Volume 1

Capítulo 42: Revés em Regresso

A viagem que durava menos de uma hora até a cidade Capital estava prestes a terminar. Colth sabia que seria difícil passar desapercebido pelos guardas da estação. Se pedissem os seus documentos por exemplo, estaria em uma situação completamente desfavorável. Nem documentos ele possuía mais.

Com isso em mente, passou a viagem inteira sentado ao lado de Celina em um dos últimos assentos do terceiro vagão do trem com destino à Capital que não possuía nem metade da ocupação total.

Com vestimentas inteiramente renovadas após a hospedagem na estranha pousada sem nome de Tekai, Colth recebeu uma velha roupa preta da comerciante Liana, provavelmente algo esquecido por um dos clientes da pousada, o mesmo podia ser dito para o seu casaco castanho longo que possuía um odor fraco de bebida envelhecida, o rapaz não reclamou, aquele era perfeito para esconder a adaga de Sathsai presa ao seu cinto de couro.

Celina também recebeu de bom grado os presentes, ou melhor, as mercadorias vendidas com pagamento a prazo, de Liana. Seu conjunto de beca curta e acessórios inteiramente brancos com detalhes em dourado chamavam a atenção, mas o seu o capuz carmesim sobre a cabeça escondia a sua identidade.

A guardiã de Tera ainda carregava consigo uma faixa azul de tecido leve na cintura que lhe servia de cinto e apoio para a sua bolsa de couro. O objeto em questão tinha apenas uma função, servir de abrigo para o terceiro integrante do grupo.

Koza deixou expresso que não sairia de perto da guardiã nem por um segundo, isso ficou ainda mais evidente quando ele próprio teve a ideia de ficar no interior da bolsa tiracolo de Celina.

O trem rasgava a relva alta se aproximando dos muros fronteiriços. Após duas horas de velocidade máxima, o comboio finalmente desacelerava adentrando ao território Capital.

O terceiro vagão foi coberto pelas sombras dos muros interrompendo o sol ameno da manhã e parou conforme a plataforma. O silêncio tomou o trem de tal forma que, os outros passageiros apreensivos se levantaram e esperaram diante da única porta do vagão a liberação de seus desembarques.

— Todos em fila! Se dirijam para os balcões de entrada! — gritou o guarda na plataforma.

Celina e Colth se levantaram de seus assentos e seguiram os passageiros em desembarque. Último da fila ainda dentro do carro, pela janela, Colth pôde ver os homens armados fardados como verdadeiros oficiais em serviço.

— É óbvio que eles reforçariam a segurança — sussurrou o rapaz à Celina em sua frente.

— O que vamos fazer? — perguntou a garota em voz baixa disfarçando o dialogo enquanto se aproximavam da porta do vagão.

— Não se preocupe, eu vou usar a magia de Anima para convencer os guardas de que está tudo bem.

— Não será tão fácil, garoto — disse Koza na segurança da bolsa. O anfíbio apenas mostrava os seus olhos a Colth.

— O que quer dizer com isso? — perguntou preocupado o rapaz mirando seus olhos na criatura da bolsa de couro pendurada à cintura de Celina.

— Você conseguiu confundir bem o guarda de Tekai quando fomos embarcar nesse trem, usou sua magia para enganá-lo e fez com que o homem não levantasse suspeitas acerca de nós. Mas agora é diferente.

— Diferente? Diferente como?

— Ah, seu imbecil — reprovou Koza esbaforido. — Esses guardas estão em alerta. Significa que estão em um nível superior de percepção quando comparados ao guarda meia-boca de Tekai. Além disso, são vários guardas, duvido que você possua habilidade tamanha para controlar a magia de Anima e convencer todos eles de uma só vez.

— O quê? — preocupou-se Colth enquanto a fila estava prestes a sair completamente do vagão. — Eu consegui convencer o guarda do embarque tão fácil e...

— Você escutou o que eu disse? Esses guardas daqui estão em alerta. Sua magia porcaria de ilusionista não vai funcionar com eles.

— E agora que você me fala disso?!

A fila andou derradeira.

— Apressem-se! — ordenou o oficial para os dois últimos no vagão.

Finalmente Colth e Celina desembarcaram. O balcão de migração estava alguns passos à frente. O portador da magia de Anima engoliu seco sua apreensão.

— Próximo — proferiu o guarda atrás do balcão. Celina se apresentou com uma das mãos firmes sobre sua bolsa após respirar fundo. — Onde está disposta a trabalhar? — perguntou o homem sem qualquer ânimo. Nem olhou para a pessoa à sua frente. Com uma prancheta cheio de planilhas em mãos roubando a sua energia, aquele parecia ser o responsável por organizar a ida dos imigrantes aos locais de trabalho corretos.

— Nada em particular — respondeu Celina encapuzada pelo fino pano pardo. Não sabia o quão poderia ser reconhecida pelos guardas, manteve o rosto escondido o máximo possível sem ficar evidente.

— Forja na região Oeste, carregamento de carvão na região Leste, ou tecelagem na região Sul.

— Não há nada para a região Norte? — Não conseguiu evitar a pergunta que saiu sussurrada de sua boca curiosa, quando percebeu já era tarde demais.

— Não. — O guarda fingiu verificar a planilha em mãos. — As fabricas estão temporariamente fechadas.

— Óbvio que estão... — pensou alto Colth logo atrás da garota.

Finalmente o homem do balcão deu a mínima atenção para a garota encapuzada. Observou nada atento enquanto mascava algum resto de comida da refeição passada presa em seus dentes.

— Aí, qual é a desse capuz? — perguntou mantendo os olhos mortos pelo tédio. — É alguma seguidora fiel de Lux ou algo parecido?

— É... Isso mesmo — disfarçou ela.

— Você parece bonitinha... — disse o homem se inclinando sobre o balcão de madeira para tentar observar as sombras do rosto de Celina sob o capuz.

— Eu vou escolher a tecelagem — decidiu Celina apressada desviando-se do olhar curioso do guarda.

— Infelizmente, não há mais vagas para tecelagem.

— O quê? — ela se surpreendeu. — Mas você acabou de dizer que...

— Não se preocupe. Temos um lugar muito melhor para o seu tipo aqui na Capital — O guarda se virou chamando a atenção de um dos seus colegas: — Aí, amigo. Pode levar essa daí para o pontífice. Não esquece de dizer que foi nós que mandamos.

Celina arregalou os olhos de imediato, nitidamente o homem havia mudado de ideia quanto ao destino da garota recém chegada. Ela só conseguia se perguntar o porquê disso, não parecia ter sido reconhecida, mas foi o seu rosto que provocou essa situação.  Quando se deu conta, seu braço já era envolto pelas mãos vestidas do outro guarda.

— Não. Espera... — Não foi ouvida.

— Vem garota. Para de graça — O homem de meia idade a puxou sem cortesia. O pano sobre a cabeça da guardiã estava prestes a escorrer.

— Espera. — Colth foi impulsivo quanto àquilo. Segurou firme o mesmo braço de Celina, disputando-o com o guarda.

— O que foi rapaz? Tem certeza de que quer isso? — perguntou o homem uniformizado encarando Colth em tom intimidador.

Não tinham muitas alternativas. Se fizessem aquela situação se tornar um escândalo, seriam prontamente rendidos pela meia dúzia de guardas armados da estação e em seguida revistados tendo suas identidades reveladas.

Colth manteve-se firme, rangeu os dentes e encarou o guarda de volta. Estava prestes a apostar tudo, mas antes que isso fosse feito:

— Calma — sussurrou Celina. Ela colocou sua mão sobre o braço dele gentilmente e, pedindo pelo mesmo com seus olhos decididos, tranquilizou o rapaz ao mínimo.

Colth se sentiu o fraco de sempre. Mas essa não era a hora de mudar aquilo, sabia disso e abriu a mão sem pensar no arrependimento.

O guarda puxou Celina novamente pelos braços, dessa vez não teve resistência. A colocou sobre a sua custódia e levou a garota para o outro lado da plataforma após encarar por uma última vez Colth desistente.

— Próximo — disse o homem do balcão voltando a normalidade.

Colth só pôde observar Celina se afastando até entrar por uma porta no canto da estação com acesso restrito aos civis. Tentou se confortar apenas com o fato de Koza estar junto a ela, mas não era o bastante. Respirou fundo para se determinar a resolver a situação.

— Eu disse, próximo! — repetiu o guarda entediado.

O rapaz se encheu de determinação novamente, avançou três passos necessários para se estabelecer frente ao balcão:

— Para onde vão levar ela? — O tom inflexível soava como exigência.

— Quem você pensa que é? — o guarda do balcão mostrou a sua insatisfação. — Vou colocá-lo para carregar carvão, você vai adorar lá...

— Quem se importa com isso? — Colth avançou sobre o balcão, ultrapassou os limites da sua calma e, sem pensar, suas mãos emitiam uma luz característica sobre a madeira do balcão.

— Mas que merda você está pensando, turvo imundo?

O guarda se surpreendeu com a sua autoridade sendo simplesmente ignorada, nunca antes estivera em uma situação dessas, geralmente as pessoas baixariam a cabeça, no máximo viravam a cara, não soube ao certo como reagir uma contestação tão forte. Mesmo assim, sem dúvidas, ele não pouparia esforços para repreender o rapaz abusado.

O oficial soltou sua prancheta e colocou a mão sobre o seu coldre preso ao cinto na tentativa de intimidar o de fora. Colth o ignorou mais uma vez. Na busca por resposta, no desespero pela solução, deixou-se levar pela emoção, mais uma vez exigiu:

— Me diz onde ela... — Antes que o rapaz concluísse a sua frase abalada, algo lhe acertou à nuca. Um golpe violento certeiro em sua cabeça que, antes mesmo de lhe causar dor, causou o seu sono.

Antes de perder a consciência, ainda conseguiu ouvir uma voz familiar apaziguando a situação tensa:

— Não se preocupem, oficiais. Eu sou um anti-criaturas. E esse rapaz é um fugitivo sobre a minha custódia.

Sem saber de mais nada, Colth apagou.



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