Volume 2

Capítulo 94: Dissonância

— Faz tanto tempo que eu não te vejo, Hui — disse o homem se sentando à sua velha poltrona com auxílio de sua muleta.

— Eu esperava um lugar um pouco mais aconchegante para você, Índigo — respondeu o outro, adentrando o porão que servia como abrigo ao guardião de Véu, seus olhos percorrendo o ambiente com uma mistura de curiosidade e desdém.

— Desde quando você adquiriu esse tom sarcástico? — perguntou Índigo, sua voz carregada de seriedade, sem preocupação aparente.

— Não foi minha intenção soar sarcástico. — respondeu Hui sinceramente, observando caixas e restos de uma civilização amontoadas no abrigo. — Eu não estou acostumado a ter conversas civilizadas há algum tempo.

— E qual seria o motivo da sua visita? Não está apenas a procura de uma conversa civilizada, não é, Hui?

— Você continua igual àquela época — expôs o visitante. Ficou pensativo por um segundo, de pé ao centro do cômodo com o rosto sombreado. Retornou a luz das velhas e enferrujadas lanternas de Sathsai penduradas ao teto: — Eu me encontrei com o guardião de Anima recentemente. Ele me encontrou, na verdade.

— Você é o guardião de Anima, Hui — rebateu dissimulado.

— Não se faça de desentendido. O que está planejando?

— Eu? Eu não estou em posição de planejar nada — Índigo indicou sua perna enfaixada com um olhar resignado. — Além disso, esse mundo já está muito condenado, para se pensar em planejar alguma coisa.

— Por que mandou o guardião de Anima atrás de mim?

— Eu não o mandei... Ele foi de espontânea vontade.

— Tsc. Eu não te entendo — O homem de pé se negou a aceitar a resposta. — Está desperdiçando a sua segunda chance.

— Sendo sincero, Hui. Eu acho que nós já tivemos nossa chance. E falhamos completamente, junto com a Lashir e aquela intenção egoísta. Mas agora, eu a entendo. Eu não vou viver escondido aqui para sempre. Me nego a ter o meu destino traçado por uma deusa. Talvez um dia, você me entenda.

— Que seja — Hui mudou o tom da conversa, proferiu as palavras mais ameaçador, seu olhar tornando-se mais penetrante: — Se sabia sobre o guardião de Anima, então também deve saber sobre a guardiã de Finn. Diga-me onde ela está.

— Talvez eu saiba, mas não vou te dizer — proferiu Índigo sabendo onde aquilo o levaria. — Quer saber de uma outra coisa? Você também continua igual àquela época. É apenas um peão sendo usado e abusado. Você é fraco e covarde. Sempre seguindo alguém, sempre sendo apenas um simples guardião. Quem é o seu líder dessa vez?

— Onde está a guardiã de Finn!?

— Não está a comando de Lux, não é? Não, Lux jamais se misturaria com um guardião abdicado. Ela é a maior, e você apenas um rato abandonado — o homem na poltrona respondeu a própria pergunta e continuou refletir a respeito: — Não pode ser mais o Bernard. Depois que eu arranquei àquele braço dele, vocês brigaram feio, não foi?

— Você não sabe do que está falando...

— É verdade que ele desfez o seu selo, Hui?

— Índigo... — rangeu os dentes prostrado.

— É verdade que Bernard preferiu ter a sua defesa desfeita e ficar completamente aos caprichos de Calis? Deve ter sido algo bem frustrante, ver a sua paixão simplesmente se entregar a uma outra pessoa, uma deusa com coração monstruoso, desse modo.

— Eu cuidei dele! Eu o protegia! — Hui se inflamou.

— Mas não foi o suficiente. — Índigo abasteceu.

O homem ao centro do porão gesticulava sua raiva enquanto colocava uma das mãos por entre os fios de seus cabelos, os puxando,  quase a ponto de arrancá-los. Frustrado, ele continuou:

— Eu avisei que a rebelião da Lashir era um devaneio! Eu avisei para ele não absorver, não consumir, aquela maldição que é a alma de Calis! Eu avisei que o Imperador era implacável! Eu...

— Então, está as ordens desse tal Imperador. O humano que subjugou um deus...

No momento em que Índigo emitiu aquelas palavras, Hui parou com sua indignação. Pareceu ser abraçado por aqueles dizeres, como se a simples lembrança de tal pessoa passar pela sua cabeça, o fizesse mais calmo e seguro. Focou os olhos tranquilos ao homem sentado ao fundo do cômodo, e disse em tom convicto desenhando um leve sorriso em seus lábios:

— Ele vai ser a nossa salvação.

—Salvação? — Índigo estranhou tudo naquela afirmação. Desde a nuance presente na voz, até as palavras escolhidas. Pensou por um segundo antes de retornar com a sua dúvida: — Eu fico me perguntando. Quem seria esse deus que o tal Imperador subjugou?

Hui sorriu com o canto da boca. E disse devagar, se deleitando das próprias palavras:

— A própria Deusa Lux.

— Impossível — pensou alto Índigo, franzindo a testa em descrença.

— Eu até daria a honra de você conhecê-lo, Índigo. Mas a verdade é que, assim como eu, você é apenas um resquício do que um dia foi um guardião. Então, vou repetir uma última vez, onde está a guardiã de Finn?

— ... — Índigo se manteve pensativo, preocupado em sua poltrona.

— Se não vai me dizer, então terei que arrancar essa informação direto da sua mente — afirmou Hui, dando um passo à frente enquanto retirava uma adaga de seu cinto.

— Essa adaga... — Índigo murmurou, visivelmente surpreso.

Hui avançou, um sorriso sinistro se formando em seus lábios ao carregar a lâmina azul brilhante, com detalhes em vermelho na sua empunhadura, cintilando à luz fraca do porão:

— Eu disse que me encontrei com o guardião de Anima, não disse? — Mirou os olhos em Índigo — Agora é hora de encontrar a guardiã de Finn. E você vai me dizer onde ela está, querendo ou não.

                                               ***

Garta avançou, com sua espada curva poderosa cortando o ar. A criatura guardiã de Calis, que costumava ser Bernard, não recuou. Seu corpo serpenteante se contorceu e foi de encontro à guardiã de Finn. Ambos se chocaram ao centro do salão destelhado. A lâmina de Finn chegou a ser cravada nas escamas da criatura com a força absoluta de Garta, mas, sem fio para corte, a espada apenas feriu superficialmente a coisa que rebateu o golpe logo em seguida.

Garta foi jogada para trás com o sentimento de frustração estampado em seu rosto. Ela conseguiu se manter de pé perdendo um pouco de seu equilíbrio, mas a criatura já avançava com mais um golpe, dessa vez com suas garras afiadas, que miravam a guardiã desequilibrada.

A guardiã de Finn pensou em novamente utilizar-se da sua magia para se deslocar, mas já sentia sua energia se esvaindo, talvez teria apenas um uso da sua magia poderosa, dois usos nas melhores das hipóteses e, se tratando de uma criatura poderosa como a que estava diante de si, não poderia se dar ao luxo de utilizar a magia para um simples recuo. Em meio a esses pensamentos, a perspectiva sitiada mudou.

Enquanto Garta enfrentava a criatura de frente, Goro direcionou seu revólver de Sathsai para a criatura pela lateral. O rapaz disparou a energia concentrada acertando a cabeça medonha de enormes dentes do guardião de Calis. O feixe de luz e brilho atingiu a monstruosidade em cheio, mas nada mais aconteceu, pareceu apenas enfurecê-lo ainda mais tomando a sua atenção. A coisa rugiu como um verdadeiro animal.

— Isso não está funcionando! — Goro gritou se destacando.

Iara, com sua flecha engatilhada do outro lado do salão, mirou cuidadosamente entre os olhos felinos da criatura. Seus dedos tremeram levemente de ansiedade antes de ela soltar a flecha.

— Espero que isso funcione — ela murmurou para si mesma, como se respondesse o insucesso do amigo.

A flecha cruzou o salão e, quando estava prestes a acertar o olho direito da criatura, o artefato pareceu ser ricocheteado para longe.

— Merda... a magia desse cara é insuportável — disse Goro pontuando.

Novamente a criatura rugiu, em seguida, mirou o seu ataque das garras em direção a garota arqueira de rosa.

O guardião de Calis cresceu aos olhos de Iara. Ele se aproximou rápido, com suas garras preparadas para um golpe mortal. A garota congelou diante de uma sensação forte de medo nascido da feição bizarra cheia de dentes da criatura e do rugido dissonante. Quando se deu conta, Iara já estava prestes a ser acertada, mas algo lhe tirou do caminho da morte. A mão da garota foi preenchida por outra.

Goro segurou a mão dela em meio a uma corrida energética. Ele não parou de correu e, com uma coragem notável, trouxe consigo a garota antes paralisada, a forçando a correr com ele.

As garras da criatura apenas acertaram o chão de madeira do salão, formando três grandes rasgos retilíneos.

— Por quanto tempo continuarás a arriscar as vidas dos teus aliados? — perguntou as vozes vindas da espada de Finn de encontro com os pensamentos de Garta. Novamente, o tempo parecia ter parado enquanto aqueles dizeres ecoavam apenas na mente da mulher. — Mate o guardião de Calis.

“Não! Eu vou achar outro jeito.” Pensou Garta em resposta.

— Não há outro jeito.

“Eu posso apenas contê-lo.” Sussurrou em seus pensamentos incertos.

— Acha que consegue no seu estado? Apenas mais dois deslocamentos com sua magia, e você ruíra. Sabes disso.

“Eu-eu posso deslocar a criatura para um lugar longe daqui e...”

— Não funcionará. O poder de um guardião impede o deslocamento em seu corpo. São como duas magias se encontrando e se anulando. Usar o seu deslocamento nele, ou em um inimigo poderoso, apenas desperdiçará a sua energia.

“Eu prometi que eu não mataria novamente...”

— Estás em um disparate! Você é a guardiã de Finn. Assim como meu ser, você é uma arma servindo a nossa deusa.

“Eu prometi! Eu não vou matar!!!” O grito eufórico de Garta ecoou além de sua própria mente. O tempo voltou a correr.

— Garta! — Suplicou Goro, do outro lado do salão.

O rapaz continuava a correr, com a Iara ao seu lado, eles fugiam da criatura que tentava os acertar com as garras afiadas pelo salão. A dupla foi pressionada até estarem encurralados ao fundo do prédio.

O guardião de Calis os alcançou rapidamente com seu corpo escamoso se contorcendo pelo piso de madeira. A criatura levantou suas garras novamente, dessa vez para acertar Goro. Diante do ataque iminente, o rapaz não conseguiria usar sua arma, o seu revólver ainda fervia devido ao último disparo, teria de esperar um pouco mais antes de um novo disparo de energia Sathsai. Ele não poderia fazer muito mais, além de observar o golpe certeiro trazendo sua morte se aproximando.

As garras da criatura cortaram o ar, mas antes que encontrasse o rosto de Goro, acertou a espada enferrujada de Finn.

Garta havia utilizado de seu deslocamento mais uma vez, surgiu entre a criatura e os seus dois amigos. Ofegante perante o seu esgotamento de energia, devido ao sucessivo uso de magia, ela colocou rapidamente a sua espada em posição defensiva, com a lâmina sobre a cabeça, parando as garras afiadas da pata direita da coisa monstruosa.

— Vão! — ordenou Garta.

Goro e Iara não perderam tempo. Cada um para um lado, correram dando a volta na criatura que preparava mais um ataque com a pata esquerda mirando a guardiã.

— Me escuta, Bernard!!! — vociferou Garta, segurando a espada contra as garras afiadas da criatura que continuava as pressionando. — Eu sei que você está aí!

O guardião de Calis pareceu, de fato, ouvir o grito de Garta. Hesitou por um segundo rosnando frente a guardiã de Finn.

— Não faça Isso — disse Garta encarando a face da criatura. — Eu sei que é difícil, nós já matamos muitos, mas daqui para frente, podemos fazer diferente.

A criatura rosnou mais forte, pareceu não gostar das palavras de Garta, mas a mulher continuou com os olhos fixos e determinados diante da monstruosidade:

— Você não precisa fazer isso. Podemos reconstruir esse mundo. Podemos reunir os guardiões e refazer tudo, mas dessa vez, sem diferenças entre homens e deuses.

— Nãooo... — grunhiu a criatura em dor e remorsos. Hesitando com as suas garras da pata esquerda. Estava pronto para acertar Garta, mas algo o fazia balançar frente àquele golpe fatal.

— Garta, sai daí! — gritou Iara, completamente preocupada.

— Não. Calma — rebateu a guardiã de Finn, determinada.

— Garta... — sussurrou Goro, aflito do outro lado.

— Me escuta, Bernard! Eu lhe prometo, vamos fazer um mundo melhor. Um mundo sem indiferenças e...

— Já chega!!! — rosnou a criatura. — Promessas, promessas, promessas.... — repetiu perturbado.

Respirou com dificuldades em meio a grunhidos indecifráveis. Alinhou sua pata esquerda com as garras afiadas e, prestes a investir contra Garta, vociferou em tom feral:

— Chega de promessas vazias!

Atacou.

— Não! — gritou Iara, esticou a mão em direção ao desenrolar que observava. Abalada, prevendo o pior.

As garras da monstruosidade acertariam Garta, sem ela ter qualquer chance de defesa. A guardiã ainda mantinha a espada defendendo o primeiro ataque da pata direita da criatura e, com isso, estava completamente exposta àquele segundo golpe mortal.

Mas assim que começou o movimento de seu golpe, a pata esquerda do monstro foi parada. O guardião de Calis sentiu algo segurando o seu membro e logo levou sua atenção até ele.

Três criaturas sombrias, três Sirveres que poderiam ser confundidos com lobos, haviam surgido do chão e agarrado a pata esquerda de Bernard.

— Iara... — sussurrou Goro, assistindo de longe a cena com alguma dificuldade devido o corpo da criatura estar no meio de sua linha de visão.

A garota havia invocado os seus velhos conhecidos Sirveres como uma última alternativa.

— Sirveres? — se perguntou Iara, a preocupação ganhando sua mente. — Mas era para vocês protegerem o Índigo. O que estão fazendo aqui...

Não houve tempo de terminar suas especulações.

A imensa criatura que antes era Bernard desencadeou seu ataque de forma súbita, utilizou sua cauda de serpente para acertar Garta e se desvencilhar. A guardiã foi arremessada para trás e caiu ao chão sem grandes danos, mas o pior estava por vir. Com sua pata direita livre, Bernard abandonou seu foco em Garta e investiu contra Iara.

Foi um golpe rápido, imprevisível.

Garta se levantou sem ter visto o que aconteceu. Goro, do outro lado do monstro, também teve sua visão tapada e não entendeu de imediato o que havia se passado.

Bernard, após o seu golpe, moveu a pata esquerda sem qualquer impedimento. Os três Sirveres haviam desaparecidos.

— O que aconteceu? — se perguntou Goro, caminhando rápido e circundando a criatura para ter o seu campo de visão descoberto.

Primeiro ele notou Garta, estarrecida com algo que repentinamente lhe chamou a atenção e observava paralisada. O rapaz estranhou de imediato e seguiu a linha de visão dela até encontrar o que a fez parar de modo tão abrupto. Quando notou, seus olhos se alargaram, perdendo o brilho habitual.

Iara havia sido atingida em cheio pelas garras de Bernard. O arco que ela tanto estimava escorregou de sua mão, caindo ao chão com um som suave em meio ao repentino silêncio. O sangue quente surgiu nos lábios delicados da garota, tingiu seu queixo e derramou-se em gotas ao chão.

O corpo de Iara foi transpassado completamente pela cruel garra da criatura, atravessando-lhe o ventre e emergindo pelas costas.

Dor, desalento, desespero. Mesmo assim, Iara dirigiu um olhar de gratidão e afeto aos dois amigos, quase com um sorriso tênue em serenidade. Os outros dois não sabiam como reagir, congelaram.

Com um gesto brusco, a criatura retirou sua garra, deixando apenas um vazio ensanguentado onde antes havia o estômago da garota. Iara cambaleou, caindo de joelhos antes de deitar-se no próprio sangue.

Diante de seus olhos, seu amado arco se fez presente. E com um último esforço, a garota estendeu a sua mão para tocá-lo, sentindo a textura rústica da arma uma última vez. Agradeceu e fechou os olhos.



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