Volume 2
Capítulo 117: Distância
Garta mantinha a posição defensiva frente a Colth, desviando a energia ofensiva devastadora que Aldren utilizou para atacá-lo. A lateral da lâmina da espada de Finn rangia sob a pressão, mas ela mantinha o controle com bravura e resolução em seu olhar.
Colth não conseguia enxergar a magia que acertava a lâmina, mas podia notar o esforço no rosto de Garta e o resíduo mágico em forma de faíscas intensas se desprendendo ao redor dela. Ele permaneceu boquiaberto, não só pela cena brilhando em seus olhos, mas pela presença da guardiã.
— Eu achei que você estivesse... — começou ele, sem acreditar no que via.
— Até parece — rebateu ela, interrompendo as palavras pesadas.
Garta lançou um olhar sobre o ombro, encarando Colth com uma expressão que falava por si só. Mesmo assim, ela fez questão de reforçar a bronca ácida, vociferando com autoridade:
— Agora, cala a boca e tenta não morrer!
Em seguida, Garta mirou seus olhos a dupla que vinha atrás de Colth.
Iara e Goro permaneciam paralisados, o choque estampado em seus rostos, tal como o guardião de Anima.
— Precisamos ganhar tempo! — gritou Garta, como um pedido.
Goro, que até então absorvia a visão daquele caos de luzes e faíscas, reagiu primeiro. Ele sorriu com intensidade, aliviado pelo bem-estar dela. Em seguida, notou a expressão confusa de Iara ao seu lado, ele levou a mão até o rosto da garota e empurrou, gentilmente, o queixo da companheira para cima, até fechar sua boca entreaberta de admiração.
— Você ouviu a Garta, fofinha — disse ele, com o sorriso que carregava mais coragem do que ele próprio.
Iara piscou algumas vezes, despertando da fascinação, e confirmou com um aceno decidido.
— Tá legal — confirmou ela.
Sem mais hesitar, Iara se concentrou em sua magia, e os três lobos Sirveres emergiram do outro lado do salão, nas sombras de Aldren, em sincronia. Eles abocanharam as pernas do imperador com voracidade, interrompendo momentaneamente seu ataque.
— Criaturas nojentas... — reclamou Aldren, de costas para o altar onde se encontrava a Deusa Lux acorrentada e seus homens encapuzados. Sua concentração se esvaiu junto com a energia que lançava em direção aos inimigos.
Garta finalmente pôde respirar e baixar a espada, sem mais ser alvo do ataque de Aldren. Ela recuou até o seu grupo, reunindo-se com Colth, e então, com Goro e Iara, próximos da entrada do salão.
— Está satisfeito, Colth? Conseguiu estragar tudo — reclamou Garta, acertando-o com os olhos duros.
— Eu não entendo, Garta... como foi que... — Colth balbuciava as suas dúvidas, ainda impressionado.
— Eu que digo que não entendo — rebateu ela, em bronca. — Como você pôde partir em direção àquele ataque? Por pouco você não foi esmagado por aquela energia.
— Do que você está falando? — Colth estranhou. — Não havia energia alguma. O ataque do Aldren é simplesmente uma força sem forma.
Goro chamou a atenção para si ao apontar o dedo indicador e seus olhos reprovadores a Colth:
— Por mais que seja um ataque sem forma, você foi um completo idiota correndo na direção do Aldren daquele jeito. Não viu o que aconteceu com a...
Goro se interrompeu, hesitando e erguendo um silêncio fúnebre entre eles. Não durou mais do que um segundo, Garta fez questão de interromper aquilo:
— Não tem nada de “sem forma” no ataque de Aldren e... Espera aí. Vocês não conseguem ver? — Garta varreu com os olhos espantados os rostos dos três amigos. — O ataque de pura energia que parte de Lux e é controlado por Aldren? Vocês não veem, mesmo?
Os três se entreolharam, um tanto confusos. Iara se anunciou:
— Bom, eu vi as almas corrompidas dos encapuzados sendo absorvidas por Lux, pouco antes dos ataques de Aldren.
— Almas? — Garta repetiu, estreitando os olhos enquanto tentava entender.
Assim que a compreensão começou a parecer estar longe, a voz de Lashir surgiu na cabeça de Colth para expor:
“É isso. Lux está absorvendo as almas dos sacrifícios, e Aldren está usando essa energia acumulada para seus ataques.”
Colth não pensou duas vezes ao receber a elucidação, chamou a atenção dos outros:
— É... — se pronunciou ele. — Eu ouvi minha “consciência” falando, se é que vocês me entendem, e ela disse que o Aldren está usando as almas dos encapuzados que Lux absorve para nos atacar com essa energia que, aparentemente, só a Garta vê.
Garta, com a expressão ainda pensativa preenchendo o seu rosto, tentou compreender e se voltou à Iara:
— Mas por qual motivo você consegue ver a absorção dessas almas por Lux?
Iara deu um passo à frente, com a expressão serena.
— É uma longa história, mas basicamente... eu me tornei a guardiã de Véu.
— Você? — Garta se surpreendeu — Uma guardiã?!
— Sim. Foi como Índigo planejou. Agora, além de invocar as criaturas sombrias, consigo ver as almas das pessoas. Isso é comum para uma guardiã de Véu, mas não entendo como você consegue ver os ataques de Aldren.
Garta suspirou, balançando a cabeça enquanto observava Aldren distante. Ele finalizava o primeiro Sirveres, com os próprios punhos, sem usar aquela estranha energia, como se estivesse economizando. Garta manteve-se pensativa, tentando encontrar a lógica.
— Também não sei — disse ela, ao voltar sua atenção aos amigos. — Mas é estranho que eu só consegui enxergar essa energia, saindo de Lux e sendo controlada por Aldren, com o meu olho esquerdo.
— Com o olho esquerdo? — repetiu Iara, intrigada.
Colth, após um momento, se manifestou, trazendo seus pensamentos à tona:
— Foi o olho que a Celina curou. É possível que a magia de Tera utilizada por ela, tenha deixado sequelas — disse Colth.
— Sequelas? — Iara estranhou a palavra utilizada. — Isso foi a sua “consciência” falando, não foi? — supôs ela, elevando uma das sobrancelhas e encarando o guardião de Anima.
Colth coçou a nuca, um pouco sem jeito, mas confirmou.
— É, foi sim.
Garta inclinou a cabeça, os olhos estreitando de leve.
— O que é isso de “consciência”? — perguntou ela, minimamente curiosa.
Iara respondeu antes que Colth pudesse.
— É uma amiga, não tão imaginária, do Colth — expôs Iara —, a Lashir.
— O quê?! A Lashir?! — Garta se surpreendeu novamente. Zangou-se. — Como que...
— Essa é uma outra longa história — interrompeu Colth, convicto. E se antecipou a qualquer julgamento dela. — Mas confie em mim, eu tenho tudo sob controle.
Garta não recuou e se mostrou inconformada.
— É, deu para ver quando você se atirou para a morte no ataque do Aldren — rebateu ela, sarcasticamente áspera, levantando a voz e pronta para encará-lo em divergência. — Parece que tudo está sob controle mesmo...
A tensão surgiu e se estabeleceu rapidamente. Mas antes que tomasse um caminho sem volta, Iara deu um passo à frente e se colocou entre eles. Seu olhar determinado encontrou o da outra guardiã.
— Pode parar, Garta — disse Iara, séria. — Eu já fiz isso, já dei uma bela bronca nele. Não precisa se preocupar, eu acredito nele — resumiu.
Garta parou, hesitou, endureceu os olhos ainda mais.
— Você acredita nele? — repetiu ela, em ceticismo. — Você sabe o que esse tipo de confiança já nos custou antes, não sabe? Foi a mesma coisa com o Bernard e...
— Sei muito bem. — Iara manteve o tom calmo, embora seus olhos refletissem firmeza, como se estivesse defendendo algo maior. — Fui eu quem mais sofreu com isso, já se esqueceu? A ideia de tentar uma conciliação com Bernard foi do Colth, e deu errado de todas as formas possíveis. Eu quase morri, por conta disso.
— Isso mesmo, então... — tentou Garta.
— Mas — Iara continuou à força —, foi o próprio Colth quem me salvou. Não só ele, a Lashir também foi fundamental. Se não fosse por eles, eu não estaria aqui. Não sou ingênua, Garta. Como eu disse antes, ver as almas das pessoas, é algo comum para uma guardiã de Véu.
Garta respirou fundo, os olhos fixos nos de Iara. Hesitou novamente, dessa vez algo em sua postura mudando por um breve instante. Logo ela revirou os olhos, soltando um suspiro pesado que expressava tanto frustração quanto cansaço. Talvez, se estivessem em outra situação, ela manteria as suas dúvidas e negaria qualquer conciliação, mas não era hora para isso.
— Ah... — começou Garta, evidenciando o seu desgosto enquanto cedia. Criticou em seguida: — Eu fico algumas horas fora e vocês dois já estão cheios de surpresas.
Por um instante, o silêncio pairou entre eles, mas desta vez havia uma compreensão não anunciada.
Goro bufou alto, rompendo a pausa com uma frustração que parecia estar entalada há tempos. Ele jogou os braços para o alto antes de cruzá-los, sua voz transbordando irritação.
— Ah, perfeito! Sou o único aqui que não é guardião! Não vejo energia, não vejo almas e, pra completar, não ouço porra nenhuma do além! Isso é ridículo!
Os três olharam para ele, julgando aquela reclamação que beirava ao máximo do narcisismo.
— Sério, Goro? — sentenciou Garta, um desabafo cansado.
Colth suspirou, conhecendo bem aquele tipo de cena, enquanto Iara balançava a cabeça com uma reprovação prática. Em seguida, ela apressou suas preocupações:
— Tem algo mais importante do que o orgulho ferido do Goro, agora. Acabei de invocar o Capelobus para manter o Aldren ocupado, mas não vai durar muito tempo — disse Iara, observando a sua criatura sombria lutando contra o Imperador do outro lado do salão.
— Se preocupa mais com o seu gorila mutante do que com seu amigo? Isso é inaceitável... — resmungou Goro, mas foi completamente ignorado.
Colth se focou nas palavras de Iara. Viu aquilo com alguma esperança que despertou em seus olhos.
— Espera aí. — Chamou a atenção ele. — Se o Aldren ainda não finalizou as criaturas sombrias da Iara, significa que não está usando totalmente a magia de Lux. Talvez ele esteja guardando as almas dos encapuzados. Precisamos fazer com que se esgotem, e então Aldren ficará sem energia. Só restam mais alguns, e...
Antes que finalizasse, uma voz cortou o entusiasmo.
— Não vai funcionar.
Os três se viraram rapidamente, tensos. A voz era de Hikki, ele se aproximava com uma expressão neutra, seus olhos sempre difíceis de decifrar.
Iara e Goro reagiram instintivamente, se preparando para o combate.
— Como ousa vir até aqui e... — começou Iara, furiosa, puxando o arco e mirando sua flecha diretamente nele.
— Você está muito ferrado, seu traidor maldito! — rosnou Goro, o revólver já firme em suas mãos.
— Calma, vocês dois! — Garta interrompeu, sua voz séria enquanto ergueu uma mão para os conter.
— Mas Garta... — Iara começou, indignada, sem abaixar o arco.
— Eu já conversei com ele — declarou Garta, firme. — Depois de tudo acabar, eu resolvo o resto.
Relutantes, Iara e Goro baixaram suas armas, mas seus olhares permaneciam carregados de desconfiança e passavam uma devida hostilidade enquanto encaravam Hikki.
Colth, tentando retomar novamente, ergueu a voz em direção a Hikki:
— O que você estava dizendo?
— Derrotar o Aldren. Não é tão simples. — Hikki demonstrou o tom sério, quebrando o otimismo de Colth. — Há um campo de trabalho cheio de pessoas. Esqueceram? Aldren tem um suprimento praticamente infinito de sacrifícios, todos esperando para serem usados através de Lux. Aldren só está economizando os sacrifícios, porque não está conseguindo se comunicar com o Hui, nos agradeçam depois por isso. Mesmo assim, não vai demorar para que Hui venha até aqui pessoalmente.
O peso daquelas palavras realistas caiu sobre o grupo. Por um momento, eles ficaram em silêncio apenas trocando olhares incertos.
— Com todo respeito, Garta — Goro se pronunciou. — Seu irmão é um pé no saco!
Todos se surpreenderam com a intensidade de Goro. Ele continuou:
— Já sabemos do campo de trabalho. — Goro ergueu o nariz. — É por isso que o Colth, com a minha grande ajuda indispensável, já cuidou disso. Hui não vai chegar aqui tão cedo. Se é que vai chegar.
— Do que ele tá falando? — perguntou Garta, mirando os olhos para Colth e Iara, como se esperasse uma tradução da linguagem egocêntrica do rapaz.
— Mon, o guardião de Nox, de quem eu falei — esclareceu Colth.
— O quê? Como vocês trouxeram ele para Finn sem a minha magia e... — Garta se interrompeu. Balançou a cabeça se desapegando da pergunta. — Esquece isso. Então ele...
— Mon e Jorge estão indo para o campo de trabalho — respondeu Iara, sem nem mesmo ouvir o resto da pergunta. — Vão tentar impedir os sacrifícios, mas pelo que entendi, não devem ocorrer, já que vocês interromperam a comunicação entre Hui e Aldren, certo?
Garta aprovou a informação imediatamente com um aceno de cabeça.
— Sim, eles estão sem comunicação, graças a um amigo. E com o guardião de Nox encarando Hui, isso fica ainda melhor — disse ela, pensativa. Em seguida se virou ao seu irmão, e ordenou em um simples olhar: — Hikki, já sabe o que fazer.
— Tá, claro. Pode deixar — respondeu ele, aceitando as ordens e se apressando.
Hikki observou uma última vez o rosto da irmã antes de se virar e caminhar com passos firmes em direção à única porta de saída do salão. Sua silhueta desapareceu no corredor e deixou para trás o ambiente da batalha iminente.
Garta segurou sua espada com força, girando o pulso em um movimento rápido para ajustar o peso da lâmina. Ela lançou um olhar significativo para seus companheiros, confiança. Iara, Colth e Goro responderam sem hesitar, ajustando suas posições ao redor dela, como partes de uma só convicção.
— Já acabaram?! — bradou Aldren do outro lado do salão. Sua voz reverberava enquanto o Capelobus, derrotado, desabava no chão como uma muralha despencando.
O grito fez o ar pesar por um momento, mas Garta não se intimidou. Firmando os pés no chão, ergueu a espada curva com os olhos fixos no inimigo, e murmurou apenas para os outros ao seu lado que lhe acompanhava:
— Não vou dizer que estamos com a vantagem, mas isso já é muito melhor do que eu esperava. Conto com vocês.
Iara assentiu, levantando seu arco enquanto a palma da mão reluzia. Goro sorriu de canto, ajeitando o cabo do revólver com os dedos.
— Então vamos acabar com isso — acrescentou Iara, a voz firme e baixa. Sua expressão mais séria ao focar em Aldren, que avançava à passos furiosos enquanto os olhos ardiam de ódio.
Antes de darem início ao inevitável, Colth não pôde deixar de fazer uma última pergunta à guardiã de Finn. Seus olhos brilharam, em esperança.
— Garta, se você e o Hikki estavam juntos — Colth não escondeu a expectativa, antes mesmo de terminar a pergunta —, então... vocês não deixaram que a...
As palavras morreram em sua boca quando Garta o encarou. Apenas o olhar bravio e penetrante dela já era o suficiente para isso. Mas não era um olhar frio, longe disso, era algo bem mais significativo. A convicção de que estava certa.
Colth se calou e respirou fundo, com a expectativa enchendo o seu peito à espera da resposta. E então, ela respondeu.
— Fiz o que tinha que fazer.
O olhar de Garta desviou rapidamente para o chão, quase como um vacilo, e depois para frente, para a batalha que se aproximava.
— Vamos acabar com isso. — A voz de Garta retornou, apressando.
Seus olhos fixaram-se em Aldren, para frente, não para ignorar os sentimentos que fervilhavam dentro de si, mas para transformá-los. Ela os canalizou, moldando-os em coragem, em uma força necessária para enfrentar o inimigo que estava por vir.
Então, em um sussurro baixo, direcionado apenas a Colth, sem o olhar, ela obrigou-se a dizer, com seu propósito salvo, afinal, não era só por ela. Suprimiu a despedida:
— Tem alguém te esperando.
***
— Está tão escuro — balbuciou a mulher, sem enxergar. — Tem alguém aí? Koza? Colth!? Alguém!?
A resposta foi o eco de sua própria voz aflita, reverberando. Aquele som devolvido pela escuridão lhe trouxe uma amarga sensação de solidão, uma velha conhecida que insistia em acompanhá-la, mais uma vez, tão rotineira em boa parte de sua vida e, agora, retornada.
— Será que acabou? — sussurrou, tão fraco que as palavras nem se desprenderam de seus lábios tensos delicados.
A última coisa da qual se lembrava era o perigo iminente. Talvez isso, a escuridão plena e a solidão eterna, fossem a tão temida morte, um simples espaço no vazio, um castigo.
Mas antes que a melancolia a dominasse, um som delicado foi percebido no silêncio escuro. O murmúrio distante de água corrente.
Ela ergueu a cabeça, localizando a direção do som. Seus olhos inúteis na penumbra não a guiariam, mas a persistência e a esperança a empurraram para frente. Lançou seus braços à frente e, tateando o ar com cuidado, enquanto andava a passos lentos, alcançou uma superfície lisa e rígida. Madeira.
Pressionou com as palmas das mãos, e o objeto cedeu, revelando-se ser uma porta, e abrindo com um rangido que expulsou o silêncio, e convidou a luz do sol.
A claridade intensa atravessou o vão, acertando os olhos claros da mulher e a cegando momentaneamente. Ela resistiu, protegendo o rosto com o braço, enquanto a visão lentamente se desvendava à sua frente.
— Que lugar é esse? — sussurrou suas dúvidas, enquanto recuperava a visão furtada pela luminosidade, e enchia seus olhos com a bela paisagem arbórea que se estendia diante dela.
Ela estava em uma varanda que se projetava sobre uma floresta exuberante. O vento soprava por entre as árvores e lhe trazia o cheiro das flores enquanto acariciava seus cabelos em pleno frescor, acompanhado pelo som da água corrente bem próxima.
A bela visão não esclareceu em nada sua pergunta. Ainda estranhava e não entendia onde estava. Então se aproximou do parapeito da varanda entalhada em madeira e observou a paisagem harmoniosa.
Além das árvores verdejantes que ressaltava as cores vívidas das flores em meio aos galhos abundantes, uma pequena cachoeira se fazia visível, desaguando em um rio cristalino, seguindo um curso tranquilo até passar sob uma pequena ponte de madeira e alcançar as proximidades da varanda, correndo serena abaixo dos pés da mulher e finalmente seguindo seu curso até se perder em meio à floresta.
Ela poderia passar minutos ali, apenas absorvendo a serenidade do lugar. O som suave das águas fluindo sob o sol da tarde, o canto harmônico dos pássaros e o ar fresco levando o aroma das flores, mas algo, ou melhor, alguém desviou sua atenção.
Do outro lado da ponte, à beira de um caminho simples de cascalho, uma figura sentada sob a sombra de uma grande árvore com folhas esmeraldas se destacava. Era um homem robusto vestido com um sobretudo claro e leve, de costas para ela, imóvel sobre uma pedra, com a cabeça ligeiramente inclinada contemplando a estreita estrada à sua frente.
Ela estreitou os olhos, tentando enxergar mais detalhes, mas a posição e a distância não permitiam. Decidiu então se aproximar. Desceu os poucos degraus no final da varanda, às margens do rio, e caminhou cautelosa, contendo o barulho de seus próprios passos.
Atravessou a ponte de madeira rústica, onde peixes dourados e avermelhados nadavam tranquilamente abaixo. Sua respiração estava contida, e sua mente já traçava possíveis rotas de fuga caso o homem fosse hostil e houvesse a necessidade de correr do combate.
Enquanto pensava nisso, ganhou um pouco mais de confiança ao ver um casal de passarinhos azuis pousar sobre o ombro e o topo da cabeça do homem de cabelos negros despenteados que, àquela distancia, era notavelmente maior e mais musculoso do que ela pensava, e mais preguiçoso também.
Ainda assim, a mulher abraçou com a mão uma das pedras de cascalho do chão e manteve uma distância segura ao contornar o homem. Observou-o com mais atenção e constatou que ele estava completamente adormecido, como suspeitava. Ele era muito mais velho, com o rosto marcado pelo tempo e cicatrizes de combate, talvez perto dos sessenta anos de idade, ou até mais e, com certeza, um guerreiro.
— Ei! — gritou ela, tentando chamar atenção, enquanto preparada com a pedra maior que seu próprio punho em mãos. — Ei, você!
Os passarinhos voaram assustados e o homem despertou de imediato.
— Hã? O quê?! — balbuciou ele, olhando ao redor, confuso.
— Quem é você? E que lugar é esse? — perguntou a mulher, os olhos afiados em tom atrapalhado de ameaça.
O homem coçou a cabeça, irritado, enquanto percebia de quem se tratava a pessoa que interrompeu o seu sono.
— Quem sou eu? — repetiu, com as sobrancelhas franzidas. — Quem é você? E o que está fazendo aqui?
— É... Isso eu também quero saber — rebateu ela, sem recuar. Mostrou a pedra em mãos em ameaça: — Então pode ir dizendo.
— Hã? Não sabe quem é você mesma? — perguntou de volta o homem, seu tom antipático, mas a dúvida sincera. — Perdeu a memória, ou algo parecido?
— O quê? Não — respondeu ela, enrugando a testa. A pergunta soava absurda, mas a atitude do homem deixou claro que ele não era uma ameaça imediata. Ainda assim, manteve a pedra segura por precaução, e tentou ajustar seu tom, buscando parecer mais amigável. — Escuta, meu nome é Celina. Eu não quero te fazer mal. Só quero sair daqui e voltar para...
— Me fazer mal? Você é apenas uma garotinha perdida — rebateu ele, em tom repleto de arrogância. — O que vai fazer? Vai acabar se machucando com essa pedra.
— Se eu tiver que me defender, eu vou usá-la. Já vou avisando! — Celina manteve o tom desafiador e os olhos exageradamente ferozes em direção ao velho esquisito.
Era a primeira vez que tentava usar uma abordagem e um tom tão ameaçador diante de alguém. Definitivamente, ela não tinha talento para isso e, frente a um guerreiro experiente e tão... cansado, suas chances foram anuladas.
— Ah, claro, porque não basta me acordar, não é? — Ele bufou, balançando a cabeça de um lado para o outro, antes de finalmente mostrar uma das mãos escondida pelo sobretudo e sacudi-lá no ar, como se quisesse afastar um inseto. — Sai daqui, vai. Volta pro buraco de onde você veio.
— É exatamente o que eu quero fazer! Mas não sei como. Não sei nem onde estou! — retrucou Celina, jogando as mãos para o alto antes de deixar os braços caírem. Ela olhou em volta e soltou um suspiro curto. — Esse lugar é estranho, e você não ajuda em nada.
O homem arregalou os olhos e ergueu as sobrancelhas, como se ela tivesse acabado de cometer um crime imperdoável.
— Como ousa chamar a minha casa de estranha? — disparou, indignado.
Celina estreitou os olhos, cruzando os braços enquanto tocava os lábios com o polegar.
— Sua casa? — questionou ela, estudando-o. — Então você sabe onde estamos?
Ele inflou o peito, orgulhoso, como se a pergunta fosse óbvia.
— É claro que sei! — declarou, firme. — Essa é a minha casa. O lar de Tera! E como guardião da deusa deste mundo, é meu dever protegê-lo até seu retorno.
Celina piscou, completamente perplexa.
— Quê?! — exclamou, dando um passo para trás em reflexo, e largando a pedra no seu próprio pé. Congelou, não só por conta da informação surpreendente, mas pela dor que lhe atingiu de imediato e subiu por sua perna. — Argh!
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