Volume 1

Capítulo 36: O Vento que Originou o Furacão

O som de passos e arrastar pelo corredor chamou a atenção da mulher que se manteve sentada ao chão úmido com a cabeça entre as pernas por tanto tempo que, quando levantou sua visão, perdeu o senso de direção por um segundo.

Em meio àquela sala vazia, apenas os ratos lhe faziam companhia. Garta estava largada numa cela nojenta sem janelas e com apenas uma grande porta gradeada à sua frente.

Com a região do seu olho esquerdo enfaixado por um curativo precário já sujo, e uma espécie de colar envolvendo seu pescoço, idêntico ao que interrompeu o uso de suas habilidades, a mulher ficou apreensiva sem ter o que fazer.

Não sabia exatamente onde estava, mas tinha certeza de que era o subsolo de algum prédio oficial. Afinal, de tempos em tempo, uma patrulha de soldados imperiais rondava o corredor de pedra polida marchando diante da cela.

Mas dessa vez, o barulho vindo do lado de fora do cárcere era diferente, algo sútil como o rastejar de um objeto sobre o chão frio, o suficiente para despertar a sua atenção.

Quando notou, dois homens com vestes oficiais arrastavam uma figura familiar inconsciente do outro lado da grade, teve sua pequena esperança reduzida a quase zero.

— Abra a cela — ordenou um dos guardas.

O seu pedido foi atendido e em seguida aquele que era arrastado foi arremessado para dentro, junto da guardiã.

— Gerente! — Se preocupou ela.

A cela foi trancada novamente e os homens se dispersaram. A mulher apressou-se para verificar o estado do seu conhecido ao chão em dores.

— Garta? — perguntou ele estranhando a feição da guardiã. — Seu olho, o que...

— Eu estou bem. — respondeu ela levando uma de suas mãos ao olho comprometido. — O que aconteceu com você?

— Eles me surpreenderam. Tudo saiu como a Defesa planejou — lamentou o homem experiente se sentando ao chão.

Possuía diversos arranhões e hematomas por todo o corpo. Com um colar semelhante ao da mulher envolvendo seu pescoço, observou suas mãos machucadas se punindo.

— Como? Nós cumprimos o objetivo perfeitamente. Levamos a mensagem do levante dos sombras para a população toda e...

— Foi tudo planejado por eles — interrompeu o homem. — Tudo, desde o começo, planejado.

— Mas você disse que o império cairia se...

— E caiu. Ou melhor, está caindo, Garta — disse no tom sério que impactou a mulher em um passo para trás. — Eu só não contava que a Defesa estava esperando por isso, para tomar o poder.

— Fomos manipulados... — sussurrou ela.

— Esse tempo todo, eles só estavam esperando a hora certa para depor o imperador e tirar mais um obstáculo da frente. Agora, não precisam mais negociar as minas de Sathsai, podem simplesmente sair por aí explorando e procurando pelo receptáculo da deusa Lux sem entraves.

— Acabou... — sussurrou desesperançosa. — É questão de tempo até sermos governados ou dizimados por ela. E não podemos fazer nada com esses colares bloqueando nossas habilidades.

O Gerente observou o baixar de cabeça de Garta em silêncio. Teve certeza do que vinha pensando nas últimas horas e tomou a sua decisão.

— Ainda não acabou.

— ... — Ela manteve-se sentada com a cabeça baixa entre as próprias pernas.

— Escuta, Garta. A guardiã de Tera fugiu...

— Celina?

— Sim. Aquele seu amigo a levou para algum lugar além dos muros.

— Tanto faz... Isso já não importa mais.

Edgar foi acertado pelo desanimo nas palavras da mulher de uma forma que não esperava:

— Eu não te vejo desesperançosa assim desde que te conheci, Garta.

— Bem-vindo ao mundo real.

— O que quer dizer com isso?

— Passou tanto tempo manipulando as pessoas ao seu redor que não lembra nem como elas são de verdade. — O olhar da guardiã era inconsequente e firme. — No final das contas, o maior manipulado aqui, foi você mesmo.

— Ora sua... — O mais velho mostrou a palma da mão para a mulher que se manteve despreocupada.

— Você não pode usar as habilidades com esse colar, esqueceu? Não pode mais moldar as pessoas e faze-las aceitar a suas ideias assim. Tanto faz, você já moveu a linha da minha vida o suficiente para não conseguir retorna-la ao natural.

— Eu te mantive viva esse tempo todo! — esbravejou o homem. — Você não tinha nada quando...

— Eu não tinha nada, por que você tirou tudo de mim!

— Do que você...

— Você acabou com a minha vida, Edgar! — Se levantou. Apenas um olho era suficiente para a guardiã mostrar a sua fúria. — Acha que eu não sei quem matou a minha mãe?

— Garta, eu...

— Foi você! Não foi? — O ar em volta da mulher queimava em ódio como a muito tempo não era visto.

— Eu já disse que não! — Percebeu que não conseguiria evitar aquela conversa.

— A matou para poder controlar uma guardiã. Você é nojento. Fez tudo por poder e ganância...

— Não foi...

— Não bastou oferecer a própria alma em sacrifício para conseguir as suas habilidades, teve ainda que destruir a vida de uma família inteira!

— Eu amava sua mãe.

— Seu desgraçado! — Garta rugiu como um animal. Selvagem, também foi o seu impulso sobre o homem, ela o agarrou pelo colarinho e o jogou ao chão sem dar tempo de reação ao alvo. — Como ousa?!

O corpo do homem, exausto e fraco, não conteve o ataque dela, foi arremessado ao chão sem resistência. A guardião se sentou sobre sua barriga e se preparou para golpeá-lo com os punhos cerrados.

— Você a matou, não foi!?

Enfurecida, socou Edgar e, se sentindo liberta, pôde finalmente realizar os seus desejos guardados por tanto tempo.

O homem só pode sentir a dor de um punho atrás do outro lhe acertando. Com o mais concentrado ódio, foi impactado pelo passado algoz.

                                               ***

— Sabe, Edgar. Eu tenho que te agradecer. Essa felicidade que vivo hoje, nada teria acontecido se não fosse por você.

— Ah, para. Você está exagerando, Guido. — Respondeu o jovem homem com sua caneca de cerveja em mãos.

Os dois velhos amigos sempre se reuniam naquela taverna. Por mais que o rótulo do lugar fosse esse, era um ambiente muito mais familiar e comedido do que a maioria dos templos de Taemar aos arredores. Com apenas um barman e uma garçonete, aquele não era o dia mais movimentado, mesmo assim, alguns grupos de amigos e casais em romance se reuniam sobre o teto do estabelecimento mais famoso às margens da cidade.

— Aqui está seu pedido — disse a garçonete entregando uma caneca da bebida fermentada ao rapaz mais atlético com boa pinta.

Guido acenou em gratidão e agarrou o recipiente com sede, voltou-se ao seu conhecido na mesma mesa:

— Estou falando sério. Se, exatamente um ano atrás, você não tivesse salvo a Petrica e me dado os créditos, eu jamais estaria com ela agora. Ainda não consigo acreditar que você deu conta de um acampamento de bandidos sozinhos.

— Eu já disse, tive sorte — desconversou o jovem Edgar com a caneca frente aos lábios.

— E põe sorte nisso. Você nunca ganhou de mim no mano a mano, mas conseguiu lidar com oito homens armados. Se eu não tivesse chegado logo depois, para ver aqueles brutamontes inconscientes no chão, eu jamais acreditaria. E eu ainda nem sei o porquê quis que eu levasse a fama por aquilo.

— Por que está me lembrando disso?

— Bom, depois daquilo, eu e a Petrica ficamos juntos. Tudo graças a você. — Guido ficou pensativo por um segundo e em seguida deu uma ligeira risada bem humorada. — Engraçado, naquela época eu achava que você gostava dela, que loucura a minha.

— Não. Eu já te falei que não temos nada a ver.

— Eu sei, eu sei. Você deve estar interessado em alguém da mais alta sociedade. Afinal, você é o braço direito da general de Taemar agora. — Guido ficou com um olhar distante, mas retornou breve. — Sabe, eu sempre sonhei que iria comprar esse lugar.

— Lá vem você com esse sonho maluco.

— Ah, qual é Edgar. Eu seria o dono de um bar, isso não é um sonho maluco, é um paraíso. É questão de tempo e... — O homem apontou para seu amigo com o dedo indicador em tom sério. — A proposta de você ser o gerente, ainda está de pé. Se você não encontrar o seu par na alta sociedade, é claro.

— Quanta bobagem... — Revirou os olhos.

— Não fale assim com o seu futuro chefe. — Descontraiu-se. — Hahaha. Vou colocar você para limpar o banheiro. Hahaha.

— Tá, que seja, seu bêbado. — O rapaz mais novo acelerou o término do assunto sem hesitar. — Mas então, por que me chamou aqui?

— A é... Viemos comemorar! — O mais robusto chamou a atenção da clientela da taverna com sua empolgação e o levantar de braços para o teto.

— Comemorar?

— Isso aí. — Guido deu mais um gole em sua cerveja e voltou com um largo sorriso no rosto.

— Deveria chamar a sua tão amada Petrica para isso, não eu.

— Eu bem que tentei, mas ela não quis vir. Disse que nesse período não pode tomar bebida alcoólica ou alguma coisa desse tipo.

— A mulher que quase se afogou em um barril de cerveja, não pode beber? Conta outra.

— Pois é. Disse que prejudica o desenvolvimento do bebê. Eu acho que é desculpa pra não vir, sei lá.

— Bebê? A Petrica está...

— Aí pessoal! — Guido se levantou de sua cadeira e chamou a atenção de todos no estabelecimento. — A próxima rodada é por minha conta. Eu vou ser o mais novo pai dessa cidade!

— Aeee!!! — Comemoraram todos na taverna.

Todos, menos um.

Após os gritos animados, Guido voltou a se sentar à mesa com um sorriso de marcar a testa enquanto a agitação do bar diminuía.

Se surpreendeu ao notar o semblante completamente oposto do amigo à sua frente.

— Eu preciso ir — disse Edgar cortando o ar e se levantando da cadeira em tropeços.

— O quê? Espera, ainda nem começamos...

— Eu tenho um trabalho de última hora. — Cambaleou pelo salão da taverna em direção a saída.

— Espera Edgar, do que você...

— Mande lembranças para a sua esposa. Desculpe. — Saiu pela porta em meio a um turbilhão de emoções.

O outono frio taemariano era conhecido pelas fortes rajadas de vento vindas do mar, não era diferente naquela noite clara. As folhagens secas eram arremessadas violentamente pelas ruas pouco movimentadas e as janelas das casas tremiam por toda a cidade.

Edgar caminhou subindo a rua de pedras sem direção. Não tinha nada decidido em sua cabeça, mas uma possibilidade o tentava como nunca antes.

Com lagrimas ferventes em seus olhos que se recusavam a cair, ele atravessou boa parte da cidade titubeante e pensativo.  “Por que estou me deixando ser atingindo por isso? Já superei isso mais de uma vez. Eu não deveria estar assim!”

— Não era pra ser assim! — Cuspiu o seu pensamento com o mais forte grito entalado na garganta.

Às margens da cidade, já adentrando aos bosques das montanhas não povoadas, ninguém o escutou. Foi o que pensou.

— Eu cansei... cansei — lamentou se escorando em uma árvore no início do arvoredo. — Não aguento isso.

— Você também? — perguntou uma voz masculina desanimada vinda das sombras das árvores.

— Quem está aí? — Edgar ficou imediatamente em alerta como um bom soldado.

— Não se preocupe, as pessoas perigosas estão na cidade. — Um homem, um pouco mais velho que o próprio Edgar, com vestimentas nada nobres, emergiu das sombras parando ao lado do rapaz desorientado. Observando as luzes da cidade ao longe contornando o mar, ele continuou: — Eu sou apenas um ninguém. Já você, é bem importante...

O homem observou as roupas bem encaixadas e costuradas do rapaz cauteloso e, em seguida, se sentou sobre a grama ainda observante à cidade.

— Isso não lhe diz respeito e...

— Se alguém, em uma situação parecida a sua, quisesse deixar a cidade. — Interrompeu o rapaz serenamente. — Você o ajudaria?

— Bom, eu... — Edgar continuou temerário.

— Você disse que não aguenta mais. Que tal deixar essa vida no passado? Começar do zero?

— ... Não parece ruim. — sussurrou quase inaudível.

O homem mais velho se levantou do chão após rasgar um ramo de grama com as mãos e, em seguida, se colocou de frente ao mais novo.

— Às vezes, nós só temos que deixar o vento soprar. — Abriu a mão com a palma para cima e mostrou a Edgar as folhagens secas de grama.

O vento soprou vindo do mar e levou todas aquelas graminhas para longe da luz do luar. Se perderam nas sombras do bosque a beirar as montanhas.

— O que você está planejando? — Edgar finalmente daria atenção ao homem.

— Uma fuga para o império de Albores, simples assim.

— As fronteiras estão fechadas com a tensão política entre as duas cidades. É impossível passar sem ser notado.

— É aí que você entra, senhor conselheiro da general de Taemar. Você é um pouco famoso, sabia?

— Eu não vou trair o meu povo, se é isso que está pensando.

— Não, eu jamais toquei na palavra traição. É apenas autodefesa.

— Fale logo o que você quer, homem. Deixe de enrolação.

— Sejamos francos, Taemar não tem chance alguma contra Albores. Só estamos nos protegendo. Pense como se você fosse o encarregado da paz.

— Isso não faz o menor sentido.

— Se uma guerra acontecer, milhares de pessoas vão morrer. Quanto mais tempo essa guerra durar, mais pessoas morrerão. É isso que acontece com Toesane e Tekai, mais resistência, mais mortes. Então, só temos o papel de acelerar ao máximo essa anexação para minimizar as perdas.

— Se Albores tiver um eficiente plano de anexação... — Edgar foi fisgado, ficou pensativo sussurrando para si próprio. — Taemar não sofrerá tanto.

— Exato! É como puxar a farpa que entrou na sola do pé de uma só vez. Menos sangue, menos dinheiro jogado fora, menos mortes. Além disso, não é como se você tivesse algo a perder, não é mesmo? Você mesmo disse que se cansou.

— ... — respondeu com um suspiro desistente desviando o olhar confrontado. — Definitivamente, eu não tenho nada a perder.

— Eu também não. — retrucou o outro com um semblante compactuado. — Aliás, eu sei quem você é, mas não sei o seu nome.

— Edgar.

— Prazer em conhece-lo, Edgar. Que tal conversamos um pouco mais? — O homem se virou para o bosque e iniciou a sua caminhada convidativa.

— Espera, você não se apresentou.

— Tem razão. Me desculpe. Eu me chamo Anor Helm.



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