Volume 1

Capítulo 5: Homem de Preto

Sienna abriu os olhos devagar, ao tentar se mover sentiu uma dor forte e vomitou uma grande quantidade de água com um pouco de sangue. 

— Onde estou?

Ao olhar os arredores, percebeu que estava na beira de um rio. Seu corpo estava pela metade dentro da água e a parte de cima estava apoiada em um chão de terra molhado. 

Ainda meio desnorteada, buscou por um auxílio em sua mente. Logo, a visão do corvo e de Ângela lutando lhe assombrou.

— Dona Ângela! — gritou enquanto corria pela borda do rio em busca da ogra.

A jovem não sabia onde estava. A árvore do mundo não estava mais a vista, apenas uma profunda floresta se encontrava nos arredores e aquele pequeno rio que escorria por aí.

Na queda, Sienna havia perdido tudo, o seu cesto, livro e até a sua mãe. Uma dor profunda também percorria o corpo da jovem que, sem escolha, caminhava descalça pelo chão pedregoso gritando em desespero:

— Dona Ângela!

Aquelas várias situações difíceis seguidas não estavam fazendo bem a ela. Ser obrigada a partir, ser atacada por corvos e agora se perder, sozinha, em meio à mata. Contudo, nenhuma única lágrima escorria pelo rosto cansado dela, Sienna cumpria com a promessa que fez.

Continuou a caminhar rio abaixo, passava por árvores intermináveis. Em um certo ponto da caminhada, viu ao longe algo caído no chão próximo a uma árvore. Sem pensar muito, a jovem correu até o ser.

Ela estava recostada no tronco, o rosto solene não escondia o sofrimento pelo qual passava. Ferimentos cobriam o seu corpo da cabeça aos pés, uma poça de sangue pintava o chão ao redor de vermelho e as mãos dela eram irreconhecíveis, estavam em carne viva, até mesmo o músculo podia ser visto.

— Mãe... Eu prometi nunca mais chorar.

Ângela levantou a cabeça e encarou o rosto de Sienna. A jovem estava toda suja, ainda tinha sangue seco em seu nariz, mas os seus olhos vermelhos não tinham uma única lágrima. Ângela soltou um pequeno sorriso e voltou a cair esgotada.

— Mãe?! Mãe!

 

 

— Capitão, já está amanhecendo, quando iremos partir? — perguntou um marujo.

Willy o ignorou, a sua visão estava focada no homem de pé em um canto do navio observando a ilha. 

—  Falarei com ele assim que o sol atingir o convés... — O capitão queria ficar o mais longe possível de Morpheus. — Agora vai trabalhar!

Recostado na madeira, Morpheus focava a sua visão no centro da ilha. Ângela estava demorando demais, se continuasse assim, ele teria que retornar ao seu mestre sem ela. Com sua comum expressão sem alma, suspirou e se virou.

— Eu avisei, Ângela... 

Quando estava prestes a desistir e ir embora, Morpheus notou algo se aproximando do navio. O sol estava quase chegando. Entre as árvores, um enorme ser, acompanhado de uma garotinha, caminhavam em passos lentos na direção do navio.

A menina estava toda suja, com alguns arranhões e roupas rasgadas. O enorme ser estava em um estado mórbido, qualquer um que o olhasse não acreditaria que aquilo ainda pudesse estar vivo.

— Vamos, Dona Ângela. Já estamos chegando, aguente mais um pouco.

— Está tudo bem, Sienna, eu estou acabada. Ao chegar no navio tenha cuidado e você pôde confiar em Furlan, ele vai cuidar de você.

— Por que você está falando isso?...

A ogra não se aguentou mais, já havia gasto tudo o que tinha para manter-se e, principalmente, manter Sienna viva à queda que haviam passado. O epicentro dela estava vazio, o corpo exausto além da medida e os ferimentos eram demais para qualquer um.

Ao se aproximar do navio e sentir que Morpheus estava ali, o último gatilho que lhe mantinha consciente se foi.

Sienna viu a sua mãe fechar os olhos lentamente e ir caindo devagar, porém, antes de alcançar o chão, alguém parou a sua queda. Ao observar o homem, Sienna deu um passo para trás, essa era a primeira vez que interagia com um ser humano desde que a sua mãe biológica lhe deu para Ângela.

Engolindo em seco, Sienna voltou a se preocupar com a ogra.

— Você... É o Senhor Furlan? 

— Sim, o que aconteceu com ela?!

— Um monstro nos atacou e nós caímos da árvore do mundo.

Os olhos negros de Morpheus encararam Ângela e focaram nas mãos dela.

“Que desastre... Nunca vi ela tão ferida...”

Morpheus virou o seu rosto frio para Ângela, colocou o corpo dela em suas costas e começou a andar.

— Vamos para o navio, o sol está vindo.

Hã?... Está bem.

Sienna temia Morpheus, mas ela não queria decepcionar Ângela. A jovem seguiu as palavras de sua mãe e decidiu confiar naquele homem.

— Mantenha sua cabeça baixa... Os seus olhos podem levantar suspeitas.

— Suspeitas?

— Ângela não te contou nada? 

Sienna balançou a cabeça em negação. Morpheus apenas suspirou vendo aquilo e continuou indo na direção do barco.

Ao chegaram no convés, Sienna abaixou a cabeça e se escondeu atrás de Morpheus. Uma dúzia de homens cercaram os três e um gordinho se aproximou. Sienna o encarou e, assim que viu o rosto dele, não foi com a sua cara.

“Esse é o sorriso mais falso que já vi”, pensou ela.

— Senhor Furlan, esse ogro é muito perigoso, não podemos levar conosco um monstro desse nível.

— Eu vou pagar o dobro.

Morpheus foi rápido com as palavras. O sol começou a surgir nas costas deles, ele queria acabar com aquilo ali.

— O... dobro? — gaguejou o homem.

— Sim, agora deixe-me passar.

Passando por entre os homens, Sienna e Morpheus caminharam em direção a cabine.

— Capitão... Isso é um crime grave!

— Capitão, ele conseguia carregar o corpo daquele monstro com facilidade.

— Capitão!

Os marujos faziam múltiplas reclamações para o capitão, mas as palavras o dobro não saiam de sua mente. Truman, diferente de seus companheiros, ficou apenas curioso com aqueles estranhos contratantes. O jovem observou Sienna. Em um certo momento, a garota virou para trás e os olhos dos dois se encontraram. 

Truman abriu um sorriso e acenou com a mão para Sienna, um pouco receosa, a jovem acenou de volta. Logo depois, os três entraram na cabine.

“Aquele sim é um sorriso verdadeiro.” A garota teve uma boa primeira impressão do jovem marujo.

Dentro da cabine, Morpheus acendeu uma vela e fechou a porta. Ao colocar Ângela em cima da cama, um som de algo quebrando ressoou, a cama desmontou com o peso dela. 

Sienna voltou os olhos para Ângela. Com bastante preocupação, ela se aproximou. Em um movimento precipitado, tentou segurar as mãos dela, mas lembrou do estado deplorável em que se encontravam.

Aquele singelo ato de carinho e preocupação não passou despercebido por Morpheus. O homem se moveu pela cabine, chamando a atenção de Sienna que prestou atenção nos seus movimentos.

No canto do quarto havia uma maleta que estava ao lado da escrivaninha, onde anteriormente, Morpheus escrevia. Ele se aproximou e pegou o objeto, colocando em cima da mesa e, logo em seguida, a abriu.

Sienna olhou e viu vários objetos diversos, bandagens, seringas, frascos com diferentes líquidos e lâminas, muitas lâminas. Dentro dali havia no mínimo duas dúzias de facas, adagas e punhais.

Ao ver aquilo, a garota deu um passo para trás. Morpheus lhe encarou e deu um olhar feio.

— Deixe de ser medrosa. Venha até aqui, preciso de ajuda com isso. — Ele puxou um pequeno bisturi da maleta e cortou as roupas de Ângela.

Múltiplos hematomas se estendiam da cabeça aos pés, cortes profundos se misturavam entre si retalhando a carne, além disso, havia sinais de uma hemorragia grave. Um suor frio escorria pela testa dela e o seu corpo tremia por inteiro, Ângela dançava com a morte.

— O que eu posso fazer? — Sienna engoliu em seco e encarou aquilo de frente.

— Nada complicado, só quero que segure os instrumentos, siga minhas ordens e não cometa erros...

— O que acontece se eu fizer algo errado?

— Ângela morre. Pegue as bandagens e se prepare, eu vou salvar a vida dela.

A regeneração de um ogro era muito mais rápida que a humana, sendo capaz de curar feridas que demorariam dias em algumas horas, porém, isso também trazia problemas graves. 

“Eu vou ter que quebrar os ossos dela outra vez, mas primeiro preciso estabilizar seu corpo”, pensou Morpheus, deliberava sobre as tarefas que realizaria. 

Com o bisturi em mãos, realizou uma série de cortes nos hematomas graves, retirando o líquido e limpando a ferida. Logo depois, ele realizou um cântico estranho, furou o dedo de Sienna e retirou uma gota de sangue.

— Não existe um material melhor do que esse... O vermelho percorre tudo, ele controla a vida e a morte, o sangue é a fonte da vida. Em meio ao Carmesim, eu me ajoelho. Desejo que esse poder recupere a ferida. Magia de sangue de nível médio: Transfusão de Sangue

Após ter o seu dedo ferido, Sienna deu um passo para trás assustada e observou o homem terminar aquele cântico.

“Ele é... Um mago.” Ela não conseguia acreditar nos próprios olhos.

Uma pequena quantia de mana vermelha se reuniu no ar, a gota de sangue de Sienna flutuou e se uniu a ela. Nesse instante, aquela gota tornou-se uma grande esfera de sangue vermelho forte.

Sienna engoliu em seco, os seus olhos não podiam acreditar naquilo, está era a primeira vez que presenciava uma magia. Cada processo, cada movimento de mão, cada expressão de luz, para Sienna tudo aquilo era fantástico.

Por um momento, a jovem esqueceu todos os problemas que possuía.

Morpheus conseguia controlar o sangue com maestria, ele movia as mãos e a esfera seguia as ordens, como se fosse uma marionete. 

Com um simples movimento dos dedos, o sangue foi descendo devagar, cobrindo o corpo de Ângela e penetrando pelos cortes. O suor frio parou, as respirações estabilizaram e a sua aparência melhorou.

— É só isso? Ela já vai ficar boa? — Sienna saiu de seu transe e voltou sua atenção para Morpheus.

— Não, a regeneração acelerada dela fez com que os ossos quebrados se curassem fora de posição, ou seja, vou ter que quebrar todos os ossos dela outra vez para poder colocar eles no lugar. Essa vai ser a parte mais difícil.

— Se você fizer isso... Ela vai ficar bem?

— Ficar bem? Eu não sei, mas ela vai sobreviver.

O rosto de Sienna assumiu uma expressão de seriedade, a jovem pegou os matérias que lhe foram dados e encarou Morpheus com um olhar sério.

— Vamos começar.

Vendo aquilo, ele teve uma pequena surpresa.

“Então ela tem um pouco de convicção. Vamos ver quanto tempo isso irá durar.”

— Segure firme, esse vai ser um processo longo.

Durante à noite, os marinheiros escutaram múltiplos gritos, muitos deles nem conseguiram dormir, estavam aterrorizados demais para isso. Mesmo desacordada, Ângela ainda sofria com a dor e isso era demonstrado pelos berros incessantes que ressoavam mar adentro.

Após uma longa noite, os gritos cessaram. Dentro da cabine, Morpheus limpava as ferramentas e guardava os seus pertences. Na cama, Ângela dormia em um estado terrível, o seu corpo inteiro estava enfaixado, principalmente as mãos que tinham múltiplas bandagens e apoios.

Sienna estava ajoelhada no chão. Já exausta da viagem, ela não aguentou muito tempo. Assim que a cirurgia terminou, a garota caiu e adormeceu com a sua cabeça ao lado da de Ângela.

— Ela aguentou até o final, surpreendente. — Morpheus viu as duas caídas, focou sua atenção principalmente em Ângela. — Mesmo assim... Você sacrificou tanto por essa garota. 

Morpheus sentou em uma cadeira e ficou de frente para sua escrivaninha. Ele pegou uma folha de papel e começou a escrever uma carta.

“Preciso avisar que estamos indo... E estamos acompanhados.”

À noite escura ocultava o semblante frio de Morpheus.



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