Volume 1

Capítulo 68: Noite sem Lua

Colth abriu os olhos mesmo não lembrando de tê-los fechado. A noite escura era iluminada apenas por algumas poucas estrelas.

Levantou-se desorientado e se viu em meio a um espaço amplamente aberto, o rapaz demorou para se acostumar com a escuridão. Quando os seus olhos finalmente se habituaram a ausência de luz, percebeu que estava sobre grandes destroços do que um dia foram construções.

— Onde eu estou? — perguntou girando o corpo para visualizar o mesmo em todas as direções.

Pedras, tijolos, poeira, destroços, para todos os lados. Solitário ali, apenas o vento lhe fazia companhia. Mas uma coisa chamou sua atenção, um pedaço de escombro, do que um dia foi uma parede de tijolos ao chão, pareceu ter sido movido.

Algo estava evidentemente enterrado ali e, quando o guardião se aproximou, foi surpreendido por um gemido de esforço. Não era simplesmente algo, era alguém. Colth correu ao auxílio do soterrado e apressadamente cavou com as próprias mãos os escombros amontoados.

Uma mão humana apareceu debaixo de tantos destroços implorando por ajuda. O rapaz não hesitou em agarrá-la e então puxá-la para a superfície.

A pessoa soterrada foi revelada, ela recuperava o fôlego enquanto coberta da poeira dos escombros.

— Celina, você está bem? — perguntou Colth um tanto surpreso com a situação em que se encontravam.

— Sim... eu estou. — A garota também parecia confusa enquanto observava o seu próprio corpo se certificando de não ter ferimentos.

— Ainda bem — respondeu Colth grato.

Celina confirmou o mesmo sentimento acenando positivamente com a cabeça tentando manter-se firme sobre os seus sentimentos.

— O que aconteceu?

— Você também não sabe? — rebateu Colth.

— A última coisa da qual me lembro, era de que estávamos na asa de Koza e então algo nos acertou no ar.

Ambos ficaram pensativos tentando recolher lembranças que não existiam.

— Achei eles! — gritou uma voz conhecida distante, feliz pela descoberta.

O dono da voz correu entre as construções em ruínas acompanhado de mais uma figura conhecida. Eram Goro e Garta que, ao se aproximarem, mostraram suas feições aliviadas.

— É bom ver vocês bem — disse a guardiã de Finn ao se reunir em conjunto com Goro aos outros dois.

— Sim, é ótimo ver você também — respondeu Colth animado arrancando um olhar acanhado de Celina ao seu lado. Ele continuou manifestando a sua preocupação: — Mas o que aconteceu? Onde estamos?

— Onde estamos? — Koza repetiu a pergunta se apresentando, ao saltar sobre Goro e pousar em seu ombro.

— Koza — vislumbrou-se Colth —, você voltou a ser um sapo.

— Mesmo após ver minha verdadeira forma, você insiste em continuar me chamando de sapo? — resmungou a criatura. — Não é de se surpreender, vindo de um moleque como você...

— Obrigado. — Colth interrompeu ele. — Obrigado por nos proteger — disse sincero.

— Hum? — A criatura surpreendeu-se. Recebeu os olhares agradecidos de todos os outros em silêncio respeitoso e brevemente se deixou levar pela emoção. Percebeu isso e rapidamente cortou a atmosfera comovente: — Eu só estava cumprindo ordens, não me venham com essa.

— Mesmo assim — Celina se aproximou e tocou a face da criatura com delicadeza em afeição—, obrigada. E me desculpe por confrontar você.

A criatura desviou o olhar após apegar-se a carícia:

— Você não teve culpa, estava sendo controlada por aquele deus babaca. — Chacoalhou a cabeça se esquivando da mão delicada de Celina — Agora chega disso, eu não sou um bichinho de estimação.

Celina sorriu satisfeita e deu um passo para trás atendendo ao pedido da criatura.

— Olhem, está amanhecendo — Goro chamou atenção para os primeiros raios de sol —, vai ficar mais fácil de caminhar por esse entulho. Aliás, que lugar é esse?

— Foi isso o que eu acabei de perguntar — esbravejou Koza — ficou surdo, foi?

— Eu acho que deve ser alguma cidade abandonada, distante do império — disse Colth.

— Você lembra onde pousou, Koza? — Celina interrogou.

— Não. Eu nem lembro de ter pousado.

— Bom, deve ser alguma cidade ao sul de Albores, foi a direção para onde estávamos voando antes da queda. — resumiu Garta.

— Tem razão. Então temos de voltar para a capital o mais rápido possível — concluiu Colth.

— Muito bem então, o que acham de nós...

Repentinamente algo zuniu nos ouvidos de Goro. Algo que passou tão rápido no ar, em meio ao grupo, que eles não conseguiram nem identificar o que era. O rapaz arregalou seus olhos observando sua vida passar diante deles:

— O que foi isso?

Celina acompanhou a direção do objeto ligeiro e logo descobriu do que se tratava. Uma flecha, recém fincada em uma pilha de escombros atrás deles.

— Mas que merda... — Garta se preparou para algo, mas não teve tempo de se virar para ver a origem de onde a flecha fora disparada.

— Nem pensem em se mexer. Se moverem um músculo, se respirarem mais do que o necessário, eu acerto a próxima flecha bem no centro da sua cabeça — ameaçou a voz jovem iluminada pelos caprichos da primeira luz do dia.

Era uma garota, talvez da mesma idade de Celina. Seu rosto suave e imaturo, e suas roupas caprichada em bordados e majoritariamente rosa, contrastava com a expressão rancorosa e o tom ameaçador que exibia ao preparar o arco. Ela puxava a corda da arma, até que estivesse esticada e pronta para disparar mais uma de suas flechas. A aljava cheia de setas pontiagudas se destacava presa à cintura pelo cinto de couro branco delicado que também era responsável por afixar a sua saia rosada.

Todos do grupo levantaram as mãos em sinal de rendição, deixando claro que não tinham intenção de revidar.

— Quem é ela? — sussurrou Celina.

— Não faço ideia — respondeu Colth imediatamente.

— Ela me lembra alguém... — Garta pensou em voz alta.

— Silêncio! — a garota ameaçou novamente, mirando com os olhos fixos, apontando a flecha para a cabeça de Colth.

A visibilidade da garota não era ideal. O sol contra seu rosto permitia apenas a observação das sombras das silhuetas dos alvos, mas era o suficiente para alguém que havia dedicado os últimos anos a aprimorar suas habilidades de arquearia acertar um inimigo àquela distância.

A garota estalou a língua movendo os seus lábios delicados. Chamando a atenção, se manteve imóvel e pronta para o disparo. No momento seguinte, três grandes lobos negros emergiram dos destroços e cercaram o grupo.

— Sirveres? — Goro ficou espantado ao reconhecer as criaturas sombrias. — Não pode ser verdade.

— Não. Essas coisas de novo — preocupou-se Celina.

— Fiquem atrás de mim — ordenou Colth, enquanto dava um passo para trás junto ao grupo. Ele puxou sua adaga de Sathsai do cinto e se preparou para o que estava por vir.

De costas uns para os outros, o grupo permanecia unido no centro do cerco das criaturas sombrias lideradas pela arqueira desconhecida.

A garota não desviava a atenção dos alvos e, com passos laterais suaves, tentava melhorar sua visão do grupo.

Os lobos negros rosnavam frente às possíveis presas, mas não atacavam, apenas ameaçavam o grupo e aguardavam as ordens da garota estranha.

— O que vocês estão fazendo aqui? — perguntou a arqueira, dando mais um passo lateral.

— Nos perdemos e acabamos sem direção — respondeu Colth.

— Se perderam? Acham que sou idiota?

— Garota, nem sabemos onde estamos. É a verdade — complementou Goro. — Só queremos voltar para a capital de Albores.

— Capital? — ela perguntou mais uma vez após um segundo pensativa. Dando mais um passo lateral, tentava fugir do sol que atingia diretamente os seus olhos. — Quem são vocês?

— Meu nome é Goro. E quem é você?

— Que nome idiota — ela respondeu de forma provocativa, evitando a pergunta. — Vocês são da Vanguarda?

— Vanguarda? — Garta assumiu a conversa em tom combativo. — Não, não fazemos parte dessa tal Vanguarda. Escute aqui, garota, se não vai nos dizer quem você é, então...

— Espera, Garta! — Colth tentou contê-la.

Deu resultado, a guardiã calou-se. A garota estranha também parou os seus passos laterais e finalmente conseguiu deixar o sol em um ângulo que não atrapalhasse os seus olhos. Afrouxou a corda de seu arco boquiaberta.

— Isso é sério? — perguntou ela. Em seguida, colocou o arco nas costas e guardou a flecha na aljava e, escondendo o rosto sussurrou para si mesma: — Não surta. Não surta.

— O que ela está fazendo? — perguntou Goro estranhando em conjunto com os outros.

A garota deu mais um estalo com a língua e, em instantes, os lobos de pelagem escura se acalmaram e deixaram de parecerem ameaçadores.

— Me sigam — disse a estranha. Simplesmente se virou e começou a caminhar sobre os escombros na direção do Sol.

Os lobos seguiram os passos da líder deixando para trás o grupo de Colth.

— Acham que é seguro confiar nela? — perguntou Celina em voz baixa.

— Vamos descobrir, mas não tirem os olhos dela. — Garta não baixou a guarda e avançou ao pedido da garota.

Colth e Celina concordaram com olhares entre si, e caminharam seguindo o instinto corajoso de Garta.

— Esperem — solicitou Goro. — Vão mesmo seguir a menina que acabou de ameaçar vocês? — foi minimamente ignorado.

— Anda logo, seu molenga — apressou Koza no ombro do rapaz.

— Ela, literalmente, controlou os Sirveres. Não acham isso estranho?

— Se não percebeu — respondia a criatura no ombro do rapaz de forma ácida —, o único estranho aqui é você.

— Falou o sapo... — murmurou reclamando, mas mesmo não concordando, Goro seguiu o restante.

O grupo seguiu a garota estranha pelos destroços, pisando com cuidado entre os escombros que pontilhavam o caminho de ruas em ruínas. Os prédios mal eram reconhecíveis como construções.

A garota se movia com agilidade e destreza, como se conhecesse aquele labirinto de ruínas como a palma de sua mão.

— Vai nos dizer quem é você? — perguntou Garta em meio a caminhada.

— Quando chegarmos — condicionou a estranha. Sussurrou em seguida seus pensamentos: — Calma. Não surta.

— Essa garota é bem estranha — comentou Goro com a criatura em seu ombro. Mirou a menina das roupas delicadas à frente e gritou: — Aí! Chegarmos onde, garota fofinha? Aqui só tem entulho. Lugarzinho mais asqueroso.

— Tudo isso me traz péssimas lembranças — sussurrou Colth melancólico.

— Tem razão, mas ainda assim, são suas lembranças. Não as esqueçam só por que é conveniente — respondeu Goro com ar superior.

— Eu sei, eu sei. Não se preocupe.

— Eu não reconheço esse lugar — comentou Celina —, mas essas montanhas ao longe, parecem com as...

— Apressem o passo — disse Garta ao ver os outros ficarem distantes. Eles concordaram.

A garota à frente se fez ouvir:

— Estamos chegando, apenas continuem me acompanhando.

À medida que avançavam, os destroços se tornavam mais densos, dificultando a passagem. Mesmo assim, a garota parecia saber exatamente para onde ir, contornava os obstáculos e encontrava passagens estreitas entre as ruínas que levavam mais adiante.

O grupo seguia atrás dela, assim como os lobos em silêncio cauteloso. O cenário ao redor era desolador, repleto de ruínas de antigas construções, escombros e sombras sinistras com um ar impregnado pelo cheiro de abandono e destruição.

— Chegamos — anunciou a garota com o arco nas costas e as flechas na cintura.

Ela finalmente parou diante de uma estrutura parcialmente intacta, um edifício antigo, com paredes desgastadas pelo tempo e janelas quebradas. O local exalava um ar misterioso, mas não passava de mais uma ruína entre tantas outras.

Goro, com desdém, observou a pequena construção em péssimo estado e reclamou:

— Esse é o lugar? Só pode estar brincando.

A garota, mostrando sua insatisfação sobre os comentários, olhou para o grupo com uma expressão julgadora.

— Não olhe para mim — respondeu Garta —, ele não é meu amigo. A culpa é do Colth de trazer esse cara com ele.

— O Colth não me trouxe — rebateu Goro —, eu que o trouxe. Vocês que estão me acompanhando.

— Aham, claro — resumiu Garta sem importância.

A garota estranha abriu a porta de metal da pequena construção, revelando um interior escuro de apenas um cômodo. Sem hesitar, ela adentrou o local, convidando o grupo a segui-la. Os lobos ficaram de guarda no exterior da construção enquanto um misto de curiosidade e cautela pairava no ar, mas a necessidade de respostas e abrigo do grupo os faziam prosseguir.

No interior, uma bancada e algumas prateleiras quase vazias. Ao fundo do cômodo, a garota abriu uma portinhola ao chão deixando evidente uma rampa para o subsolo. Desceu se esgueirando pelo pequeno espaço sendo acompanhada pelo grupo até estarem em um novo ambiente.

Era um porão recheado de mantimentos, tralhas e galões de água, uma reserva preciosa em meio à devastação. Ao fundo da extensa sala, uma pessoa de costas estava sentada em uma velha poltrona frente a um rádio. O grupo parou, observando o lugar, enquanto a garota se apressou para encontrar a pessoa solitária.

— Como você está? — perguntou ela à figura na poltrona, ansiosa por uma resposta.

— Você voltou, que bom. Eu já estava ficando preocupado — respondeu o homem na poltrona.

— Não precisa ficar preocupado comigo, eu sei me virar. — A garota deu uma leve observada no grupo que observava o porão e seus mantimentos, principalmente para Garta, que fixava sua atenção ao diálogo no fundo da sala. — Eu achei. Finalmente, nós achamos.

— O quê?

— Os guardiões. Eu os encontrei — sorriu a garota com felicidade e esperança reluzente em seus olhos.

— Tem certeza? — perguntou o homem surpreso.

— Sim. Deixe-me virar a poltrona.

A garota estranha se esforçou para mover a poltrona em que o homem estava sentado, girando-a de modo a deixar a figura de frente a todos os outros.

O homem finalmente observou os visitantes. Reconheceu a primeira sem demora, disse esboçando um sorriso:

— Garta.

A mulher do outro lado da sala se aproximou com passos lentos para ter certeza de que reconhecia o rosto do homem. Era ele, só podia ser ele, mesmo que com mais rugas, manchas da idade na pele do rosto e uma perna visivelmente prejudicada.

— Índigo... — sussurrou Garta. Teve certeza de suas suspeitas sobre a garota e se voltou a ela: — Iara? É você?

A garota, não tão estranha agora, sorriu leve e chacoalhou a cabeça positivamente.

— Mas você...

— Tenho quase a sua idade — interrompeu Iara. — Foi uma longa espera por você. Por todos vocês. — Deixou claro observando todo o grupo que se mantinha surpreso. Ela sorriu radiantemente amável. — Mas agora estão aqui. O tempo pode finalmente, voltar a andar.

O ambiente ganhou uma tranquilidade confusa, como se a própria atmosfera se tornasse mais leve pela estranheza, mas o inverso da fofura vindo do sorriso da garota foi estampado no rosto de Celina que recuou visivelmente preocupada:

— Ah, não...

— O que foi? — Colth atencioso.

— Isso o que ela falou... Esse lugar, as montanhas ao redor... essas ruínas — Celina pensava alto enquanto balançava a cabeça negativamente. — Não há motivos para voltarmos à capital.

— Ficou maluca é? — Goro se irritou. — Vai desistir?

— Não há motivo para voltarmos, porque ainda estamos em Albores. Esta é a capital do império, nós nunca saímos dela. Nunca nos movemos fisicamente, apenas nos movimentamos pelo tempo — Celina se virou rápida para Iara, e a pergunta foi feita automaticamente: — Quanto tempo? Quanto tempo se passou?

Iara ficou mais séria, entendendo o sentimento da guardiã. Respirou fundo para responder o que tinha na ponta da língua, afinal, ela contou os dias até aquele momento. Respondeu curta, desviando o rosto sentido:

— Nove anos.



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