Volume 1 – Arco 2

Capítulo 6: Viravolta

Diego estava mais uma vez no chão. Julgava estar em uma situação muito constrangedora com aquela menina em cima de seus braços.

— Sai de cima de mim!

— Sim, sim — dizia ela com a voz preguiçosa enquanto se levantava, ficando de joelhos no chão. — Eu sinto muito por isso, mas era preciso. Acredite em mim, você quase se meteu em uma grande encrenca.

Ela penteou os cabelos encaracolados cor de fogo para trás das orelhas, e Diego pôde ver com mais atenção o rosto pintado de sardas da moça. A moça, ainda sentada ao chão, começou a vasculhar suas coisas na mochila com o olhar deslumbrado.

O rapaz da cicatriz se levantou e a encarou de cima para baixo. Ele a viu tirar um laço negro de dentro da mochila e usar para amarrar seus cabelos em um rabo de cavalo.

— Penso que está tudo em ordem — disse ela enquanto fechava a mochila. Assim que o fez, estendeu a mão para o rapaz a sua frente. — Poderia me ajudar a levantar?

Diego a encarou por alguns segundos e ficou simplesmente espantado com os olhos amarelos da moça; coisa da qual nunca vira na vida. Ele a ajudou a se levantar.

Agora em pé, o rapaz da cicatriz pôde analisar melhor o jeito da moça. Ela se vestia com modéstia; até mesmo Mini tinha uma aparência mais espalhafatosa. Seu único diferencial era um colete negro por cima da roupa, uma camiseta branca com algumas manchas, pés descalços e calças com alguns remendos.

— É verdade, posso lhe perguntar algo?— Ela esboçava  um sorriso de boca fechada. — Como foi que a porta lhe ofendeu?

— Ela não abria! — indignou-se o rapaz. Já estava farto de piadas.

— É claro! — disse ela com simplicidade. Seu sorriso ainda continuava. — Penso que você é um calouro, então não sabe, mas quando o sinal toca você tem apenas alguns minutos para entrar na academia. Se não entrar, as portas só se abrem para quem tem os cartões de acesso.

O rapaz soltou uma exclamação enquanto se lembrava do estranho dispositivo na maçaneta da porta. Aquilo era um lugar para pôr um cartão, não para falar.

— Mas me diga — continuou a moça — como deduziu que conversar com a porta faria ela abrir?

— Eu não estava conversando com a porta! Só achei que… Pera aí! — O rapaz fechou os punhos. — Você estava me vendo esse tempo todo e não disse nada?

— Sim, sinto muito. Mas se não fosse por isso, você estaria num sério problema agora. — A menina inclinou a cabeça enquanto fechava os olhos em um sinal de desculpas. — Fora que é muito raro ver alguém conversar com uma porta.

— Eu não estava conversando com a porta!

A garota deu mais um sorriso de boca fechada enquanto encarava o rapaz com seus olhos amarelos. 

— Penso que seja bom nos apresentarmos, a menos que queira ser chamado por um apelido como Amante-De-Portas. — Antes que Diego pudesse fazer mais uma reclamação, ela estendeu o braço em cumprimento. — Eu me chamo Rafaela Petterson, mas todo mundo me chamam de Raposa… ou Rafa.

O rapaz ignorou a estranheza da menina, que esboçava sempre um olhar distraído com qualquer detalhe irrelevante.

— Diego, Diego Murdock. 

Assim que estendeu a mão, Rafaela puxou seu braço e o empurrou para o chão mais uma vez, para trás dum arbusto que ficava logo ao pé do prédio.

Mais uma vez com a ruiva jogada sobre si, o rapaz tentou protestar, porém a moça tampou sua boca com uma das mãos enquanto fazia um gesto de silêncio com a outra. Seus olhos âmbares, agora desconfiados, miravam os seus.

Após alguns segundos de intenso silêncio, onde tudo que ouviam era o farfalhar das folhas, Diego reconheceu passos muito distantes. Julgou que poderia ser alguém vindo.

Ele empurrou as mãos dela e indicou com a cabeça que compreendeu o sinal. Os dois se levantaram um pouco, achando um lugar perfeito por entre os arbustos para ver quem se aproximava. 

Havia um caminho ligado a lateral de um dos prédios menores até a lateral do prédio principal. Esse caminho tinha uma cobertura que protegia seus pedestres do sol ou da chuva, mas sua peculiaridade era outra: O trajeto tortuoso.

— Mas o quê é isso…? — Diego cerrou os olhos a fim de entender o que via.

— É verdade, esse é um dos Caminhos Ziguezagueantes — comentou a menina, baixinho.

— Caminho o quê?

— Caminho Ziguezagueante. Pensei que você tivesse visto.

— Não prestei atenção quando vinha...

O caminho não fazia uma linha reta, nem um arco suave. Na verdade, era uma rota cheia de curvas muito acentuadas e sinuosas. Um caminho que serpenteava de um lado a outro.

Andando por ele, virando aqui e ali diversas vezes, estava um homem alto e esguio, usando roupas formais com o diferencial uso de uma gravata borboleta. Ele parecia muito impaciente e apressado, fora às vezes que esbarrava no corrimão do caminho e tinha de ficar catando seus óculos do chão.

Uma hora o homem saiu do campo de visão dos dois. Ouviu-se o som de uma tranca ao longe. Rafaela se levantou, sem receios, e virou a esquina do prédio. O rapaz a seguiu, apreensivo. Agora na lateral do prédio, Diego pôde ver o fim do caminho que se conectava com uma porta lateral, réplica em escala menor da entrada principal.

A menina foi até a porta, examinou e depois voltou para onde o rapaz com a cicatriz se encontrava. Então começou a olhar para cima com as mãos para trás, muito pensativa.

— Quem era aquele? — perguntou Diego.

— Ah! Verdade, suponho que não conheça — disse enquanto continuava a olhar para cima, totalmente distraída. — Aquele era o professor Nemo, responsável por dar aulas de História da Estratégia.

— História do quê?

A moça deu uma risada muda e disse: — Para o sobrinho do Dragão Negro você sabe muito pouco.

— Como sabe quem é meu tio? — perguntou indignado, se aproximando da menina com os punhos fechados, embora estivesse mais apreensivo do que irritado.

— Saber de muitas coisas é o fardo dos de intelecto mais avançado. — Ela parou de olhar para cima, fixando os olhos cor âmbar na cicatriz de Diego. — Um conhecido que me disse isso. E, aliás, agora conheço o seu segredo.

— O quê? Quem é meu tio virou segredo? 

— Estou falando de outra coisa — disse ela enquanto rondava Diego e o analisava de baixo para cima. — Você está aqui fora quando deveria estar lá dentro. O que significa que vai ganhar uma advertência se for pego.

Agora Diego ficou irritado. Será se ela poderia dedurar ele? 

— Você também está do lado de fora!

— É verdade — concluiu a moça, parando subitamente de lhe cercar. — Por isso vou te ajudar a entrar. Para falar a verdade, você vai me ajudar a te ajudar.

E a moça apontou para cima. Diego viu uma escada de emergência do estilo marinheiro grudada na lateral do prédio. Entendeu no mesmo instante a ideia de entrar pelo térreo, que seria boa não fosse o fato de que alguém precisaria acionar a alavanca e descer a escada até o chão. 

Diego duvidava até mesmo que seu tio, alto como era, conseguisse pular até lá, já que a escada estava a pelo menos cinco metros de distância do chão. Na verdade, julgava que se Elizel estivesse ali, resolveria tudo com um tiro, fumando seu cigarro.

— Genial — disse sarcástico. — E qual é o plano? Subir pelas paredes que nem uma aranha?

— É genial, porém não envolve subir a parede. — Ela se aproximou de Diego e disse baixo para apenas ele ouvir. — Você promete fazer tudo que eu pedir?

— Por quê? — ele disse alto, e se houvesse alguém ali perto certamente ouviria.

— Prometa que vai fazer o que eu pedir — disse ela, seriamente. 

Pressionado pelo olhar amarelado, o rapaz fraquejou.

— Tá, mas o que é?

— É simples. — Ela deu as costas para a escada e deu três passos. Parou de repente e então se virou. — Quero que me bata.

— Não!

— Você prometeu, Diego!

— Nem pensar, sua maluca!

Após algum tempo onde Diego insistia que não faria e Rafaela insistia em pedir, o rapaz finalmente aceitou quando a ruiva o alertou do perigo que seria ganhar uma advertência e ficar perto de Basil. Diego tentou ao menos tirar uma explicação de como isso ajudaria, porém a moça disse que era melhor ver que explicar.

Diego tomou distância. Respirou fundo enquanto se preparava para a loucura que estaria prestes a fazer. Na realidade, mal acreditava no que faria. O trato era acertar com toda sua força o rosto da menina, porém ele não se sentia bem o suficiente para isso e receava que talvez não fosse capaz.

— Agora — disse ela.

O rapaz correu em direção a moça, saltou e lhe desferiu um soco de cima para baixo no meio de seu peito. Mas ele não chegou a acertar. Antes que pudesse, sentiu o corpo leve e se viu rodopiando no ar, para cima. Sentiu o impacto forte de suas costelas contra a escada de ferro. Depois a gravidade começou a puxá-lo.

— Segura! 

Nem precisaria da ordem. Se segurou exatamente no último degrau da escada. Soltou um suspiro assustado e olhou para baixo, a distância dos cinco metros e a reviravolta inexplicável que acabara de acontecer fez seu coração perder um compasso. 

— Minha vez — disse a moça, antes que Diego pudesse voltar para o mundo real e constatar que ainda se mantinha pendurado.

A menina correu em direção a parede e a escalou como um gato. Quando já ia perdendo o embalo da subida, se empurrou para cima e segurou a perna do rapaz. Diego se segurou com ainda mais firmeza enquanto Rafaela escalava pelas suas costas com grande facilidade, até subir as escadas a sua frente. 

— Vamos, antes que alguém apareça.

Diego, ainda um tanto zonzo, escalou atrás dela, sempre olhando o próximo degrau, nauseado, hesitando em avançar. Para sua surpresa a escalada não demorou tanto, embora acreditasse que pelo tamanho do prédio o ato fosse demorar horas. 

Só voltou a respirar normalmente quando chegou no térreo. Ele se sentou no chão e encostou-se no parapeito. Rafaela, que agia como se escalar prédios fosse rotineiro, já estava se dirigindo à porta que daria acesso ao último andar do prédio.

— ‘Tá aberto? — perguntou Diego, os lábios brancos. 

— Logo vai estar. E, aliás, esqueci de avisar que você vai sentir uma náusea por um tempo. Mas basta descansar um pouco que vai passar.

Ela se abaixou, tirou da mochila um conjunto de pinças estranhas e os colocou na fechadura, virando para cá e para lá. Enquanto a moça abria a fechadura, a mente de Diego começou a ficar mais clara conforme relaxava sentado.

— O que foi aquilo? Magia? 

— Bom — ela deu de ombros enquanto continuava empenhada com a tranca — você pode chamar assim se quiser, mas é bom que saiba: Chamamos essas habilidades de segredo, ou mistérios. O que preferir. 

— Ah, tá. É que além dessa coisa… Que você fez em mim, eu vi dois meninos com orelhas estranhas no topo da cabeça. — Ele imitou as orelhas de Léo com os dedos.

— São druidas.— Embora estivesse de costas, deve ter notado pelo silencio que Diego não tinha entendido, por isso acrescentou: — Isso é uma classe de pessoas que ganharam suas habilidades por meio da natureza. Digo isso porque a maioria das pessoas confunde tipo de classe com tipo de habilidade. Você pode ter uma classe diferente e ter o mesmo segredo que o meu. Mas não se atente muito a esses detalhes, sua classe não é mais importante que seus poderes.

O rapaz pensou e continuou pensando. Segredos eram as habilidades, classes eram como ganharam a habilidade. Essas respostas só davam mais perguntas, e começou a pensar tanto que achou melhor desistir e concluir não ter entendido.

— E… O que você é? — perguntou, julgando que sua questão fosse um tanto indelicado de sua parte. — Digo… Qual o nome que se dá para… você sabe. Fazer aquilo que você fez comigo agora a pouco.

— Acho que quer saber sobre meu segredo. — A menina se virou, colocou uma das pinças na mochila e puxou outra mais fina. — Bom, eu sou uma Viravolta. 

— Uma o quê? 

— Viravolta. — Ela voltou a seu processo de arrombamento. — Lembre-se que isso é minha habilidade, não minha classe. É um pouco complicado de explicar, mas, basicamente, consigo me defender.

— Espera aí, pode falar que é poder ao invés de ‘segredo’?

— Pode. — Ela se virou para ele com um sorriso simpático. — Mas não pensa que segredo é um nome muito mais legal? Continuando, posso me defender de qualquer ataque físico. Você, por exemplo, tentou me atacar e eu te joguei para longe.

— Te bati porque você pediu! — O rapaz se levantou, sua mochila já nas costas.

— E obrigada por isso. — Ela fez uma pequena reverência.

O rapaz tinha tantas coisas para perguntar. Queria saber até onde se estendia o poder dela, se ela podia se defender de qualquer ataque, até mesmo dos ataques de Elizel; o que viria muito a calhar para Diego. Rafaela, no entanto, pareceu ler os seus pensamentos, pois disse em voz alta:

— Adoraria explicar as nuances do meu segredo, Diego. Mas agora temos de ir. — Ela colocou a mochila nas costas e abriu a porta recém-violada. — E em silêncio, por favor. O último andar é onde ficam os diretores e professores.

Após descerem alguns lances de escadas, chegaram a uma porta fechada. Ali atrás estaria o andar dos diretores e consequentemente a entrada para o prédio. O plano era descer do andar dos diretores até o segundo andar, onde eram feitas as aulas teóricas, segundo a ruiva.

Diego liderava na frente com passos macios, não poderiam ser pegos naquele andar, ou do contrário teriam um grande problema; não muito pior que quebrar a porta principal. Assim que o rapaz tocou a maçaneta, ele paralisou com uma sensação estranha no estômago. 

Era parecida com a que tinha quando tomava veneno, porém não ardia e nem doía. Estava mais para a sensação do estômago embrulhado. Começou a ficar sonolento e balançou o corpo para lá e para cá, como um pêndulo. Então por trás da porta ele ouviu o som de cascos no chão.

Diego!

Ele despertou no mesmo instante com o susto de uma mão lhe tocando o ombro. Era Rafaela, que o olhava com curiosidade, o rosto inclinado para o lado. Aqueles olhos muito arregalados e amarelos o encarando. Ele notou que ainda segurava a maçaneta.

— Você está bem, Diego? — sussurrou a moça. — Ouviu alguma coisa?

— Você não… ouviu? — Ao notar que a menina não fazia ideia do que ele falava, o rapaz balançou a cabeça e esfregou o rosto. — Não foi nada, é a náusea ainda.

Sem querer saber se a ruiva acreditaria ou não, Diego deu as costas a ela e abriu a porta. 

Se seguiu a visão de um grande labirinto de corredores cheios de portas. O rapaz entrou, perdido, pois não fazia ideia de onde deveria ir. Fora Rafaela que o mostrou uma placa pendurada no teto que indicava a saída.

Os dois foram agachados, virando uma esquina a esquerda e outra direita, quase esbarrando nas mesas de decoração que ficavam na frente das portas. Ele notou que cada porta havia um nome, o que indicava que ali era a sala de algum professor. 

Em uma das portas havia, como em todas as outras, uma mesa deixada bem ao lado da entrada. Essa em específico tinha uma moldura de vidro cheia de medalhas dentro. Achou curioso o quão tolo era deixar pertences do lado de fora das salas, pois alguém poderia facilmente roubá-los.

Diego e Rafaela prosseguiram virando aqui e ali. O rapaz estava na frente quando finalmente iriam virar o último corredor. Estava excitado com o fato de sair dali e um pouco assustado com a sensação estranha que tinha acabado de ter. Embora distraído, notou a tempo um cheiro estranho.

— Ah não! — disse baixinho.

Espiou pela esquina do corredor e viu que logo na saída, bem próximo à escada de emergência e os elevadores, estava uma figura negra, alta e encapuzada, parada bem de frente para uma porta. Por sorte, ele não o vira.

Diego voltou a se encostar no canto da parede, pasmo com a situação. Não imaginava que de todos os lugares o tio estaria logo ali. Assustado, fez um sinal para Rafaela dizendo para voltar.

A menina deu uma espiada discreta, depois voltou para Diego e sorriu, sempre com o sorriso de boca fechada. Ela fez um gesto com a cabeça para o rapaz do qual ele não entendeu de primeira. Mas logo depois compreendeu.

Diego achou que teria um sério problema de coração quando viu Rafaela, ainda agachada, virar o corredor onde Elizel estava.



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