Volume 1

Capítulo 45: Resignação

— Colth! — Socorreu o amigo, após o golpe que pareceu fatal.

O rapaz estava apenas com ferimentos leves, nada que colocasse sua vida em risco. Goro se surpreendeu com a resistência do colega, fora arremessado por metros de distância, do meio da rua até atingir uma cerca de madeira da casa vizinha e, mesmo assim, se levantou após ficar poucos segundos desacordado.

— Colth, você está bem?

— O que aconteceu?

— Ah, Colth... — Goro o ajudou a se levantar e lamentou em seu próprio som o infortúnio.

O rapaz pouco machucado entendeu de imediato, olhou ao redor e só viu destruição, fogo, fumaça e desespero. Correu para o único lugar que importava, parou frente a destroços de uma velha casa, sua velha casa.

— Não, não, não — o rapaz abalado pronunciou sua agonia com as mãos sobre a cabeça enquanto observava o corpo de sua irmã despedaçado entre o entulho e as cinzas.

— Colth. Colth — o amigo clamou pela sanidade dele sem respostas. Foi obrigado a colocar suas mãos sobre os ombros do abatido para finalmente ser escutado: — Colth, precisamos ir. Tem mais deles chegando.

— Agnes... Ela...

— Colth, eu sinto muito.

— ...

Goro foi respondido com um simples aceno de cabeça que mal podia ser interpretado. Colth estava completamente debilitado, era notável o choque que havia sofrido ao ver toda a sua vida em destroços. Esmoreceu os ombros e seguiu o amigo de infância sem qualquer causa. Não conseguia pensar em mais nada, não tinha motivos para pensar em mais nada.

Goro guiou o colega pela cidade em brasas, por vezes, teve de empurra-lo para manter o passo. Era como escoltar um corpo sem alma, sem vontade de viver mais um dia naquela terra assolada. Goro persistiu, não desistiu, deixou a cidade que se resumia a fumaça e caos para trás e adentraram ao bosque sombreado às margens de Toesane.

Goro implorou aos céus para encontrar qualquer um no seu caminho que pudesse ajuda-los, mas foi em vão, a cidade e os arredores estavam vazios, nem se quer animais foram vistos, provavelmente espantados pelas explosões de energia vinda dos canhões aos pés das grandes montanhas do oeste, divisórias entre Toesane e Albores.

Continuaram com a passos lentos, encontraram uma pequena caverna com alguns mantimentos, uma simples cavidade nas pedras próximas ao terreno pantanoso a leste da cidade, grande o bastante para servir de abrigo da chuva que começava a se apresentar nas nuvens. O lugar parecia ter servido de abrigo para alguma caravana em um passado recente visto que a fogueira ao centro do abrigo ainda possuía cinzas não levadas pelo vento.

Só de pensar que o reino de Albores estava por trás de toda aquela destruição fazia o sangue de Goro ferver. Tentou deixar aquilo de lado por um momento e, ao adentrar à caverna, ajudou Colth a se sentar ao chão frente da fogueira fria.

— Espera, eu vou acender isso — disse o mais velho preparado com uma pedra de sílex em mãos enquanto o outro apenas observava as próprias mãos vazias sem qualquer esperança.

Após acesa, a fogueira permaneceu ardendo por mais dois dias. Goro foi o responsável por buscar água e frutos da floresta próxima para mantê-los vivos. Colth, por quase, não se moveu durante todo o período, manteve-se sentado com um dos ombros encostado na parede rochosa enquanto seus olhos encaravam o fundo escuro da caverna.

Os barulhos de explosões distantes já haviam cessado há tempos, mas algumas poucas silhuetas de fumaça permaneciam se elevando aos céus, resultantes das brasas que terminavam de correr os restos de construções de Toesane.

Poucas palavras foram trocadas no pequeno reduto, mas Goro, enquanto sentado ao chão na entrada da caverna, após observar por mais de trinta minutos ininterruptos aqueles riscos cinzas no céu azul e o vento levando suas lembranças daquele lugar, quebrou o silêncio:

— Eu vou acabar com isso. — Sua voz séria ecoou pelo pequeno abrigo natural e encontrou os ouvidos de Colth que não demonstrou qualquer reação. — Vou encontrar quem fez isso, e vou faze-lo desejar nunca ter pisado em Toesane.

— ...

— Colth — chamou sério apontando seus olhos para o moribundo ao fundo da caverna —, eu quero a sua ajuda.

 — ...

— Você não está com raiva? Não viu o que fizeram com sua família?

— Por quê? Por que isso aconteceu? — perguntou sem quase movimentar a boca ressecada.

— Não importa. Vamos faze-los pagar. Vamos atrás de cada um e...

— Não.

— O quê?

— Nada disso importa mais — completou decadente.

O estalo da lenha da fogueira se fez presente para pontuar a mudança de tom da conversa. Goro apertou forte os seus punhos corroendo-se pela raiva:

— Não importa? Não importa!? — Levantou-se com o ódio. — Você vai deixar isso assim? Depois do que fizeram.

— Eu vou cumprir a promessa que fiz.

— Promessa?

— Eu vou entrar para a guarda Real.

— Você escutou o que você falou? — Desacreditou Goro. — Acabou de dizer que vai se unir aos inimigos que acabaram de...

— É isso que farei. Você gostando ou não. — Colth foi mais incisivo.

— O quê?

— Eu vou vencer você, vou me tornar um guarda Real, com certeza — disse sorrindo para a escuridão pacífica do fundo da caverna.

— De que merda você está falando, Colth? Tudo acabou quando...

— Eu já disse, vou cumprir a promessa que fiz. — O rapaz do fundo da caverna virou a cabeça para entrada e mostrou o seu sorriso perverso de canto de boca com os olhos presunçosos, determinado concluiu: — Vou vencer você, Goro.

— Você está fora de si. — Mirou o seu ódio ao amigo. — Que se dane.

Goro se virou, não tinha mais nada a dizer, não tinha mais o que dizer, a raiva lhe consumiu. Caminhou com os passos pesados para fora da caverna. Se perdeu em meio a vegetação da floresta em direção a cidade.

***

A dor de cabeça não cessava, por outro lado, o choro finalmente parecia ter sido superado. Colth respirou fundo para tomar uma única decisão. Após lembrar-se de tudo o que escolheu esquecer, talvez por isso a dor de cabeça, se levantou do chão daquele beco próximo à estação de passageiros da Capital.

Goro também estava ali, se recuperando do sonho mais marcante de sua vida. Sentado ao chão com as costas na parede de tijolo, percebeu a determinação repentinamente ganha por Colth que já caminhava com uma direção certa para fora dali. O rapaz levantou-se de imediato para alcança-lo:

— Espera, Colth. Onde você vai? — foi determinado.

— Nem tente me impedir de novo — afirmou ele avançando os passos e mirando a rua principal da cidade.

— Você se lembrou, não foi? E mesmo assim, você não sente nada por...

— Cala a boca! Você não sabe nada sobre mim! — Colth se virou irritadiço com os olhos ainda molhados pelas lágrimas. Se conteve respirando pesado encarando o outro, continuou sem perder o tom confrontante: — Você não entende!

— Não entendo? — repreendeu Goro. Não diminuiu o tom e muito menos recuou: — Não entendo? Eu sou o único, desse mundo inteiro de merda, que entende! Eu também estava lá. Eu senti o seu desespero quando viu o corpo de sua irmã sem vida! Eu sofri, tanto quanto você, quando foi acertado por aquela mulher de vermelho! Eu te tirei de lá, te tirei das cinzas enquanto Toesane era rasgada do mapa!

Colth desviou o olhar, mas Goro avançou ainda mais enfático para fazê-lo ouvir:

— Mas eu não tive a sua sorte, não tive a sua apatia. Não consegui esquecer, nem por um segundo, o som das pessoas daquela cidade, o som dos gritos das pessoas que eu conhecia sendo consumidos pela guerra de uma única força. — pausou suas palavras e respirou com raiva as suas lembranças. — Sabe o que eu encontrei, depois que retornei daquela caverna para Toesane?

— Goro, eu...

— Nada, Colth. Eu não encontrei nada. Nem uma pessoa viva. Eu te acho um covarde. Te acho um fraco, um perdedor, por ter simplesmente virado as costas para tudo o que aconteceu. Mas ao mesmo tempo, eu te invejo. Queria poder fingir que nada disso aconteceu, mas aqui estou eu de novo, como se não fosse possível escapar, como se tudo me empurrasse para o sentimento de punição. E quando eu acho que vou superar esse sentimento, quando estou prestes a pegar o trem só de ida para longe dessa confusão, eu esbarro em você, e tudo volta. Isso é tão injusto. É injusto que a única pessoa que me entenderia, esqueceu de tudo e, quando eu tento o mesmo, quando eu tento deixar tudo para trás, essa mesma pessoa ressurge para me impedir. Que merda.

Colth baixou a cabeça. Em silêncio permaneceu por alguns segundos enquanto o outro recuperava o fôlego perdido para suas palavras odiosas.

— Tem razão. — Voltou a erguer os olhos após decidir-se: — Goro, eu sinto muito. Me desculpe por não ter te acompanhado, me desculpa por deixa-lo para trás. — Pensou por mais um segundo. — Mas agora eu lembro. Eu entendo. E eu vou assumir tudo a partir de agora. Por isso, pode voltar para a estação e pegar o primeiro trem para longe daqui...

— Idiota. Eu não quero suas desculpas. Eu não quero a sua compaixão. Eu vou junto, assim como disse após os ataques. Vamos juntos acabar com isso.

— Não é tão simples, Goro. Não é o que nós achamos que era e...

— Está falando da guardiã? Da mulher de vermelho? — perguntou Goro surpreendendo Colth.

— Como você...

— Eu disse que eu não esqueceria. Eu me afundei nisso de um jeito que você não imagina.

— Não... — Colth balançou a cabeça e se virou para recusar o auxilio do amigo. — Esquece, você não entende onde está se metendo.

— Você vai atrás daquela garota, não é? — contestou Goro. Refletiu, finalmente reconheceu o amigo.

— Não é da sua conta...

— Você não vai virar as costas para mim de novo, vai?

Colth parou os seus passos convictos e manteve-se em silêncio.

— Eu sei para onde vão leva-la — persistiu Goro.

Colth estava prestes a deixar o beco para entrar na rua a procura de Celina, mas e depois? Por onde começaria essa busca? Mas sobre tudo, o que fez ele parar, foram as palavras de Goro. Virar as costas de novo, depois de tudo o que foi falado, depois de tudo que sofreram, respirou fundo para mudar os planos:

— Como você sabe?

— Ué? Eu sou um militar, esqueceu?

— É, claro. Você não para de se vangloriar disso — rebateu Colth, mas imediatamente mudou de ideia sobre as suas próprias palavras: — Se bem que, você não parece tão feliz com isso hoje.

— Não enche. — Goro desviou o olhar como se não pudesse ser atingido pelos dizeres. — Escuta, se você quer encontrar a garota, vai precisar saber onde ela está e como chegar até lá.

— E se você quisesse me dizer, já teria dito. E então, o que você quer?

— Simples — respondeu o anti-criaturas em um único sopro. Caminhou em direção ao outro e, com o seu sorriso de canto de boca esnobe característico, continuou com as suas exigências: — Eu vou com você e, além disso, vai me dizer tudo o que sabe.

Frente a frente, Colth não evitou afastar o seu olhar com ressentimentos. Não podia perder tempo, a prioridade de achar a Celina o quanto antes, para então, rumarem em encontro a Garta e finalmente dar um fim nisso tudo, se mantinha.

— Você sabe que está colocando tudo a perder, né?

— Eu já não tenho nada... E então? — apressou Goro.

— Tá, eu não me importo — aceitou a contra gosto. — Só não vá...

— Perdeu mais uma, otário! — vangloriou-se. — Agora diz, quem é o mais esperto? — Goro contornou o colega e seguiu para a rua.

— ...não vá cantar vitória — complementou Colth apenas para si mesmo. Não foi escutado pelo rapaz convencido que já caminhava pela calçada com um destino em mente.

Colth nem fez questão de parar aquilo, era o esperado vindo da pessoa com quem tanto conviveu e, até certo ponto, lhe trazia um sentimento nostálgico de uma forma que lhe fez abrir um sorriso disfarçado.

Passado a disputa, Colth alcançou o readmitido colega:

— Para onde vamos?

— Para a região central da Capital — respondeu Goro caminhando pela calçada movimentada da avenida Norte-Sul da cidade.

— Tá brincando? Isso fica muito longe daqui, não? A pé deve demorar, pelo menos meia hora.

— Não — continuou convicto da sua direção. — Deve demorar mais de uma hora.

— Ótimo — irônico —, não está pensando em pegar o trem né? Se eu voltar lá na estação, os guardas vão acabar comigo.

— Ah, não sei, talvez eles conversem com você, Colth. — Goro imprimiu o seu tom mais sarcástico. — Parece que agora você está mais tranquilo. O que aconteceu? Lembrou que tem alguém mais capaz do que você para te ajudar?

— Haha — forçou o riso. — Não acredito que eu vou ter que aguentar isso por uma hora inteira de caminhada debaixo de sol.

— Mas não vai precisar. — Goro cessou a caminhada em meio a calçada.

— Hã? — Colth parou um passo adiante sem entender.

— Como um membro de uma das forças mais respeitáveis desse império. Eu, aquele que o seu amigo de infância veio lhe implorar por ajuda...

— Eu não implorei por nada — resmungou Colth envergonhado em meio aos pedestres.

— Possuo o meio de transporte do futuro. — Sorriu cheio de si — Lhe apresento a cavalaria urbana dos anti-criaturas, meu amigo.

Colth ficou boquiaberto ao notar sobre o que o rapaz orgulhoso se referia. Um automóvel preto dos mais belos. Mesmo que não soubesse nada sobre essas coisas, Colth podia sentir o poder e a valia daquele monte de metal polido sobre rodas que faziam os pedestres dobrarem o pescoço curiosos enquanto passavam.

Ainda admirado, o rapaz teve o seu ombro esquerdo tomado pela petulância de Goro que se escorava amigavelmente ao colega:

— Você vai falar o quanto eu sou incrível agora ou no caminho?

— C... — Com os olhos brilhando, Colth admitiu aquela derrota. Sussurrou um palavrão que nem sabia existir.



Comentários