraco, e, sem apoio, o bárbaro deslizou e caiu no poço sem fim. Ele rodou pelo ar enquanto tentava, desesperadamente, manter seu machado em mãos.

Ragnar chegou até ele usando sua última asa para manobrar no ar. Os dois se atacaram enquanto caiam, a criatura com maior vantagem. O bárbaro rodou, virou e girou enquanto batalhava. Recebia novos arranhões e cortes feios por todo o corpo.

E pela segunda vez seus olhos brilharam em escarlate e então escureceram depressa. Marcas de fogo em sua pele emergiram. Ele agarrou a asa boa da criatura com uma facilidade assustadora e puxou com força. Sangue espirrou. Ragnar tentou se livrar, entretanto, o bárbaro puxou com mais força e a asa fora arrancada.

E enquanto batalhavam, nenhum deles parecia notar uma luz no fundo do poço, como uma estrela longínqua, que ia aumentando de tamanho cada vez que caiam. Até que...

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O fôlego do gigante saiu de seus pulmões. Tentava respirar, mas tudo que conseguia era engolir mais água. Estava dentro de um lago escuro enquanto Ragnar o estrangulava e o cortava com suas garras. 

O bárbaro não ficou parado por muito tempo. Com a mão livre segurou um dos chifres da criatura e cortou-o com um golpe. Ragnar se contorceu dentro d'água. O bárbaro enfiou o chifre no peito peludo do oponente, depois chutou a criatura para pegar impulso até a superfície. As marcas de luz pelo corpo apagadas.

Quando finalmente chegou, respirou como se nunca tivesse feito. Enquanto nadava até a margem, ouviu o barulho de algo emergir da água junto de um berro ameaçador. Quando o gigante se virou, viu seu oponente nadando em sua direção.

Mas a estátua que o bárbaro havia falhado em se apoiar caiu exatamente onde a criatura estava e o devolveu ao fundo do lago. O gigante se afastou enquanto examinava o poço, evitando que alguma outra coisa também caísse sobre ele.

Com dificuldade, subiu a margem e viu que ali embaixo havia outra caverna. No fundo dela, ao invés de possuir um altar, havia um trono velho e dourado. Era fácil de ver ali, pois estranhos cristais, encontrados nas paredes e no chão, emitiam uma luz branca embora um tanto fraca.

Então caminhou em direção ao trono enquanto arrastava seu machado. Andava tão lento quanto antes e respirava asmaticamente. Não parecia ligar que seu corpo estivesse coberto de feridas profundas. Também havia um líquido negro e estranho que era difícil discernir se era seu sangue ou da criatura.

O sangue indefinido caiu sobre as pedras de luz e fez a cor delas modificarem para uma cor escarlate. No entanto, ele não pareceu ligar muito para isso também. Mirava convicto para o trono, mal notando que veias negras saíam das feridas e cobriam sua pele pálida.

Quando já estava chegando, ouviu-se um barulho na água. O bárbaro se virou devagar e viu Ragnar saindo do lago, coberta de sangue. Cambaleava ofegante e com o chifre ainda no peito. Aparentemente não conseguira tirá-lo. Um de seus braços balançava, inutilizável. O outro, porém, estava ameaçadoramente funcional.

— Q-quem é v-você? — perguntou a criatura, cada passo que dava parecia mais firme que o anterior. — Q-quem... e-enviou? 

O bárbaro não respondeu. Ele inspirou profundamente, o rosto contorcido de raiva, e soltou um rugido que ecoou por toda a caverna. Apertou o machado e com esforço se colocou em posição de ataque

Ragnar paralisou por um tempo, receoso de continuar. Depois também soltou um berro e corajosamente se atirou… e com um único golpe cravou suas garras no coração do bárbaro. Por um tempo os dois se encararam. 

Uma feição estranha enfeitava a fuça da criatura, mesclava o divertimento e a surpresa. O bárbaro, por outro lado, o encarou com um estranho olhar cansado. Então seus olhos brilharam mais uma vez em vermelho.

Ouviu-se o barulho de ossos se partindo e gritos de dor. O cheiro de sangue e carne impregnou o ambiente. Depois sentiu-se o vibrar de algo pesado caindo no chão com um baque surdo. Então houve silêncio. Um intenso silêncio que só foi desmanchado ao som de passos.

O gigante se apoiou nos braços do assento, fincou seu machado no chão e relaxou no trono. Os olhos, novamente negros, se fechando lentamente. Então um novo silêncio.

— N-nome...? — disse um uivo distante, um sussurro assombroso.

Seus olhos se abriram e viu deitado ali no chão a criatura, que estava com os dois braços quebrados, ossos expostos. Dividida em dois com um corte diagonal que descia de seu pescoço até a barriga. Ela encarava o teto, mas ainda sussurrava com clara dificuldade. 

— Seu nome… M-me… dê seu nome. — Quanto mais tempo passava, mais ficava óbvio que estava se recuperando.

O gigante contemplou a criatura com uma expressão irritada enquanto sua respiração já sumia. Voltou a fechar os olhos, ignorando os sussurros da criatura. As veias negras tomavam conta de seu corpo. E de repente tudo ficou frio e escuro.

Então uma dor lancinante irrompeu do peito de Diego. Estava banhado em suor. Caiu da cama desesperado, bateu a boca no chão e vomitou no piso de madeira. Dobrava-se de dor enquanto mergulhava a mão no peito para reprimir a queimação. Queria morrer. E naquele momento preferiu que seus tios lhe dessem mais veneno.



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