Volume 2
Capítulo 122: Afogado no Lamaçal da Eternidade
O lobo imenso saltou da máquina voadora com a sua mais nova mestra e o velho ex-guardião de Tera montados em suas costas. Koza uivou enquanto descia os céus noturno como um raio em zigzag. Avistou o inimigo distante na superfície. Reconheceu de imediato a figura de Hui.
— Ainda lembra como faz, troglodita? — perguntou o lobo, mirando suas palavras ao lanceiro.
Dante soltou uma risada seca, sentindo o vento intenso da descida pressionar seu rosto. Por um instante, fechou os olhos e permitiu-se reviver a sensação. O vento, o voo, a liberdade. Não eram mais só lembranças.
— Ah, essa brisa… Não tem como esquecer — murmurou, antes de abrir os olhos novamente, agora sérios. Seus dedos se firmaram ao redor do cabo da lança, sua presença no presente sendo solicitada. Ele fixou o olhar no inimigo ao chão e ordenou: — Cruzado alto.
Koza assentiu, curvou o corpo no ar, ajustando a trajetória enquanto mirava Hui em aproximação.
— Boa escolha — aprovou o lobo.
Celina assistia a tudo em silêncio, atenta, em meio a conversa daqueles dois. Não conseguiu deixar passar o pensamento de que eles eram muito mais do que simples conhecidos.
Koza fez o último movimento no ar, em queda. Sua trajetória passaria próxima de onde estava Hui e pousaria mais à frente. Aproveitando o momento, Dante balançou a sua arma e desferiu um golpe. A lâmina assobiou cortando o ar frio da noite, e então encontrou algo sólido, carne e osso. O pulso erguido de Hui.
— Ahhh!!! — Hui cambaleou, olhos arregalados, e o sangue quente jorrando de onde antes existia sua mão direita.
Enquanto ele gritava em dor, O impacto do pouso do lobo mais a frente sacudiu o solo lamacento. As patas gigantescas de Koza tocaram a terra, espalhando terra úmida para os lados.
Celina rapidamente percebeu as dezenas de pessoas de Tera, ao chão ao redor, todas inconscientes. Quase perdeu o fôlego ao ver o cenário de pesadelo. Se segurou para não perder o foco e manter-se concentrada no que causou tudo aquilo.
Koza deslizou suas patas pela lama até parar diante do portão, então girou para encarar o inimigo e vê-lo ainda de pé, distante.
Hui estancava o sangramento e a dor aos gritos.
O lobo reclamou imediatamente com Dante montado as suas costas:
— Você errou?! — disse ele, agressivamente inconformado.
Dante bufou, ajustando a postura sobre a montaria.
— Difícil acertar com precisão quando se tem só uma mão, sabia? — rebateu, irritado. — E o seu movimento também não foi perfeito, seu cachorro velho. Se tivesse me levado um pouco mais perto, eu teria arrancado a cabeça dele!
— Ah, sim, claro! Como se fosse fácil se movimentar no ar sem asas! — retrucou Koza, os olhos em frustração. — Esqueceu que eu já não sou mais um dragão, como antes?
Antes que a discussão se prolongasse, uma voz atrás deles interrompeu:
— O que é isso? — perguntou Jorge, com os olhos arregalados medindo o lobo.
Mon, ao lado dele, sorriu largo, com o martelo colossal apoiado no ombro.
— Parece que o nosso reforço caiu do céu. A Celina e o guardião de Tera — comentou ele, os reconhecendo.
Jorge franziu a testa, confuso.
— Eu achei que a Celina fosse a guardiã de Tera — rebateu o mais jovem.
— Tem razão, Jorge — Mon olhou com estranheza para Dante. — Esse honrado lanceiro havia morrido.
— Eu não morri, seu moleque de Nox! — exclamou Dante. Rapidamente refutou da forma mais banal: — Não está me vendo, bem vivo?!
Celina ignorou a discussão e lançou um olhar cheio de lembranças para o grande homem de braceletes metálicos:
— Jorge? — Impressionada com o fato de aquele pequeno garoto, que havia conhecido em Albores, crescer tanto a ponto de competir em altura e massa com Mon e Dante.
O rapaz respondeu com um sorriso acanhado, mas não teve tempo para colocar a conversa em dia.
— Ahhh!!! — Hui chamou a atenção ao estremecer em dor e estancar o seu ferimento por completo.
Imediatamente, todos os outros se posicionaram em atenção ao inimigo. Celina, no alto de sua montaria, expôs o que estava preso na garganta:
— Chega de joguinhos, Hui.
O homem, vestido com roupas elegantes, agora manchado pelo próprio sangue que escorria pelas fibras do tecido, respirou pesadamente. Por entre os dentes cerrados, sua voz saiu carregada de ódio:
— Isso é tão... humilhante.
Ao seu lado, a pequena Dilin e o excêntrico Bernard esperavam por suas ordens, sem expressões no rosto.
Celina estreitou os olhos, percebendo as figuras, mas sem entender completamente a razão ou como aqueles dois estavam ali.
Ela sussurrou para seus aliados, deixando a questão óbvia:
— Aqueles dois...
— Não se preocupe — respondeu Mon, antes mesmo de ouvir o restante da pergunta. — Não são reais. São apenas marionetes. Esculpidas sobre o corpo de um inocente à semelhança de Dilin e Bernard. Algo repugnante, que só um completo doente faria.
— Tão humilhante... — continuou Hui, irado. — Sujaram a minha roupa, seus insetos.
— Como? — se perguntou Celina, sem compreender o motivo da raiva dele recair sobre algo tão pueril.
Hui ergueu o olhar, fervendo de rancor, e o cravou na mulher montada sobre o lobo.
— E por qual motivo você ainda está viva, guardiã de Tera? — disse ele, rangendo os dentes. Levantou o nariz e complementou: — Não precisa me responder. Se a porra do imperador não conseguiu fazer o trabalho dele, eu vou!
Dilin e Bernard começaram a se mover em direção ao grupo opositor no portão, cumprindo a ordem velada.
Hui apontou o dedo indicador em direção à Celina e declarou, garantindo:
— Eu vou te matar, e finalizar o ritual do dadivar.
Dante, junto de Celina, ergueu o queixo, talvez sentindo-se desafiado. Enquanto desmontava do lobo, lançou um pedido firme para ela:
— Garota, fique com o Koza.
— Mas... — Celina tentou contestar.
— Sua segurança é o mais importante aqui — interrompeu Dante. Sem deixá-la responder.
Os pés pesados de Dante afundaram na lama. Ele ajeitou a empunhadura da lança e se voltou para Hui, caminhando alguns passos decididos.
Sem ensaios, ou qualquer pedido, Jorge e Mon se colocaram ao lado do guerreiro aliado. Um de cada lado, ombro a ombro. Como três grandes montanhas formando uma cordilheira protetora à garota e seu lobo.
— Será uma honra lutar ao lado do lanceiro dos céus — disse Mon, estalando os ombros.
— Pois saibam que a minha benção foi roubada e já não possuo a magia de Tera — respondeu Dante, os olhos vacilando entre o chão e a batalha iminente.
— E quem disse que é necessário magia para ser notável como um guerreiro? — rebateu Mon. — Até onde eu sei, o seu feito mais importante aconteceu antes mesmo de se tornar guardião. Se sua determinação nesse momento for a mesma que lhe fez percorrer todo árduo caminho até Lux e entregar sua vida por sua deusa Tera, então eu repito: Será uma honra lutar ao seu lado.
Dante absorveu as palavras, olhou para os dois lados, recebendo os acenos de cabeça de Jorge e Mon, confirmando e lhe aprovando.
— Tem razão.
Então cravou os olhos nos oponentes e afirmou em direção a Hui, com toda a confiança possível, enquanto se posicionavam preparados para a luta:
— Vai ter que derrotar nós três...
— Arff! — latido atrás.
— Vai ter que derrotar nós quatro — continuou Dante —, se quiser sonhar em chegar perto da senhorita Celina.
— Tsc! Eu já ia fazer isso mesmo — rebateu Hui, após estalar a língua. Em seguida, fez um simples gesto com a mão.
Dilin e Bernard avançaram em disparada na direção da muralha de músculos que eram os três homens. Seus passos rápidos espirravam lama pelo ar enquanto suas expressões se faziam vazias.
— São apenas marionetes, certo? — murmurou Dante, apoiando sua única mão no cabo da lança para apontá-la aos inimigos.
— Deixem a farsante que parece a Dilin comigo — declarou Mon, sem hesitar. — Cuidem do desonrado Bernard.
Montague levantou o martelo colossal com ambas as mãos e então saltou em direção a falsa irmã.
Jorge ficou boquiaberto observando o imenso guardião de Nox sair do chão com tanta facilidade em um simples pulo. Quando se deu conta, percebeu que Dante também já havia dado os primeiros passos em corrida na direção do semelhante Bernard. Não perdeu tempo e avançou tentando acompanhá-lo.
Celina, montada sobre Koza, manteve-se a distância, pronta para intervir caso fosse necessário. Seus olhos não se desviam de Hui, mas também não ignorava o perigo que Dilin e Bernard poderiam representar.
— Aaaah! Ninguém imita minha irmã!!! — o grito de Mon soou pelos céus enquanto seu corpo começava a descer, impulsionado pela gravidade que ele tão bem conhecia.
Mon girou o martelo no ar mirando Dilin. A expressão dela era inalterada, um vazio no rosto, como se simplesmente esperasse o golpe inevitável.
O martelo esmagava o vento violentamente pelas mãos de Mon, mas então, repentinamente, parou. O guardião arregalou os olhos, surpreendido. Viu Dilin, com as palmas das mãos erguidas em concentração mágica. Magia de Nox.
— Como é possiv...? — A frase de Mon foi cortada quando uma onda de gravidade o repeliu, devolvendo-lhe o choque de sua própria força.
Ele foi arremessado para trás, separado de seu martelo.
Com pensamento rápido, recorreu à sua força bruta para cair ajoelhado sobre o lamaçal, evitando se machucar. Levantou a cabeça e apontou seu olhar, ainda incrédulo, em direção à pequena mulher de cabelos acinzentados.
Aquela Dilin, a cópia da falecida irmã, girava o martelo colossal no ar, manipulando-o como se fosse uma simples pluma no ar. Em seguida, segurou-o com ambas as mãos em posição de combate.
Mon sentiu um calafrio de preocupação. Mesmo ele, com força sobre-humana, precisava canalizar a magia de Nox para empunhar aquela arma. Então, como aquela farsante conseguia tal feito? O martelo era extremamente pesado e maior do que ela. Além disso, teve aquela energia que o repeliu.
— O que significa isso? — Mon sussurrou seus pensamentos inquietos.
Os olhos de Dilin, sem emoção, se cravaram nele. Montague, por sua vez, ainda impactado, levou os olhos para Hui. Viu um sorriso de canto de boca do esnobe.
— Isso não é bom... — Rapidamente se virou para os aliados do outro lado para tentar entender a situação.
Quando colocou os olhos neles, viu que Dante avançava com a ponta da lança em direção ao coração de Bernard imóvel.
No momento que a lâmina acertou a pele da marionete, a lança ricocheteou, como se tivesse colidido com uma pedra sólida. A arma rebateu, escapando momentaneamente do controle de Dante, que cambaleou para trás em surpresa.
Aproveitando o desequilíbrio, as mãos de Bernard se iluminaram num brilho intenso, e um orbe de energia ganhou forma. Ele então a arremessou. A esfera, do tamanho de uma bala de canhão, avançou rápido em direção ao lanceiro. O clarão fez o rosto de Dante pálido. Não teria tempo de esquivar.
— Não vai acontecer de novo! — gritou Jorge, impulsionado por pura coragem.
Ele se lançou à frente, cruzando os braços à altura do peito. Se colocou entre o orbe de pura energia e Dante. Recebeu o impacto nos braceletes e resistiu. Foi empurrado para trás, com o lanceiro aliado, e teve que se esforçar para se manter de pé em meio a uma onda de dor que percorreu o seu corpo e parecia lhe queimar.
Perseverando, a magia contida no orbe se desfez, absorvida. Jorge sentiu os braceletes vibrarem com intensidade. Teve que se esforçar novamente para afastar os próprios braços do peito, e quando o fez, a magia aprisionada se dispersou.
Dante e Jorge recuaram de forma providencial.
— Eu sabia que já havia visto esses braceletes. São da armadura de Calis, não são? — perguntou o lanceiro. — Como conseguiu elas?
— Eu te contaria, mas temos problemas maiores agora — disse Jorge, se recuperando. — Isso não está certo. Era para o bracelete repelir qualquer tipo de magia. Mas...
Ele se interrompeu. Arregalou os olhos.
— O que foi? — apressou Dante.
Jorge respondeu, a voz em plena preocupação:
— É a própria magia de Calis. Essa marionete, ela não tem só a aparência de Bernard. Ela é o Bernard...
— Hahaha! Seus ignorantes — zombou Hui ao fundo, em meio ao campo de trabalho sob a noite —, acham mesmo que eu usaria cópias? Algo tão desprezível e barato? Não. Claro que não.
Mon, que acabara de se reerguer do outro lado, sentiu o ódio subir como um fogo lento.
— Não me diga que... — a voz de Montague saiu áspera.
— O que foi? — provocou Hui, o sorriso perverso se ampliando. —Esses dois estavam mortinhos. Eu só os trouxe de volta. Para vocês matarem saudades — terminou em provocação.
— Você é nojento... — rosnou Mon, os punhos cerrados até doer.
Hui ergueu as sobrancelhas, como se achasse a reação exagerada.
— Eu? — indagou, a voz repleta de sarcasmo. — Você que nem notou o desaparecimento do corpo da sua querida irmã depois da morte dela.
— Eu... eu pensei que ela... — Mon tentou justificar, os sentimentos turvando seus pensamentos.
— “Achei que ela tivesse sacrificado o próprio corpo.” — Hui imitou o guardião de Nox com uma entonação grave debochada. — Sacrifícios vêm da alma, não dos corpos, seu idiota. Sinceramente, como é difícil conversar com pessoas tão inferiores.
O desprezo na voz de Hui fez Jorge cerrar os dentes com força e expor as dores de todos. Declarou:
— Hui, você vai se arrepender!
O esnobe se virou para ele e revirou os olhos:
— Ah, pare de chorar — rebateu Hui. — Estou até lhe dando uma segunda chance contra o Bernard. Deveria me agradecer, Jorge. Ou você vai fugir novamente?
— Seu... — Jorge não conseguiu responder. Foi interrompido com o avanço rápido do inimigo à frente.
Bernard avançou com uma agilidade assombrosa, o olhar vazio refletindo apenas o comando cruel de Hui. Ele ergueu a mão direita, coberta pelo brilho de sua magia. Dante até tentou se opor e barrar o golpe, mas foi empurrado por um tremor de terra que se escondia abaixo do lamaçal em seus pés, originado pela magia de Calis de Bernard.
Jorge, tomado por raiva e lembranças amargas, viu a abertura deixada por Dante e correu para enfrentar Bernard de frente. O chão lamacento parecia sugar seus passos, exigindo um esforço ainda maior.
— Bernard! — gritou Jorge, a voz em frustração e dor.
Bernard não reagiu às palavras, apenas lançou o orbe de energia contra o peito de Jorge. Desta vez, ele estava pronto. Cruzou os braços, e os braceletes metálicos absorveram a energia lhe causando alguma dor. Mas era exatamente como Jorge imaginou e planejou.
— Não vai me parar de novo! — rugiu o garoto, contendo o orbe. Sentiu a vibração quase arrancar-lhe os braços, mas resistiu, firme, pronto para o contra-ataque.
Sem dar tempo para Jorge recuperar o fôlego, Bernard avançou ágil, e atacou mais uma vez. Jorge reagiu rapidamente, esperando por aquela oportunidade. Com um soco de direita ascendente, o bracelete metálico reluziu em meio as manchas de lama. Seu punho acertaria em cheio a barriga do oponente, antes mesmo dele lhe tocar.
Um golpe certeiro e com toda a sua força. Jorge estava certo de que o faria ajoelhar após o seu ataque, e então poderia finalizar aquele embate.
Bernard até poderia recuar para se esquivar do soco, mas Jorge, conhecendo bem aquele homem impulsivo, sabia que isso não aconteceria. O guardião de Calis era orgulhoso demais para isso.
O punho de Jorge subiu cheio de violência e livre de misericórdia.
Porém, nesse momento, Bernard torceu o corpo, suas costelas estalando ao quebrarem por vontade própria. Sem expressar qualquer sinal de dor, o homem simplesmente mudou a sua linha corporal, como se tivesse o dobro de articulações pelo seu corpo.
Jorge arregalou os olhos, surpreso. Seu punho passou no vazio e, se isso já não fosse o bastante, Bernard agarrou o bracelete sobre o braço dele.
— E... — tentou Jorge.
Não conseguiu. O seu antebraço explodiu no momento que Bernard se concentrou na sua magia de retaliação.
O metal se dividiu em dezenas de pedaços, enquanto o braço de Jorge se resumia a sangue e carne. Caiu sentado em meio ao lamaçal, recolhendo o braço ferido.
Jorge não parava de se surpreender. Bernard amava Calis mais do que a si próprio. Talvez fosse a única coisa que lhe trouxesse algum sentimento mais humano. E, mesmo assim, a única memória física que Calis havia deixado para trás, e que Bernard tanto prezava, ele agora simplesmente a destruiu.
— Ainda não entenderam, idiotas! — gritou Hui com um sorriso no rosto: — Esses dois corpos eram apenas cascas vazias quando chegaram em minhas mãos. Eu então encontrei novos moradores para essas cascas. E, vejam só, parece que sobrou um pouquinho da magia. Que sorte, não é mesmo?
Jorge não teve tempo de odiá-lo. Bernard já avançava sobre ele com a magia ganhando a palma da sua mão. Mas então.
— Ahhh! — gritou Dante, atirando-se para frente com a lança em corte.
O velho lanceiro não hesitou, a ponta da arma rasgou o ar, direcionada ao pescoço de Bernard. Mas a marionete contorceu-se novamente, dobrando o corpo para trás de um jeito que faria qualquer ser humano normal gritar de dor. Ele fez uma ponte e executou um mortal para trás, recuando com uma agilidade sobrenatural.
Dante manteve a investida, aproveitando o giro da própria lança para tentar outro corte lateral. Bernard, porém, esquivou-se mais uma vez, recuando alguns passos no lamaçal.
Dante parou e o encarou. Os olhos do inimigo frios e vazios.
— Por que está se esquivando agora, seu corpo sem alma?! Sua pele não era impenetrável? — esbravejou Dante. Em seguida observou Jorge com o canto dos olhos. — Você está bem, garoto?!
O sangue escorria por entre seus dedos, mas a determinação de Jorge se mantinha em seus olhos. Com os lábios contorcido em dor, ele disse:
— Vou... ficar bem — resumiu, rangendo os dentes. — A magia de Calis é poderosa, mas incontrolável.
— Hã? — Dante teve sua atenção fisgada.
— Não há como controlar o fluxo de sua energia. A sua magia é ofensiva ou defensiva. Não há meio termo. — Jorge se levantou com o braço ferido recolhido ao peito. — Por isso, para conseguirmos acabar com Bernard, temos que atacá-lo enquanto ele está utilizando a magia ofensiva. Enquanto ele está vulnerável. Enquanto a palma de sua mão estiver brilhando.
— Foi isso que você tentou, garoto? — perguntou Dante.
— Sim, um contra-ataque rápido, antes que ele voltasse a magia defensiva — Jorge explicava. — Mas eu não esperava que estivéssemos lidando com algo ainda mais insensível e desumano do que Bernard. Não esperava que ele fosse desviar, e muito menos que fosse destruir uma das partes restantes da armadura de Calis.
— Armadura... — pensou alto Dante. — Agora eu entendo a necessidade da armadura de Calis. Ela era tão agressiva, que jamais usaria a sua magia de forma defensiva. Uma armadura pesada e robusta era essencial nesse caso, para sempre manter o seu estilo feroz.
Mais ao fundo, sob o vento leve que dançava entre as árvores próximas, Celina observava tudo montada em Koza, sentindo o coração pulsar em preocupação. A luz trêmula das tochas, espalhadas pelo campo de trabalho refletia os poucos pingos de chuva que começavam a cair de forma serena.
— Precisamos fazer alguma coisa — murmurou ela. — Eu ficar segura, não vai adiantar de nada, se os outros também não ficarem.
— No que está pensando, mestra? — perguntou Koza, com as orelhas erguidas em atenção.
Celina respirou fundo, tentando afastar o pânico.
— Bernard e Dilin não passam de fantoches. Lutarmos contra eles é inútil. Se quisermos acabar com isso, temos que derrotar Hui.
— Concordo — rosnou Koza —, mas você viu como esses dois são poderosos. Não vai ser fácil passar por eles e...
— Koza. — A guardiã pousou a mão suavemente sobre a pelagem do lobo. — Você confia em mim?
O lobo inclinou a cabeça, surpreso.
— Mas é claro, senhorita. A senhorita me trouxe de volta à vida. Se eu não pudesse confiar a minha existência a você, em quem mais confiaria?
Celina sentiu o peso da responsabilidade apertar seu peito. Ainda assim, assentiu, determinada. Sussurrou bem baixinho:
— Então vamos andar lado a lado.
O lobo tremulou as orelhas, confuso:
— Disse alguma coisa? — perguntou ele.
Celina ignorou e ergueu o olhar.
Não muito longe, Dante e Jorge se esforçavam para conter Bernard, enquanto Mon e Dilin travavam uma batalha violenta. A cada golpe, lama e faíscas de magia voavam pelos ares. No extremo oposto, Hui observava tudo com um sorriso arrogante.
— Vamos atacar o Hui, diretamente — disse ela, a voz convicta.
— Hã?! — Koza vacilou surpreso. — Mas isso seria perigoso e...
— Ele ameaçou a minha vida apenas com palavras, mas não se moveu. Além disso, age com plena confiança, como se a vitória estivesse garantida.
— Onde quer chegar, mestra? — Koza perguntou, sem tirar a atenção do campo de batalha e do sorriso de Hui.
— Lembra do Hueh? — retrucou Celina. — Um estrategista manipulador, sempre se escondendo atrás de sua magia ou de alguém.
Koza cerrou os olhos:
— Escondendo?
— Sim. Ocultando a própria fraqueza. Um ataque direto — finalizou ela. Em seguida, segurou-se firme às costas do lobo. — Koza, se prepare.
— Tem certeza?
— A única certeza é que tem gente em que posso confiar. E você é uma delas — Celina rebateu. Confiante.
— Sim, mestra. Claro! — Koza respondeu rápido. Orgulhoso como se tivesse recebido um elogio.
As patas do lobo afundaram na lama para ganhar tração. Celina sussurrou apenas algumas poucas palavras junto às orelhas dele, e Koza assentiu:
— Pode deixar comigo!
Partiu, disparando como uma locomotiva em direção a Hui.
O deslocamento violento chamou a atenção de todos ali. Surpreendeu até mesmo os seus aliados.
— O que essa garota...? — sussurrou Dante.
Mas foi Hui quem arregalou os olhos e hesitou por um breve momento, ao ver a jovem sobre o lobo gigante, avançando diretamente em sua direção com absoluta determinação. O sorriso sumiu do rosto dele, substituído por um ódio gelado no cerrar de seus dentes. Ergueu o braço que lhe restava em um gesto brusco para seus fantoches.
No mesmo instante, Bernard e Dilin se voltaram para Celina.
Bernard ergueu as palmas das mãos em direção ao lobo e se concentrou sem mover um músculo da face.
Dante reagiu veloz, percebendo o perigo iminente aos aliados. Vociferou como um grito de guerra:
— Eu disse que você terá que passar por mim se quiser chegar até ela!!!
Ele girou a lança e a ergueu sobre o seu ombro, em seguida, a atirou, como se fosse um dardo em direção a Bernard.
O lanceiro treinou tanto aquele golpe. Repetiu tanto aquele tipo de arremesso que, mesmo após tanto tempo, seus músculos finalizaram o movimento com maestria impecável. Um arremesso perfeito. Acertaria em cheio o pescoço do alvo.
Se Bernard quisesse manter a cabeça, teria de se mover e deixar a concentração de sua magia de lado. Ou então, teria que cessar a magia ofensiva e se concentrar na defensiva, como Jorge havia dito. De qualquer forma, Dante não tinha dúvidas de que havia impedido o ataque do inimigo.
Mesmo assim, a marionete não se moveu.
Dante se surpreendeu, enquanto a lâmina cravava-se na carne do oponente. A lança acertou em cheio o pescoço do homem e arrastou as vértebras até rompê-las em um estalo macabro.
O corpo de Bernard foi arremessado alguns metros à frente, tingido pelo seu próprio sangue espesso, escurecido como turfa.
A cabeça do homem se separou do tronco, mas o que Dante não esperava era que a magia de Calis já tivesse sido conjurada um segundo antes. Uma esfera de energia rasgou o ar, direcionada à Celina e Koza, enquanto o corpo de Bernard afundava no lamaçal sem consciência.
Do outro lado, Dilin, empunhando o martelo de Nox, saltou alto. Ela também mirava o lobo e a mulher, prestes a esmagá-los e interromper a corrida.
O peso da arma colossal parecia insignificante em suas mãos, enquanto rasgava o ar rompendo a gravidade, pronto para desabar sobre Celina.
— Ah?! — Mon arregalou os olhos ao presenciar a cena. Apertou os pés contra o lamaçal, sentindo a magia gravitacional pulsar em seu corpo. — Minha irmã jamais se rebaixaria a ponto de dar as costas ao adversário!
Ele não podia permitir que o golpe atingisse Celina. A única forma de impedir o ataque era ser mais rápido que Dilin, cruzando aquela distância em menos tempo do que a marionete precisaria para concluir o golpe. Mon se concentrou absoluto e saltou. Deixou para trás uma cratera no chão, resultado da força aplicada na terra molhada.
No ar, seu grito de determinação ecoou pelo campo.
— Minha irmã não é desonrada! — a voz de Mon explodiu, carregando a dor e a raiva de ver aquele corpo, que um dia fora de Dilin, agir como uma marionete sem alma.
Ele se impulsionou com a magia gravitacional, veloz como a luz, o vento cortando seu rosto enquanto subia em um salto que parecia impossível para alguém de seu porte. Quando seus olhos encontraram os de Dilin, sentiu um aperto no peito. Aquela não era a verdadeira irmã, mas o golpe que viria da sua extrema velocidade, seria real.
O choque aconteceu no ar.
O martelo de Dilin zuniu ao colidir contra as mãos nuas de Mon, duas forças descomunais em rota de colisão. Um clarão de magia e um estrondo ressoaram, empurrando o vento e a serena chuva em todas as direções. Os dois se encontraram em meio a explosão de poder, e Mon, agarrando o cabo do martelo com Dilin, concentrou toda a gravidade que podia para empurrá-la.
— Você não vai manchar a história da minha irmã! — rugiu ele.
Dilin, sem expressão, forçou o martelo para baixo, tentando esmagar o guardião de Nox. Mon, porém, torceu o corpo e aplicou uma força contrária, redirecionando a queda, desviando o impacto para longe do campo de trabalho.
Ambos riscaram o céu como um único cometa, voando para além das árvores e das tochas que iluminavam o local. Se perdendo de vista.
Enquanto isso, no chão, a esfera de energia que Bernard havia lançado ainda seguia veloz em direção a Celina e Koza. O brilho azulado da magia ressoava no ar, rugindo poder.
Dante tentou correr para interceptar, mas seus pés afundaram na lama de forma a atrasá-lo. Além disso, não estava mais portando a sua lança.
— Droga... — preocupou-se, cerrando os dentes.
Celina, sobre Koza, pôde ver a esfera se aproximando veloz. Engoliu em seco, mas manteve a tranquilidade.
— Koza, desvie! — ordenou, já se preparando para a mudança de direção e desistência dos seus planos. Celina sabia que Hui permaneceria seguro e, possivelmente, tentaria uma fuga ou algo imprevisível. Mas não tinha escolhas.
Foi então que Jorge se moveu.
Ele correu tropeçante, o braço esquerdo praticamente inutilizado depois do confronto anterior. Mesmo assim, reuniu cada gota de coragem que lhe restava e avançou, plantando-se entre a esfera de magia e Celina.
— Eu não vou... fugir de novo! — gritou, com a própria voz lhe encorajando.
O clarão da magia iluminou o rosto de Jorge, revelando medo em sua face, porém um orgulho em seus olhos. Ele cruzou os braços em cruz frente ao peito, com apenas um bracelete que lhe restava. A esfera se chocou contra o metal, explodindo em um trovão de luz e magia que o envolveu por completo.
Jorge foi arremessado para trás. Seu corpo rodopiou no ar deixando um rastro de magia e sangue até cair pesadamente na lama.
Um absoluto silêncio se fez aos ouvidos de Celina.
A esfera que lhe ameaçava se dissipou. Sua magia completamente absorvida pelo corpo de Jorge.
— Não!!! — Celina em um grito desesperado.
Koza manteve o rumo, determinado a aproveitar a chance que Jorge lhes proporcionara. Eles passaram rápido ao lado do corpo do amigo e avançaram.
Celina rangeu os dentes e se forçou a mirar o rosto para frente, na direção do inimigo, daquele que provocou tudo aquilo.
Hui rosnou ao ver seus ataques neutralizados. Seus olhos se estreitaram em fúria, mas agora com algum nervosismo, enquanto Celina se aproximava veloz.
Ela se segurou ainda mais firme sobre seu familiar.
O lobo avançou. Suas patas mal afundavam na lama, tamanha velocidade. Os cabelos de Celina tremulavam sobre suas costas enquanto ela mantinha a coragem brilhando nos seus belos olhos azuis.
— Koza, agora! — gritou ela.
O lobo compreendeu sem hesitar. Fincou as patas na lama, impulsionando o corpo num salto que o fez atravessar o espaço restante até Hui em um piscar de olhos.
Hui, surpreendido, lançou uma nuvem de magia contra eles. Algo que turvaria a visão e imporia confusão às suas mentes.
— É a sua chance, Mestra! — gritou Koza.
Celina soltou um grito, livre de raiva, mas repleta de resolução. Se impulsionou com ajuda de Koza e se separou dele. Saltou sobre a nuvem de magia, em direção a Hui. Ambas as palmas das mãos vazias, mas embebidas de magia de Tera.
— Vai me desafiar?! — Hui vociferou, o rosto contorcido em ódio. — Então vamos ver quem desiste primeiro!
O homem, manchado pelo próprio sangue e raiva, ergueu o braço que lhe restava em direção à mulher que vinha de cima. A palma de sua mão brilhou magia e então, sentiu um toque suave, quase reconfortante no peito.
Celina havia alcançado o seu objetivo, rompeu magia sobre o coração do inimigo, mas, ao mesmo tempo, a palma de Hui tocou o rosto dela, também carregada de magia. Dois clarões ressoaram em contraste, iluminando a noite.
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