Volume 2

Capítulo 70: Dilema

A reunião havia acabado, os planos já estavam decididos. Iara se ofereceu para preparar o jantar daquela noite enquanto os outros buscariam lenha para a fogueira improvisada frente ao abrigo em meio a clareira de destroços que um dia foi uma rua.

— Celina e Colth, continuem picando essas batatas. Eu vou buscar uma panela lá no porão — disse Iara deixando o serviço da bancada na pequena sala da superfície e se dirigindo a rampa de acesso ao subsolo.

Juntos, Celina e Colth atenderam ao pedido da garota. Diante da bancada e de uma velha janela onde podiam observar o exterior, continuaram o trabalho de preparar os vegetais para a refeição.

Do lado de fora, frente à futura fogueira planejada, Índigo e Koza conversavam ao lado dos cães negros, criaturas sombrias controladas pelo guardião de Véu. Mais distantes, do outro lado da rua, Garta e Goro procuravam por madeira que serviria de combustível para a fogueira em meio as ruínas de um prédio aproveitando os últimos minutos de sol do dia.

— Então você pode aparecer em qualquer outro lugar? — perguntou Goro para a mulher que lhe acompanhava na busca por lenha.

— Se eu saber onde fica, sim. Eu chamo de deslocamento.

— Então, você tem de conhecer o lugar antes? Entendi — disse o rapaz segurando alguns gravetos e lascas de madeira. — Seria bem útil. Não precisaria mais de carro.

Garta parou a busca e fez questão de mostrar o seu rosto julgador à Goro. Ele respondeu fazendo o mesmo:

— O que foi? Estou só brincando — O rapaz voltou à sua procura por lenha e resmungou em meio a construção arruinada: — Você é muito séria. E eu achando que a Celina era a garota fria de quem Colth me falou. Continue assim, e vai ser passada para trás.

— O quê? — Garta teve sua atenção fisgada, mesmo não entendendo de fato as palavras. — O que foi que você disse?

— Nada não — desconversou. — Mas então, como pretende encontrar o outro grupo após recuperar sua magia?

Garta chacoalhou a cabeça para se desfazer do assunto anterior que pensou não ter entendido. Voltou ao trabalho respondendo à indagação:

— Eu quero tentar uma coisa. Colth conseguiu usar a magia de Anima, apenas possuindo um objeto que ligasse ele ao seu alvo. Quero tentar isso também.

— Então...

— Vou dar a eles um objeto pessoal. Algo que eu possa localizar com a magia, usar o deslocamento, e chegar até o objeto.

— Um localizador. Então seria só entregar esse objeto, e retornar a ele quando necessário. Bem inteligente. Espero que funcione.

— É, um localizador. Eu espero que funcione também.

Concluiu Garta voltando a se focar no objetivo de recolher combustível para o fogo.

Enquanto isso, no interior do pequeno abrigo, na superfície, Colth começava a cortar as batatas ao lado de Celina. Perguntou ao notar a garota mais distante do que o normal:

— O que foi? O que está te incomodando?

— Hã? — Ela se surpreendeu minimamente sem perder o foco nos vegetais da bancada. — Não tem nada me incomodando.

— Celina, eu acho que depois de visitar os seus pensamentos, eu te conheço um pouco. Você está quieta, pensativa... Quer dizer, não como de costume, parece mais avoada.

Ela cedeu:

— Só estou pensando, se estou agindo da forma certa. Depois que isso tudo começou, eu comecei a ver as pessoas de uma forma um pouco diferente. Alguns, de uma forma diferente demais e, agora, isso começa a me dar medo. Não sei direito.

— Eu sei que o Bernard era o nosso inimigo, mas agora ele pode ser um forte aliado. Temos que dar uma chance a ele e tentar.

— Bernard? — perguntou ela minimamente confusa. Rapidamente disfarçou: — Ah, claro.

Colth sorriu vendo a habitual estranheza no modo de agir de Celina enquanto ela mantinha-se atenta ao fatiar dos vegetais. O rapaz observou a batata recém cortada em suas mãos e comentou sincero:

— Eu continuo sendo horrível nessas coisas.

— Tente fazer cortes perpendiculares, facilita no manuseio — aconselhou Celina.

— Isso também. Eu não sabia que você era uma cozinheira a ponto de me dar conselhos desse jeito. — Sorriu.

— Eu aprendi com o Aldren — respondeu ela pensativa. Parou os cortes por um segundo, olhou para o rapaz ao lado e questionou: — Colth, o que você quer fazer? Depois de tudo isso, o que pretende?

— Hã? De onde veio essa curiosidade do nada? — surpreendido.

Ela não respondeu, apenas desviou o olhar apático de volta as suas próprias mãos e retornou ao trabalho de fatiar. Colth recebeu o sentimento dela, mesmo que em nuance nebuloso.

— Celina, eu...

— Aqui estão as panelas — interrompeu Iara colocando os recipientes metálicos sobre a bancada ao voltar do porão. — Ponha as batatas e os vegetais aqui e, assim que terminarem tragam para a fogueira. Vou preparar o resto.

A garota deixou o lugar com sua saia tremulando ao vento após a interrupção e se juntou aos que tentavam acender a fogueira com a madeira recém coletada do lado de fora.

Colth e Celina ficaram sozinhos novamente naquela cozinha improvisada. A quietude era composta apenas pelo barulho do corte entre a lâmina das facas e os vegetais enquanto podiam ver pela janela todos os outros amigos ao redor das chamas iniciais da fogueira.

— Uma casa no campo.

— O quê? — Celina se voltou ao que Colth disse repentinamente.

— O que eu vou fazer depois de tudo isso acabar — respondeu ele. Prosseguiu: — Eu quero viver numa casa no campo. Perto de um lago ou rio, para que eu possa pescar. Não que eu saiba pescar, na verdade, eu nunca pesquei, mas eu aprenderia rápido.

Celina observava os olhos sinceros do rapaz refletindo o laranja do sol poente vindo da janela, deslumbrada ela ficou. Colth matinha a franqueza em suas palavras observando a paisagem à sua frente, imaginando-a como em um sonho:

— De manhã eu tomaria meu café quentinho, em seguida, regaria a horta no quintal e colheria as frutas das árvores de um bosque próximo. Desse modo, teria uma grande variedade de pratos nos dias. E a tarde, aí sim, eu pescaria, se fosse verão, é claro. No final, provavelmente eu estaria frustrado por não conseguir pescar um peixe sequer, então mergulharia na água e aproveitaria a água fresca até o pôr do sol.

— Não seria legal ficar até o anoitecer — comentou Celina desviando o rosto para o outro lado.

— Hã?

— Ficar até tarde. Você poderia ficar resfriado, ou então — o rosto dela corou enquanto o seu peito ardeu de uma forma a não incomodar —, alguém poderia ficar preocupado com a sua demora em voltar para casa.

Colth sorriu atencioso àquelas palavras. Esperou que a garota voltasse a mostrar o seu rosto para observar os olhos dela. Quando chegou a hora, viu a sinceridade no brilho azul delicado se destacando no rosto franco dela.

— E...

Foi interrompido mais uma vez:

— Ainda não terminaram? — perguntou Iara, acompanhada de Garta adentrando ao abrigo.

As duas se aproximaram, Iara com o sorriso apertado natural e Garta com uma expressão inquieta, como se estivesse prestes a fazer algo que lhe amedrontasse.

Iara prosseguiu, segurou a panela com as batatas em uma mão e puxou o braço de Celina com a outra:

— Vem Celina, eu quero que você experimente o tempero que eu fiz.

— Ah, tá bom, tá bom. Eu já estou indo — respondeu a guardiã sendo escoltada pela garota animada.

As duas deixaram o lugar em direção à fogueira recém acesa do lado de fora. Apenas Garta e Colth, além do silêncio entre eles, permaneceu no abrigo.

Colth puxou assunto enquanto se voltou à bancada para limpar as facas. Dali era possível ver as duas garotas pela janela conversando sobre o sabor da comida a ser preparada na fogueira:

— Essa Iara tem muita energia, não é?

— É — respondeu Garta sem intensidade. Aproximou-se: — Colth, eu quero te falar uma coisa.

— O que foi? — preocupou-se ele. Principalmente pelo tom acanhado da mulher que geralmente ela não demonstrava. Largou os talhares de lado e deu toda a sua atenção: — O Goro falou alguma coisa desrespeitosa ou nojenta para você? Aquele idiota, ele...

— Não. O Goro não falou nada.

— Ah, não? Então, o que é?

— Eu acho que consigo usar o deslocamento para um lugar que eu nunca fui. Quer dizer, eu nunca tentei antes, mas acho que pode funcionar.

— Sério? Isso é ótimo — respondeu empolgado.

— Sim, mas para isso. Eu preciso de algo que eu possa achar, algo que guie o meu caminho. Como um localizador.

— Acho que eu entendi, mas por que está me dizendo isso?

— Eu quero que fique com o localizador, para que eu possa te encontr... para que eu encontre vocês, quando recuperar minha magia.

— Certo. Se isso funcionar, vai ser de grande ajuda — compreendeu Colth. Desconfortou-se repentinamente: — Aliás, eu acho que eu tenho que me desculpar. Não é que eu estivesse contrário à ideia de você ir até Tekai, eu só...

— Esquece isso. — interrompeu ela amistosamente ríspida. Respirou fundo e se aproximou. Um passo frente ao rapaz um tanto confuso. — Abra sua mão.

— Hã?

— Eu vou te dar uma coisa que é importante para mim — apressou ela perdendo a paciência: — Só abre a mão, tá bom?

— Não vai me dar sujeira ou um inseto morto, né? — desconfiou ele.

— Não. É o localizador de que eu falei. É só um pingente que minha mãe me deixou.

— Ah, sim. Tá bom. Aqui. — O rapaz esticou a mão com a palma apontada para o teto do abrigo, pronto para receber o que quer que fosse.

— ... — Garta desviou os olhos pensativa.

— O que foi?

— Fecha os olhos — solicitou ela.

— Para você me entregar o pingente? — Suspeitou ainda mais.

— Colth! — reclamou ela.

— Isso é mesmo necessário?

— Vai logo.

Colth cedeu aos pedidos estranhos da garota impaciente. Fechou os olhos continuando desconfiado sobre aquilo:

— Sério, se você colocar sujeira, ou qualquer coisa estranha na minha mão, eu vou...

Foi interrompido, primeiramente sentiu algo metálico tomar a palma de sua mão direita junto com os dedos finos de Garta e, em seguida, se surpreendeu. Seus lábios foram pressionados bruscamente por algo macio e quente, um contato inesperado que fez seu coração acelerar repentino.

Colth sentiu-se envolvido por uma onda de emoções. O toque dos lábios de Garta despertou uma sensação desconhecida, uma doçura que o fez se render completamente ao momento, mesmo assim, ficou simplesmente paralisado sem corresponder.

Mesmo que não tenha durado mais do que um segundo, o tempo parecia ter parado naquele momento.

Ele manteve os seus olhos fechados até que nada mais estivesse ao seu toque. Seus lábios esfriaram enquanto pensava em como Garta expressou seus sentimentos de uma forma tão inesperada e sincera.

Colth abriu os olhos para observar a mulher diante dele. Em resposta, Garta desviou o rosto completamente vermelho:

— Desculpa, eu não deveria... — ela se virou rápido e correu para a porta do abrigo parecendo arrependida.

— Espera... — pediu, mas não foi atendido.

Colth já estava solitário no abrigo. Calado, surpreso, solitário, completamente confuso. Olhou para sua mão e viu o pingente, um objeto oval pequeno com belas gravuras em seu corpo prateado.

Respirou fundo se perguntando em um sussurro atônito:

— O que foi isso?



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