A Mansão de Alamut Brasileira

Autor(a): Safe_Project


Volume 1

Capítulo 5: Vestígios de um Pecador (1)

Tum… Tum… Calmamente, a criatura caminhou na direção dos dois, ciente de que era impossível escapar daquele cômodo apertado.

Num reflexo, a ferida de James alfinetou-lhe. As recordações do primeiro golpe ficaram cravadas em sua mente, tornando a dor naquele ponto em seu novo sensor de perigo. Nisso ele ficou de joelhos, novamente inutilizado.

Assim como da última vez, Jessie venceu os limites de seu corpo e assumiu postura defensiva. Mas como exatamente lutaria contra aquela coisa? Não era como se um soco fosse funcionar, muito menos um empurrão.

A estátua poderia acertá-la com um simples balançar de braço, e não tinha dúvida de que seria o bastante para nocautear qualquer pessoa.

Porém, dentre todas as coisas, o que os detetives mais queriam saber era como aquela coisa havia voltado a se mover. Foi por causa da lua? A aceleração do tempo? Outro mandamento quebrado??

Não tinha como saber, e talvez nunca tivesse, pois em passos curtos, o ídolo se aproximava com o punho cerrado, pronto para desferir seu poderoso golpe.

“O que eu faço? O que eu faço??”

A mulher não parava de se perguntar, sendo totalmente ignorada por sua própria mente.

Tum! Num último passo, a criatura ficou rente aos dois. O duro sentimento da derrota acertou os dois. Jessie engoliu seco, e seu marido permaneceu de cabeça baixa, aceitando seu destino.

O braço direito se moveu lentamente, tanto que a detetive perdeu a noção dos segundos. Com seu olhar fixo no ídolo, ela suportou o máximo que pôde, até que suas pernas também cedessem.

Agora acompanhando James, ela ainda se forçou a observar aquela coisa com o cenho franzido.

Por fim, a criatura guiou sua mão livre até o pequeno alvo. Toc! Com cautela, ela pegou a caixa preta.

— Ein? — Ambos murmuraram em uníssono.

A estátua se agachou, e pela primeira vez deixou o lampião de lado. De forma cuidadosa, ela recolheu os panos e guardou na caixa, em seguida, pôs essa em seu devido lugar, embaixo da cama.

Ao se levantar, o corpo de pedra deu curtos estalos. Ela então então avaliou o cômodo e, ao parecer satisfeita, se retirou.

Tum… Tum… Gradualmente, o som de seus passos parou de ecoar, e tão rápido quanto surgiu, ela novamente desapareceu mansão adentro.

Naquele curto silêncio, apenas a respiração pesada da dupla era audível. A dor de James atenuou, e o corpo de Jessie voltava ao controle de si mesmo.

— O que… o que foi isso? — perguntou ele, encarando o corredor.

— Não sei, mas estamos vivos. É isso que importa.

A rápidas decisões da mulher ainda impressionava seu parceiro. Mesmo após tal situação, bastou alguns instantes para que ela se recuperasse. Bem que gostaria de ter essa mesma atitude.

Apesar dessa falta, não era como se também não tivesse uma habilidade única. Com um rápido deslize de seu olhar, observou um fato peculiar na fotografia tirada alguns momentos atrás pela câmera misteriosa.

— Jessie, olha isso aqui! — Pegou o papel e apontou.

Oloco! A ruiva ficou boquiaberta. A foto havia sido feita no estilo de uma selfie, exibindo os detetives no momento em que foram cegados pelo flash. Mas não era isso que importava, e sim algo um pouco mais atrás.

Parecia estar atrás da parede, mas ainda era fácil identificar aquilo como uma esfera flutuante. O “núcleo” tinha um tom branco, cercado por duas camadas de uma energia azulada que escorria conforme se afastava da peça central. Não foi difícil para nenhum dos dois reconhecer aquele fenômeno.

— É uma alma aprisionada! Nós aprendemos sobre isso no curso de formação.

Muito curioso. Mesmo que já tivessem visto algo parecido em demonstrações, encontrar tal fenômeno numa missão real era bem mais emocionante. Como se não estivessem sob alto risco de morte, eles se animaram como duas crianças.

No entanto… não alterava em absolutamente nada a situação. Almas aprisionadas, em casos raros, só seriam libertadas após o cumprimento de algumas condições. Infelizmente, aqueles altares existiam para esse caso.

Como sempre, Jessie facilmente redirecionou seus planos. O lugar onde a foto foi tirada, ou melhor, o momento em que, lhe deu a peça que faltava em um dos vários quebra-cabeças que montava mentalmente.

— Essa alma deve ser da estátua! Não tem como uma alma aprisionada estar apenas vagando, pois é como o próprio nome diz, ela tem que estar aprisionada!

James concordou, assumindo que aquele item ficaria com eles a partir daquele momento. Com as fotos, seria possível descobrir a atual localidade da estátua, evitando situações de perigo como a de agora há pouco.

Diversas possibilidades passaram por sua cabeça. Com aquele item, seria mais fácil e até mais seguro avançar dentro daquela estrutura que em alguns momentos parecia um labirinto. Contudo, Jessie aparentava ter outro objetivo atual.

— James, vamos voltar pro salão.

Ein?? Ah, verdade! Jessie poderia até ter bastante atitude, mas isso apenas piorava o quão maluca ela conseguia ser em algumas situações. Claro que podiam voltar lá, o máximo que poderia acontecer era ter o corpo atravessado por um braço de pedra.

— Você não é maluca de fazer isso por nada. Qual é o seu plano?

Pela primeira vez, o homem identificou uma dúvida se instaurar no semblante da esposa. Ela coçou a cabeça por alguns instantes, e então disse:

— Eu quero… testar um negócio.

— E o que seria esse negócio?

Era algo que ela também gostaria de saber. Afinal de contas, o que eram aquelas vozes? Aquela luz dourada parecia atrair apenas ela, e não só isso; foi também a única que reagiu ao objeto. Aquele choque e aquelas vozes… queria muito saber o que eram.

— Só vamo de uma vez. Aquela coisa não vai atacar mesmo

Ele hesitou, mas no fim acabaria concordando, sempre era assim.

Com a câmera agora em posse de James, eles voltaram ao segundo andar com tanta cautela quanto saíram. A estátua parecia não ter descido até lá, o que tornava as coisas um pouco menos perigosas.

Sem pensar duas vezes, Jessie procurou e se aproximou do mesmo altar de antes. Respeitar teus familiares, era o mandamento nele talhado.

Uma curta troca de olhares ocorreu entre o casal. James se apoiava no corrimão da escada, encarando Jessie de forma apreensiva, que por sua vez estampou a coragem de sempre no rosto.

Ela então fitou o altar vazio, cujo parecia estender-lhe uma mão a partir do brilho remanescente. Acatando ao chamado, ela lentamente tocou a decoração com a ponta de seu dedo indicador, embarcando de vez nos mistérios que aquele item guardava em sua história.

Não se preocupe, mamãe! Eu e o irmãozinho nunca mais faremos essas coisas de novo, é uma promessa!

Huhu! Eu sei disso, afinal vocês dois são crianças abençoadas.

Era como se o mundo não existisse. Estava tudo escuro, mas nenhuma sensação atingia sua pele. Entretanto, as coisas começaram a mudar pouco depois.

Aquela escuridão indomável dissipou-se, não por completamente, apenas o bastante para algumas silhuetas humanas serem agora reconhecíveis.

Estranhamente, não havia nada representado além daquelas figuras, ainda assim, elas se comportavam como se tivesse algo a mais ali, sendo que a maior — provavelmente a mãe — parecia estar deitada em uma cama.

Além disso, apesar da forma que falava fosse lenta, o tom era firme demais para alguém doente, lembrando e muito a detetive de membros do exército.

Uma das duas crianças se aproximou, parecendo se sentar na beirada da cama. A outra permaneceu silenciosa, além de uma postura inferior constante.

— Agora, peça desculpas ao seu irmão — disse a mulher.

O tímido se manifestou: — Mas foi ele quem começou!

— Isso não importa. Quebrar as coisas dos outros é algo que não se faz.

— Nã-não mamãe! Eu não me importo com isso! — O da cama falou em tom animado. — Mesmo que minhas coisas quebrem, eu sempre posso consertá-las! — Ele ergueu os braços, exibindo um largo sorriso triunfante.

O mais novo apertou com força o que deveria ser as mangas de uma possível camisa que vestia. Mentiroso! Aquela palavra só era exclamada em sua mente, repetidas vezes.

— Mas o irmãozinho é a melhor coisa que eu tenho! Por isso, é melhor você tomar cuidado como a mamãe diz, porque senão…

O quieto ergueu a cabeça de instante, e mesmo que uma face não existisse ali, era notável uma vaga esperança ser exibida. Esperou ansioso pelas próximas palavras, mas aquele sentimento se perdeu quando isso aconteceu.

— Eu não vou poder consertar você, então não se machuque!

Aquela curto aviso trovejou pelo local, atingindo a criança tímida com uma descarga elétrica tão forte quanto qualquer raio. Estático, ele encarou o irmão, até que sua mãe, ainda com uma expressão e postura serena, falou:

— Viu só? Você não tem um ótimo irmão mais velho? Agora, seja o bom garoto de sempre e peça desculpas a ele.

Novamente, sua face inexpressiva voltou ao chão. Lágrimas invisíveis desceram por seu rosto contorcido, e da maneira que pôde, ele impediu que suas unhas rasgassem a pele de suas pernas.

— A culpa não é minha! Idiota! Bobona!

De imediato, ele deu as costas e saiu correndo, até desaparecer de repente seguido do bater de uma porta.

O mais velho encarou incrédulo por alguns momentos, até que sua atenção voltou para a mulher.

— Não se preocupe, mamãe! O irmãozinho não precisa pedir desculpas, e-eu não me importo!

Em resposta, ela suspirou alegremente: — Do que está falando, seu bobinho?

Ela abriu os braços, chamando o pequeno para um abraço. quando ele correspondeu, ela envolveu-o num abraço quente e afagou-lhe a cabeça.

— Vocês dois são meus pequenos anjos. Eu os amo do mesmo jeito.

Tchuk! com um beijinho na testa do filho, aquela visão pareceu se encerrar.

A escuridão tomou conta de tudo novamente, e como se viajasse na velocidade da luz, a mente da espectadora especial foi puxada de volta ao seu corpo, viajando séculos no tempo em um piscar de olhos.

— Jessie! — chamou James, ainda na escada.

— Já falei, tô de boa. — Levantou a mão, antes que o marido tentasse se aproximar. — No fim das contas, não foi tão útil quanto pensei que seria.

O homem estava visivelmente perdido na situação, nem precisando perguntar para que Jessie lhe desse uma curta explicação.

Tocar naqueles altares desencadeou uma espécie de “visão do passado”, e ainda por cima parecia estava ligada ao mandamento talhado ali. Não sabia como nem a razão para aquilo acontecer, mas a curiosidade lhe dominava cada vez mais.

— Visões? Hum… Eu só consegui ver você levar um choque e tombar para trás por literalmente um segundo. 

Tão rápido assim? Pelo jeito, aquele fenômeno não respeitava nem o passar do tempo. Lembrando do tempo, a mulher olhou por uma janela. Ainda estava acelerado, sendo possível observar o sol atravessar o céu rapidamente. Quanto tempo já havia se passado?

Não importava, sequer tinha uma maneira de descobrir agora. Naquele momento, tinha de usar sua concentração para outra coisa.

Aquelas memórias… pareciam estar, de alguma forma, conectadas com os altares. A criança que se recusou a pedir desculpas, o irmão mais velho, a mãe… Com certeza não eram apenas pessoas comuns, para estarem ali, tinha haver algo especial neles.

Mesmo que apenas as silhuetas fossem observáveis, ainda tinha de existir uma maneira de descobrir quem elas eram. A melhor forma era óbvia, e Jessie estava cercada por mais nove possibilidades.

Tum…

Porém, o coração da mansão bateu novamente, lembrando a dupla de que não estavam sozinhos.

A estátua surgiu na varanda interna. Até onde tudo indicava, não estava indo atrás de nenhum dos dois, apenas andando em círculos.  Contudo, seu surgimento demorado alimentou uma nova dúvida na cabeça de James.

“Naquela velocidade… é impossível ela não ter feito uma parada em algum cômodo. Mas que tipo de coisa tem daquele lado?”

Ele mirou a ala direita com o olhar, não notando nenhuma diferença aparente no corredor.

— Jessie, o que pretende fazer agora?

— Bem, já que ela ainda tá só andando, acho que vou tentar usar essa coisa da visão em outro altar.

James então vagou a atenção até a escultura. Ela caminhava lentamente, em momento algum desviando o olhar para outro lugar que não fosse em frente. Por fim, desapareceu da varanda, entrando agora na ala esquerda do segundo andar, então não demoraria para aparecer no corredor dos sete quartos.

— Anda depressa, a gente não sabe como aquela coisa vai agir, ela pode tentar pegar a gente de surpresa. — Escorou-se no corrimão, atento ao corredor.

Por sua vez, Jessie deu um sorriso agradecido e foi em direção ao próximo altar ativo.

Não irás cobiçar as coisas alheias, aquela frase brilhante quase dava uma volta no altar. Assim como da outra vez, algo atraia Jessie para aquele item, uma curiosidade e conforto crescente. Os batimentos aceleraram, por instantes a confundindo com os passos do ídolo de pedra.

“Vamos lá… Me diga quem é você, D. Rossi!!”

Sem mais o que temer, ela praticamente estapeou o altar vazio, tendo sua visão outra vez dominada por trevas.

Desta vez, o mundo não era completamente vazio. Mesmo que um tanto embaçado, era possível enxergar uma casa, semelhante a um chalé de madeira. O cantar dos pássaros e o frescor da brisa nada lembrava além do interior de uma floresta ou planície.

Como esperava, aquelas duas crianças estavam ali novamente. Agora, ambas tinham olhos e boca, mas isentos de qualquer tipo de cor vívida.

O mais velho colocava diversos objetos ao seu redor, todos reunidos por ele mesmo. Amarrou galhos, criando um boneco de palito que imitava uma pessoa. Trançou folhas secas e quase terminou o que deveria ser uma cesta. Ainda que fosse pouco, era impossível não notar o olhar orgulhoso.

— Mãe! Aqui fora! Vem ver o que eu consegui fazer!

Alguns metros atrás, o garoto tímido estava com os joelhos colados ao torso, o total oposto do irmão saltitante. Pensativo, usava de um graveto para fazer linhas aleatórias na areia acumulada abaixo de seus pés.

Quando a mãe surgiu, sua atenção foi sob o irmãozão, que agora esbanjava um semblante ainda mais orgulhoso com a mãe por perto.

— Huhu! Você está cada vez mais criativo, não é? — Agachando-se, acariciou a cabeça do filho, cujo alargou o sorriso.

O mais novo fitou a situação por todo o tempo, desviando o olhar quando o irmão voltou a falar.

— Sabe, sabe! Quando eu tava na floresta, comecei a ouvir algumas vozes, mas eu fugi na mesma hora, assim como você ensinou! Eu corri rápido mesmo!

Ela o parabenizou, mirando sua atenção para as árvores por um momento, parecendo procurar algo. Em seguida, questionou sobre o irmão mais novo.

— O irmãozinho? Ele também correu junto comigo, mas sabe, ele não é tão rápido quanto eu. Quando ficou pra trás, começou a chorar, mas eu voltei e protegi ele rapidinho! Daí puxei pelo braço e salvei ele da sombra malvada!

— É mesmo? Que garoto corajoso você é! Fez muito bem, tenho certeza de que vai ficar bem~ forte, assim como você sempre fala.

Mesmo que fossem vazios, os olhos dele brilharam intensamente. Enquanto isso, o irmãozinho encolheu ainda mais em seu canto. Os risos alegres de sua família ecoaram fortemente, tornando as batidas de seu pequeno coração cada vez mais fortes.

Porém, não importava o quão alto ele batesse, eles nunca iriam escutá-lo.

Aos poucos, algo que não conseguia descrever lhe consumia. Uma força desconhecida escalava todo seu corpo, fazendo-o se contorcer em alguns tiques de nervosismo, os punhos cerraram e os dentes rangiam. Tudo da forma mais silenciosa possível.

“Porque ele é assim?”

“Como consegue ser assim?”

“O que ele faz pra conseguir isso?!”

As risadas dos dois já não lhe alcançavam mais, nem mesmo a luz daquele dia ensolarado. Não importava o quanto gritasse em silêncio, ninguém surgiria para lhe ajudar.

Solitário em seu pequeno mundo e cercado por inimigos invisíveis, ele levantou a cabeça e mirou o céu vazio. Sem a capacidade para conter as próprias lágrimas, deixou uma súplica escapar junto às gotas.

— Eu quero… ser forte igual a ele.



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