Volume 1 – Arco 8

Capítulo 64: O Músculo Mais Forte

Era chegada a hora onde Diego e Margô iriam se enfrentar no ringue. Dali em diante o rapaz não sabia o que aconteceria. Se ganhasse, o que era um tanto improvável por conta da situação de seu braço esquerdo, certamente não resolveria as coisas. Se perdesse tampouco. Isso só serviria para que a moça ficasse se engrandecendo.

Os holofotes estavam claros de mais e refletindo no piso branco do ringue, incomodava seus olhos. Estava em total desvantagem; cansado, com fome e seriamente machucado.

Ao menos Tiago havia lhe dado uma oportunidade, apenas uma, fazendo a garota utilizar mais um daqueles teleportes. Era bem improvável que conseguisse fazer outro daquelas manobras, já que isso requisitava muita energia, e a menina também parecia esgotada.

As faixas nos pés da moça estavam amarelas e pretas, uma mistura de suor com a sujeira acumulada no chão. Sua camiseta branca estava ensopada na região no tórax e das costas, formando uma marca em forma de funil. Seus cabelos continuavam amarrados, embora menos sedosos que antes.

Diego também não estava com o melhor visual. Estava sem camisa, o tórax exposto para quem quisesse olhar. Isso o incomodava um pouco, os olhares fixos em seu braço esquerdo. Na certa notariam que ali havia mais cicatrizes e marcas do que Golias podia ter feito.

Suas vestimentas se resumiam em suas calças com a bainha destruída. Estava descalço, sem camisa e fedendo a queimado. 

Os dois se colocaram em posição de ataque. O garoto sentiu todo o seu corpo reclamar quando o fez, mesmo mantendo o braço esquerdo imobilizado. Encarou a garota a sua frente com atenção, olhando para seus olhos escuros, porém brilhantes como um besouro. 

Ela também o encarava, mas rapidamente olhava para o braço esquerdo do garoto, por fim voltando a lhe encarar nos olhos. Se fosse em outra situação, Diego diria que a menina estava planejando atacar seu ponto fraco. Entretanto, as mechas douradas da garota mudaram de cor.

Não eram vermelhas, o que indicava irritação. Eram levemente verdes. O rapaz já vira seus cabelos ficarem daquela cor. Verde e preto. Mas foi apenas uma vez pelo que podia se lembrar, quando estava na presença do pai e ele lhe repreendia.

Medo. Ela estava com medo dele? E qual seria o motivo disso? Margô, com medo? Impossível. Talvez estivesse assustada. Isso era provável, embora não menos surpreendente. 

Quando Gutierrez fez sinal para que se cumprimentassem, a garota permaneceu parada, o observando, mesmo ele estendendo o punho direito para frente.

— O que foi? Eu tô tão nojento assim?

Imediatamente a moça fechou a cara e deu um passo para trás, discreto.

— Cala a boca — bufou, balançando a cabeça.

— Vem me fazer calar…

Uma péssima ideia ter dito isso, porque ela foi mesmo. Com um pulo, a garota investiu com um soco que atingiu seu queixo, fez um rápido movimento de pés e lhe chutou com a canela a região do seu peito, o empurrando em direção as cortas. 

Diego podia muito bem se livrar daqueles ataques se tivesse com o braço esquerda saudável. Por enquanto só podia apanhar. E lá vinha a garota mais uma vez em sua direção, correndo. Deu um novo salto e um soco que quase lhe atingia o tórax caso não tivesse se jogado para o lado.

O movimento foi brusco de mais, saiu rápido demais. Ralou levemente o braço na corda e isso o fez sentir mais dor ainda. Acabou soltando um gemido involuntário, indicando sua fraqueza. A arquibancada gritava e dizia para o garoto ir para cima, para fazer aquele espetáculo mais uma vez; como se conseguisse.

— Desiste logo — disse a garota, encarando seu braço. Ainda estava com as mechas levemente verdes. — Eu já venci essa!

— Nem vem — respondeu o garoto. De fato, não poderia desistir nem se quisesse. O sinal de rendição era os dois braços para cima e os mindinhos levantados. Apenas pensar em fazer esse movimento lhe doía os ossos. — Ainda tem luta. Só acaba quando acaba. Não é isso que o diretor disse, ou algo parecido?

A menina se colocou em guarda. 

— É um idiota mesmo. Se não desistir, vai ser pior. Não vai conseguir usar aquele poder comigo. 

— Para ser sincero — falou, tomando todo o tempo do mundo para se recuperar — não faço ideia de como fiz aquilo. Mas acredita em mim, não vou precisar daquilo para te vencer. 

— E o que te faz ter tanta certeza? — Ela levantou uma das sobrancelhas.

Ele não fazia ideia do que iria responder. Só disse aquilo para contrariá-la, ainda achava que não tinha a menor chance contra a garota.

— Mesmo se você ganhar — continuou, para continuar ganhando tempo — duvido que vá agradar o senhor Rosa.

— Como assim?

— O seu pai não vai gostar da sua vitória. Ele vai te criticar. Depois vai dizer onde você errou e depois que tem que melhorar. Não importa quantas finais você vença, não vai ser uma vitória para aquele idiota…

— Não chama meu pai de idiota!

E partiu para cima do garoto. Diego continuou recuando, embora isso não fosse suficiente para escapar dos golpes no rosto, no peito e no braço direito. No braço direito. Ela estava mirando no seu braço bom e errando propositalmente o esquerdo.

— A gente só queria ajudar — gritou o garoto, enquanto, com esforço, desviava dos socos e pontapés da menina. — A intenção era boa. Não era como se a gente tivesse contra você…

— Cala a boca, seu idiota — dizia entredentes, no meio de um golpe e outro. — Eu disse… um milhão de vezes… para deixar isso para lá… e você… continuou… insistindo!

— Aí! Aí! Calma! — Os socos da menina estavam desordenados. Pareciam mais tapas de mão fechada do que golpes mortais e bem executados. E ela estava mesmo mirando no ombro direito. — Você vai acabar com meu outro braço!

— Tomara mesmo!

— Tá, já chega. — Ele começou a empurrar a garota com velocidade para um canto enquanto ia dizendo alto o suficiente para ela ouvir: — A gente bolou um plano que pode muito bem acabar com a professora. Mas você é uma ingrata e está atrapalhando. A gente só quer ajudar!

— Não preciso de ajuda! — Agarrando seu braço com as duas mãos e prendendo suas pernas ao seu pescoço, a garota fez um rodopio e o jogou no chão, torcendo seu braço bom.

— SERÁ QUE A NOSSA LUTADORA VAI FINALIZAR A LUTA ALI? — comentou Gutierrez, enquanto centenas de vozes gritavam outras coisas inteligíveis, apoiando, aplaudindo, vaiando.

— Você sabe como é — disse a menina enquanto prensava o rosto do garoto contra o chão — todo dia ficar ouvindo o quanto o neto do diretor é maravilhoso? O como ele se esforça para ser o melhor aluno do Craveiro? Como é o mais prodígio? O rapaz com mais potencial na Espanha? Sabe como é ouvir os seus pais dizendo que preferem ele como filho ao invés de uma menina?

Talvez Diego pudesse responder essas perguntas, dar uma palavra de consolo, ou qualquer outra coisa, mas estava sentindo tanta dor no braço direito e com o rosto tão espremido contra o chão que tudo que conseguia pensar era em como sairia daquela situação.

— Eu tenho um tio otário que faz uns experimentos em mim — disse com a voz espremida. — Ele não gosta de mim. Mas acho que ele não gosta de ninguém…

— Quer comparar a minha família com a sua? — disse ela, desdenhosamente, embora sua voz estivesse um pouco embargada.

— Aí! Aí! Não, não é isso. É só que… O Tiago não tem nada a ver com isso. Ele só queria ajudar, mesmo você tratando ele como se fosse… Aí! Aí! Sei lá! Para com isso sua…

Ela o virou de frente, o pegou pelo braço bom e lhe levantou, apertando com força. 

— Sua o que?

Diego aproveitou para dar uma cabeçada na garota, a jogando para trás. Não foi forte o suficiente para doer, só para afastá-la. Não tinha muita força sobrando desde a última batalha contra Golias.

— Para de idiotice — gritou ele, depois de se livrar da garota. — Eu sinto muito pela situação da sua família. Você nunca me contou isso. Mesmo eu contando para você tudo sobre mim. Eu confiei em você. Ainda confio. Mas você não confia na gente.

— Não preciso de ajuda!

— Para com isso. — Revirou os olhos. — Eu já disse que a gente tem um plano para aquela professora. Isso já tá ficando chato…

Não percebeu a tempo. Quando viu já estava sendo atingido por vários golpes no corpo inteiro, com ela sempre evitando seu braço esquerdo. Ele foi recuando e recuando, sempre apanhando dela.

Até que em determinado momento, o rapaz encostou em um dos cantos do ringue. Ali seria onde a menina continuaria a lhe surrar até que ele apagasse. Mas era estranho, ela não estava mesmo mirando o braço esquerdo.

Quando olhou para o rosto da menina, entendeu o motivo. Aquilo não era exatamente raiva, parecia mais frustração. Seu rosto estava contorcido em uma mistura de raiva e tristeza. As sobrancelhas franzidas, o lábio inferior tremia e o queixo enrugava de um jeito feio. Seus cabelos estavam com mechas rosas e seus olhos estavam vermelhos e marejados.

Daí, ele entendeu o medo que a menina sentia. Ela estava com medo de lhe acertar o braço esquerdo e agora com vergonha de que lhe vissem com aquele rosto deplorável de uma pessoa que estava prestes a cair no choro.

De maneira nenhuma ele deixaria que as pessoas vissem aquele rosto. Isso ia acabar por completo com a reputação de durona que ela tinha. De certa forma aquilo lhe impressionava, já que para ele, Margô era uma chama que nunca se apagava. Mas, no fim, ainda era apenas uma menina.

O que poderia fazer? Tinha poucas opções, desistir não era uma delas. Por mais que seu braço estivesse, de certa forma, intacto, não conseguiria levantar os braços e desistir. Mesmo que não estivesse com o membro ruim, não poderia, já que ainda estava apanhando. 

Os golpes não eram fortes, embora doessem. Ela estava lhe batendo para continuar com raiva, para esconder aquele rosto completamente melado, com as bochechas brilhando. 

Uma hora a menina cansou. Não demorou tanto assim. Ela simplesmente cansou. Apoiou a cabeça em seu peito, olhando para baixo. O rapaz ouviu ela fungar e soluçar baixinho. Ele estava fraco, não sentia as pernas. Iria apagar de qualquer jeito. 

O teto estava começando a ficar embaçado, as coisas estavam rodando. E uma leve tontura, doce e acolhedora, lhe levava para um estado de sono da qual ele certamente queria ir. Mas não podia ir agora, tinha uma amiga, ali em seu peito, precisando dele.

O que poderia fazer? Nenhum músculo de seu corpo se movia ou dava sinal de lhe obedecer. O que mais poderia usar para ajudar aquela garota?

Com a cabeça dela em seu tórax, sentiu a própria batida de seu coração. Então ele se lembrou do que Faramir lhe dissera a alguns dias atrás, no mesmo dia em que esqueceu aquele cartão. Ele falou alguma coisa sobre o músculo mais forte.

— Não chora — murmurou baixinho o garoto, acariciando os cabelos da menina. — O teu choro é… muito feio.

E antes de inclinar a cabeça para trás e fechar os olhos, o garoto ouviu a boa risada da menina. Não era maliciosa, como das últimas vezes. Era uma risada feliz e alegre, embora feia por conta do catarro na garganta. 

E antes de apagar por completo, o rapaz viu a menina levantar a cabeça, sem a expressão chorosa, levantar os dois braços, os dois mindinhos para cima. Ora, de fato, Faramir tinha razão. O coração é o músculo mais forte.



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