Volume 1 – Arco 6

Capítulo 44: Ciclos de Dor

Diego estava de volta na sala 1-R da professora Rúnica, a estranha mulher que andou se cortando no banheiro. Naquele mesmo dia a professora exigiu que ele não contasse o que viu. E assim faria, já que aquilo era bizarro demais. Então fingiu que nada aconteceu.

Entretanto, ao entrar na sala da professora não havia como ignorar a lembrança.

Os jarros de planta estavam quebrados, vazando toda a areia por cima das estantes. Os quadros com algumas informações medicinais também estavam rasgados, empoeirados e tortos. O único jarro intacto era o que ficava na grande mesa de madeira da professora.

As cadeiras estavam fora do lugar. Algumas por cima das outras, jogadas, derrubadas, tortas. Todos ficaram assustados enquanto arrumavam suas carteiras para que pudessem se sentar.

Diego, como sempre, se sentou ao lado de Tiago, e Margô, que estava com um vestido rosa, se sentou ao seu lado enquanto trocavam olhares confusos. A ordem era a seguinte: a menina de um lado, o rapaz da cicatriz no meio e o loiro encostado na parede, próximo a uma janela, seu lugar de sempre.

Quando a professora entrou na sala, ninguém falou. Os cabelos dela estavam arrepiados como se tivesse acabado de acordar. Uma das pontas do seu óculos de gatinho estava quebrada e a roupa já não era a roxa de sempre, era um verde musgo horroroso.

— Parece um catarro ambulante — brincou Margô. 

O rapaz riu, porém a professora pareceu ter ouvido, pois seus olhos miraram a menina como se ela fosse uma presa a ser abatida. 

— O que é tão engraçado? — Ela começou a pôr suas coisas em cima da mesa dela, encarando sem parar a menina.

— Nada, professora… — Começou Diego, tentando amenizar as coisas para o lado de sua amiga. — É só que… 

— É só que a senhora tá bem acabada, professora — respondeu Margô, com simplicidade. Todos tiveram de prender o riso, menos Diego que fez um sinal para ela calar a boca. — Que foi? É verdade!

Então a professora andou lentamente, com as mãos coladas ao lado do corpo, até a mesa da menina.

— Senhorita Rosa, não é? — Seus olhos estavam arregalados, quase hipnóticos.

— Sim, senhora.

Era a primeira vez que a professora estava dando aula para Margô. Não haviam muitas aulas de Preceitos da Homeopatia durante aquela semana, para a alegria de Diego.

— Então quer dizer que temos uma aluninha atrevida e que se acha as mil maravilhas na sala…

— Não, senhora — interrompeu a menina. — Acho que atrevida aqui é outra pessoa.

Diego quis enfiar a cara na mesa. Por que Margô estava desafiando aquela professora? E qual era o motivo do rapaz estar tão apreensivo? A intuição, aquela vozinha, lhe dizia que ela iria se queimar caso continuasse a brincar com fogo.

Diferente do rapaz, todos da sala soltaram uivos de satisfação. Achavam que Margô era incrível, já que era do tipo que não levava desaforo para casa. Ora, talvez ela pudesse se cuidar bem sozinha, afinal.

— Pelo visto seus pais não lhe ensinaram boas maneiras. — A professora pôs as mãos na mesa da menina, enquanto aproximava o rosto do dela. — Vou ter trabalho colocando juízo nessa sua cabecinha.

— A professora pode tentar. — A menina cruzou os braços, enquanto deixava seu rosto ainda mais perto do da professora. Seus narizes estavam quase se tocando. — Mas se a senhora encostar um dedo em mim…

Humpf! — bufou a professora, contorcendo os lábios e se afastando da cadeira de sua aluna. 

Parecia que a menina tinha ganho a discussão, que tinha conseguido espantar a professora, ao menos era isso que todos estavam achando. Menos Diego, que continuava com a intuição martelando sua cabeça.

Rúnica começou a rabiscar alguma coisa no quadro, depois voltou até sua mesa, se sentando sobre ela, e com um olhar furioso disse para todos ouvirem:

— Felizmente, senhorita Rosa, eu não preciso encostar um dedo em você.

Então ela estalou os dedos. E por um momento, menos de um segundo, Diego obsevou os olhos negros de sua amiga perderem o brilho. Antes o que pareciam uma ônix, pedra preciosa escura, porém brilhante, agora pareciam com sua Hagar Selar, um preto fosco. 

Aos poucos, a expressão da menina ficou relaxada, depois foi tomada por um olhar confuso. Ela começou a olhar de um lado para o outro. Assim que abriu a boca para falar a professora a interrompeu:

— Abram seus exemplares de Manual de Segredos com Ervas na página 96. — Ela pegou o exemplar dela e começou a andar de um lado para outro, enquanto continuava falando. — O estudo de hoje será sobre as cores e seus efeitos. É muito importante saber disso para a hora da preparação dos medicamentos. — Tiago estremeceu, e Diego notou. Aquilo era um mau sinal. — E para ilustrar os sintomas, nós teremos a senhorita Rosa para nos ajudar.

Margô se levantou, meio confusa e foi até onde a professora estava. Ela parou de frente para a turma enquanto Rúnica continuava andando de um lado para o outro. A sala estava sendo infestada por um mar de cochichos. 

— Nada mais justo do que falar sobre a cor rosa, não é? — Ela perguntou para o livro, porém quem balançou a cabeça foi Margô, que continuava com o olhar confuso. — Senhor Murdock, poderia por favor parar de ficar olhando para sua colega e ler sobre o uso dessa cor?

Diego engoliu em seco. Ele queria protestar, porém o loiro ao seu lado lhe fez um sinal para obedecer. O rapaz da cicatriz pegou o exemplar e começou a ler.

— A cor rosa é uma cor que está associada ao coração e a compaixão. — Qual era o propósito daquilo? Por qual motivo ela estava tratando Margô daquela forma? Já tinha punido alunos por muito menos, é verdade. Porém não daquele jeito. — Também está relacionada com a autoestima, a vaidade, o auto amor e confiança excessiva na própria imagem. — Ele ouviu a professora dar um riso. — Mas essa cor precisa ser usada com cautela, pois utiliza-la exageradamente causa vaidade excessiva, o que resulta em futilidade da parte do paciente.

— Ótimo — disse a professora. — Agora leia o Ciclo de Doença logo a baixo.

Logo abaixo estava um pequeno quadro que enumerava 3 sintomas. Ele leu:

— Quando se exagera no uso da cor rosa, ou outras mais perto do vermelho, ocorre o que se conhece por Ciclo de Doença. — Ele deu uma rápida olhada em Margô e quando viu que ela continuava, em teoria, normal, voltou a leitura. O que sua intuição estava querendo lhe dizer? — O primeiro sintoma de alguém que exagerou no uso das cores é dor de cabeça…

Então a professora estalou os dedos mais uma vez. Imediatamente a face de Margô se contorceu. Começou a gemer de dor. Ela colocou as mãos na cabeça, como se estivesse tentando impedir que explodisse. Todos pensaram que uma hora ela iria cair no chão, já que não parava de se balançar de um lado para o outro.

— O que a senhora está fazendo? — perguntou o rapaz, assustado e aborrecido com o que via.

— Continue a leitura, senhor Murdock — disse a professora, ainda andando de um lado para o outro. Antes do rapaz protestar mais uma vez, ela estalou os dedos novamente, e a menina começou a gemer ainda mais alto. — Por favor, senhor Murdock.

Tiago deu mais uma encarada para o rumo do rapaz, como se implorasse para que ele obedecesse.

— Tá… É… — Era difícil se concentrar daquele jeito. — O segundo sintoma do Ciclo é o enjôo…

Mais um estalo da professora. Margô colocou a mão na barriga, então na garganta e por fim na boca. Rúnica andou até um canto da sala, pegou a lixeira e pôs na frente da menina. Imediatamente, a moça começou a vomitar.

A menina não parava de ofegar e se contorcer. Ela soluçava e então voltava a vomitar mais uma vez. Aquilo era horrível. Era como testemunhar a si mesmo sendo maltratado por Elizel, afinal de contas, era exatamente o que acontecia com ele quando tomava aqueles venenos.

— Diego… — sussurrou Margô, baixinho, entre uma golfada e outra. Apenas o rapaz conseguiu ouvir. 

— Professora! — gritou ele, se levantando de uma vez. A violência foi tão forte que a sua mesa tombou para frente e sua cadeira para trás. Ele andou em direção a Rúnica, enfurecido.

A mulher tirou os olhos do livro e encarou Diego. Aquilo fez ele paralisar. Algo lhe dizia que era má ideia se aproximar, que ele não deveria tentar a sorte. Era aquela maldita voz em sua cabeça que não parava de dizer ela é perigosa, ela é perigosa, ela é perigosa, o tempo todo.

— E o terceiro sintoma? — perguntou ela, os dedos prontos para estalarem mais uma vez.

Se o rapaz conseguisse mover o próprio corpo, conseguiria pular nela. 

— O terceiro é… — Ele respirou fundo. Tinha lido o terceiro. Sabia qual era. Não queria que acontecesse aquilo com ela. Mas quanto mais rápido aquilo passasse, mais rápido ela ficaria livre. — O terceiro é alucinação.

E ela estalou os dedos mais uma vez.

Margô parou de gemer. Ela começou a gritar. Era a primeira vez que o rapaz a via daquele jeito. Ela se arrastou até um canto da sala e ficou encolhida ali. 

— Sai daqui, sai daqui! — gritava ela, enquanto empurrava os braços contra o ar. — Para com isso! Para!

O corpo de Diego começou a ficar quente. Era visível a fumaça clarinha saindo por debaixo de sua roupa. Ele conseguiu se mexer. Deu um passo para frente e andou em direção a mesa da professora. Ele estendeu o punho sobre a cabeça, o mais alto que podia e gritou:

— Para com isso! 

E deu um soco na mesa dela, desistindo de lhe acertar no último instante. O único jarro de flores em bom estado em cima da sua mesa caiu no chão com a força do impacto e se espatifou.

A mulher imediatamente olhou para o rapaz, assustada, e Margô, no mesmo instante, parou de gritar. Ela ainda ofegava e estava com o rosto tomado por lágrimas.

— Sente-se — ordenou a mulher, os lábios espremidos de tão irritada.

O rapaz demorou para obedecer. Estava encarando-a. Depois que viu Margô sendo ajudada por Sheila e Selena, ele voltou ao seu estado normal. Foi em direção a amiga, porém sua mão estava presa na mesa feita de madeira. Conseguiu afundar o lugar que acertou em alguns centímetros.

Depois que conseguiu desprender a sua mão, ficou ao lado de Margô o tempo todo. Diego apertou as suas mãos. Ela parecia cansada de mais. Esgotada.

— Isso foi vacilo — disse Lauro, parecendo assustado. Dani estava ainda mais abismado e tentou calar a boca do amigo. — Qual foi! Ela sabe que se os diretor ficar sabendo disso ela tá frita.

Rúnica soltou uma leve risada.

— Isso que vocês viram foi uma demonstração voluntária. Não há nada de errado se a cobaia autorizou. 

— Mas ela não autorizou! — gritou Diego, enfurecido. Margô tomou um susto, aturdida.

— Claro que autorizou — respondeu a professora, com simplicidade. — Não é mesmo, senhorita Rosa? — Ela estalou os dedos mais uma vez.

Os olhos da menina ficaram foscos novamente, e ela respondeu de um jeito deslocado:

— S-sim!? 

Depois ela voltou ao normal mais uma vez.

— Estão vendo? — começou a professora, indo direto para o quadro e rabiscando algumas coisas novas. — Agora, se algum de vocês estiver incomodado, talvez eu faça vocês de cobaias. — Ela terminou de fazer suas anotações e se virou. — O que acham?

Ninguém respondeu. Diego encarava a professora com fúria. Estava tão irritado que começou a apertar a mão da moça com muita força. Ela respondeu apertando na mesma medida. Ao menos ele não era o único irritado ali.



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