Volume 1

Capítulo 15: TREINO OU SUICÍDIO?

Kai seguia Mael por um dos túneis de saída.  

Eles usavam um conjunto de roupas preto e borrachudo. Segundo Mael, era leve para os movimentos.

Depois do combate acirrado, Kai dormiu um dia e uma noite. Comeu tudo que tinha direito e logo partiram. Ele nem teve chance de ver Fioled. Achava que devia ao menos um sinto muito.

Logo tirou esses pensamentos da cabeça. Seu foco era no presente.  

O túnel em que seguiam era redondo e de pedra bruta; ouvia-se um gotejar a cada respiração. Sons de criaturas vinham de todos os lados e o cheiro não era bom. Pra piorar, estava escuro.

Mael teve de apanhar um tronco e acender manualmente.

Segundo ele, aquele era somente um de vários sistemas de túneis que levavam diretamente para outras tribos vitanti e para fora do Reino da Orquídea. E ainda haviam áreas onde os cadetes eram treinados; a próxima geração de guerreiros do Sínodo.

– Antigamente, esses túneis eram muito usados pelo meu povo. Mas, infelizmente, criaturas começaram a percorrer esse lugar. Tanto que tivemos de selá-lo. Como existem métodos mais convencionas de sair da grande árvore, poucos de nós tem coragem de andar por aqui agora.

– E você é um deles.

Mael olhou para trás e sorriu.

– Correto.

Continuaram a andar pelo que pareceram horas. Somente o plot-plot das botas e o tilintar da espada de Mael faziam contraste com os sons das criaturas e o gotejar contínuo.

Depois de dobrarem várias esquinas, chegaram numa área de breu absoluto.

Quer dizer, em comparação com os tuneis anteriores, este era bem mais desprovido de luz. Parecia que até o ar era incapaz de chegar ali.
 
Mael ergueu uma mão e estalou os dedos; imediatamente o lugar se iluminou, várias tochas se acenderam em luminárias de ferro gasto ao longo de uma parede musgosa.

Kai assobiou.

– Não vai mesmo me dizer como faz isso?

– É segredo. – Respondeu Mael, risonho.

Kai visualizou o lugar: era um enorme vão circular. No outro extremo, entre três tochas, haviam três arcos com batentes altos. O vitanti caminhou até o do meio e olhou para trás.

Kai entendeu o recado e o seguiu.

Continuaram a caminhar, mas, de chofre, ele percebeu que algo estava diferente. Ouviu algo próximo dele, parecido com uma lufada de ar.

Isso o deixou curioso, pois até aquele momento era como se estivessem prendendo a respiração.  

Ele parou e olhou para trás. Mael repetiu o ato.

– Ouviu isso? – indagou.

– É – disse o vitanti. – Temo que sim.

Ele caminhou lentamente para o lado de Kai e lhe entregou a tocha. De sua mochila, puxou um pedaço de madeira laqueado que teria a aparência de um arco, se não faltasse flecha e corda.

Ele fechou os olhos e, instantaneamente, uma flecha etérea apareceu em sua mão vazia. Passou a ponta dela pelo fogo da tocha e levou ao arco, uma corda etérea se formando.

Kai observou enquanto ele respirou e atirou. Quando a flecha fez seu caminho pelo túnel, iluminou suas paredes e teto.

Havia dezenas, senão centenas de bichos ossudos com caras monstruosas; baba escorrendo de suas bocas e olhinhos verdes que permaneceram vidrados nos rapazes mesmo depois da flecha ir e o escuro retornar.

Mael deu dois passos para trás.

– Batedores... – sussurrou. – vamos lentamente... caminhando para trás... não desvie o olhar...

Ao passo que começaram a andar para trás, a adrenalina tomou ambos de assalto. Deram cinco passos até que Kai tropeçou e cometeu o erro de olhar para baixo.

Seu pé afundou dentro da caixa torácica de alguma coisa. Quando ergueu os olhos novamente, as criaturas sibilaram seguido de um rosnar.

– Corre – Mael gritou.

O vitanti começou a correr, mas parou quando percebeu que seu companheiro não estava lhe seguindo.

– Péssima hora pra entrar em pânico, amigo.

– Não estou em pânico... meu pé está preso.

À medida que o rapaz tentava puxar o pé, as criaturas se aproximaram mais e mais, passando por cima umas das outras, mordendo e arranhando.

Quando se aproximaram e o fogo da tocha as iluminou de relance, Kai notou seus quatro braços feitos de uma carne aquosa e escura.

No lugar em que ele pensou ser os olhos, era na verdade seus narizes em formatos de fendas.

– Abaixa – Mael gritou. O rapaz obedeceu.

Um minuto depois, uma energia etérea passou zunindo pela cabeça de Kai, expelindo e explodindo os primeiros batedores que se aproximavam dele.

– Vamos correr, isso só vai atrasar eles por dois minutos.

Kai puxou o pé e, antes que corresse, bateu o olho em algo brilhando próximo da carcaça.

Quando se levantou, se juntou ao vitanti.

Viraram várias esquinas, sempre seguidos pelas criaturas, mas já tinham tomado boa distância. Finalmente avistaram um ponto luminoso ao fim do túnel e apressaram o passo.

Quando finalmente passaram pela abertura, puderam respirar fundo.

Kai esquadrinhou o lugar, esperando que os batedores saíssem pelo arco. Não saíram.

Então ele revirou a área em que estavam em alguns segundos. Era repleto de árvores altas e cheias de musgos. O chão era laqueado por mais musgo e cipós permeavam acima e abaixo. Um rio verde e doentio corria logo abaixo do morro que estavam.

– Batedores... dei de cara com alguns na minha primeira vez. Logo descobri que odeiam a luz – Mael se virou para a boca do túnel. – Mas achei que tinham ido mais pra longe. Sempre uso esse caminho, não pensei que... Enfim. O que encontrou lá atrás?

Kai lhe lançou um olhar duvidoso, a sobrancelha erguida. O vitanti tirava a poeira da roupa. Então ele viu.

– Isto – Kai tirou uma adaga de dentro das vestes. Não parecia nem acabada muito menos enferrujada. Tinha uma lâmina grossa na ponta e curva na base, cheia de inscrições. Seu cabo era feito de uma maneira a se adaptar aos dedos. Mael a observou.

– É uma adaga feita de ferrofosso – ele a pegou da mão de Kai e a observou, encantado. – Apesar de ser parecida com uma faca, é uma espada, na verdade. Se você conjurar Éter nela, assim... – a lâmina aumentou até 90 cm, brilhando loucamente. – Incrível, achei que tinha se perdido há tempos...

– Odeio cortar seu barato – Kai interrompeu. – Mas estamos cercados.

Mael ergueu o rosto e viu criaturas de pele tez penduradas nas árvores acima. Um véu cobria os rostos ossudos e usavam um tecido igualmente branco sobre a pele que exibia seus ossos. Pele e osso pareciam um só, como se fendidas.

Havia, no mínimo, uns 200. Kai suspirou. Aquele lugar era realmente perigoso.

– Caranguejos.

A testa de Kai se franziu.

– Quê?

– Carnívoros que aparecem depois de combates; buscam sempre o lado mais fraco.

– Espero que o lado mais fraco seja o dos batedores.

– Eu também – ele devolveu a espada para Kai que a observou com cautela enquanto ela voltava ao tamanho normal. – Vamos, não são perigosos.

Mael se moveu e, na mesma hora, uma estaca se fincou na sua frente, como que conjurada. Em seguida, um dos caranguejos se lançou de uma árvore.

Ossos saíram de seus braços e ele sibilou. Mael levantou uma mão e agarrou o pescoço ossudo da criatura.

O caranguejo se aperreou. Ele começou a tentar arranhar a pele de Mael, com seus dedos em carne viva e sem unhas. Não fez nem um arranhão sobre o manto de Éter.

Com a outra mão, o vitanti tirou o véu do rosto da criatura. Sua pele branca se juntava com seus ossos faciais, ao ponto de seus dentes e todo seu sistema nasal ser visível. Seus olhos eram dois pontinhos vermelhos e, pulsando logo atrás, seu cérebro.

A criatura bateu os dentes e tentou gritar; Mael segurou o maxilar da criatura e puxou com tanta força que espinha, língua e todos os veios interligados vieram junto. Sangue pegajoso espirrou para seu rosto, que só fechou os olhos.

Entrementes, os caranguejos ficaram mais impassíveis que nunca.

Mael soltou a carcaça da criatura no chão e Kai viu uma expressão dura; nunca a viu antes. O vitanti olhou para cima e sua aura foi expelida. Mas era diferente de quando se encontraram pela primeira vez.

Desta vez era imponente, bruta, raivosa. E os caranguejos sentiram. O chão tremeu sob os pés de Kai e os cipós balançaram. Ele só estava aguentando por causa do chi. Ainda assim foi difícil.

Mesmo com a energia circulando em suas veias constantemente e agora ele aprendendo uma nova técnica, foi incapaz de evitar completamente a aura do amigo.

Os caranguejos, por sua vez, não se intimidaram. Um por um, tiraram os véus e sibilaram.

– Um alarme – Kai observou.

– É... acho que isso pode ser o início de seu treinamento, que acha?

Kai abriu um enorme sorriso.

– Acho perfeito.

Mael pigarreou.

– Ótimo! Então serei seu suporte.

O vitanti brandiu sua longa espada e se posicionou atrás de Kai que ergueu seus punhos depois de devolver a adaga para suas vestes.

A energia roxa e etérea se acumulou ao redor dos punhos em riste. Na contagem de duas inspirações e duas expirações, ele correu em direção dos caranguejos que avançavam.

Quando seus punhos tocaram numa sequência de socos os rostos ossudos dos caranguejos, eles foram arremessados longe, sangue pintando os punhos de Kai.

Ele girou no eixo e um caranguejo avançou em sua direção, ossos saindo dos punhos flácidos e esqueléticos.

Kai abriu a mão esquerda e desviou um golpe que veio em horizontal; empurrou a mão direita em forma de garra no pescoço do bicho e puxou rapidamente a traqueia. Sangue jorrou em sua cara.

Em dez minutos, deve ter matado mais de cinquenta caranguejos. E eles se amontanhavam igual baratas.

Dispersando por um segundo a aura em seus punhos, Kai não diminuiu a pegada. Ele queria dar mais mobilidade aos seus músculos, não dependendo somente do chi.

Sentiria a sensação de poder, nunca mais esqueceria isso. Lembraria constantemente a vontade e a gana de vencer uma luta.

Entrementes, Mael só fatiava alguns caranguejos aqui e ali; parecia que o foco daquelas criaturas havia mudado quando ele lançou a aura etérea.

A quantidade de criaturas que chegavam era extremamente grande; Kai já estava cansado, e não era pra menos.

Tinha de trilhar um caminho realmente grande pra começar a fazer o que desejava fazer. No momento só conseguia aumentar sua durabilidade, força e velocidade. E foi isso que usou a seu favor.

Ele mesclou as artes de luta que viu Mael usar antes com as que aprendeu durante seu tempo em Algüros.

Tinha um jogo de pés rápido e seus socos eram como se estivessem a martelar.

Se abaixou de uma lança que passou zunindo pela sua cabeça e aproveitou para dar uma rasteira no caranguejo mais próximo.

Deu um soco com a mão esquerda que afundou o peito da criatura caída. Ao se levantar, deu dois socos seguidos na garganta e rosto de um outro caranguejo, que ficou igualmente amassado.

Diminuiu o espaço e acertou um golpe lateral a curta distância; a cabeça desse caranguejo voou longe, sangue gosmento jorrando.

Acertou um golpe de baixo para cima no queixo de outro, e, em seguida, um forte soco semicircular em seu dorso. A cabeça desse girou e seu tronco ficou amassado.

À medida que avançava com seus golpes, mais fortes iam ficando. Seus músculos ganhando força, sem a necessidade de usar a aura de chi.

Se esquivou de uma série de ataques de flecha.

Ele notou que essas criaturas não usavam magia. Eram simplesmente brutais.

Kai girou no eixo e acertou um chute na cabeça de um caranguejo com seu calcanhar.

– Acha que vão diminuir? – gritou para Mael.

– Não... a tendência é piorar.

Kai pulou e deu uma joelhada em linha reta no peito de outra criatura. Girou no eixo e se viu cercado por mais de 50 caranguejos. Um sorriso cresceu em seu rosto.


***


Kai limpava o rosto com um véu de cima de uma montanha de corpos. Mael estava logo abaixo, observando-o.

– Acha que deu pra evoluir?

– Sim. Mas tô com uma fome danada.

Mael sorriu.

– É natural. O uso de energia interna gera isso também.

– Sim. Mas, em breve, vou conseguir sobreviver sem água ou comida. A evolução virá.

Mael assentiu, tirando uma fruta da bolsa em suas costas. Jogou para o companheiro que catou sem mesmo estar olhando.

Kai deu uma mordida na fruta de cor vermelha.

– Que faremos agora? – Indagou, de boca cheia.

Mael deu de ombros, calmo.

– É com você; que acha que deve treinar agora?

Kai deu outra mordida e pôs-se a pensar. Até agora tinha tido êxito em fluxo e aura de chi. Tinha elevado seus sentidos num grau quase que inconsciente. A mudança era notória. Mas o fato é que essa evolução era apenas a ponta do iceberg.

Mesmo as informações do caderno eram muito vagas acerca do que ele podia e não podia fazer. Mas lhe ocorreu que poderia sim executar algumas técnicas ou outras que sabia do estilo de mana.

Um sorriso amarelo preencheu seu rosto.

– Acho que sei o que devo fazer agora.

Ele se levantou e jogou o véu de lado; deu um pulo e pousou magistralmente ao lado do vitanti, que manteve um olhar atento ao redor.

Kai se sentou sobre as pernas cruzadas e fechou os olhos. Começou a respirar.

Depois de alguns minutos, Mael falou.

– Hã... você vai cultivar aqui?

O rapaz abriu um olho e lhe fitou.

– Não vou cultivar, vou tentar canalizar chi entre as mãos... tentar dar forma.

– Mas aqui?

Kai abriu os dois olhos, uma expressão de curiosidade.

– Que é que tem?

– Estamos no meio da floresta de Bulogg. Não é muito confiável...

– Não me diga que está com medo.

– Não. Só não quero ter de enfrentar mais caranguejos enquanto você executa seus projetos. Vamos, tem pontos estratégicos por aqui.

Bufando, ele se levantou. Saiu atrás do vitanti.

Agora era a segunda vez que estava ali, percebeu Kai. Contudo, não sentia tanto uma aura opressora quanto antes. Era uma boa sensação.

Depois de caminharem por quase 5km, chegaram numa árvore grande de tronco grosso. Haviam degraus em sua casca. Kai ergueu o rosto para cima e viu uma estrutura de madeira circular há uns 100 pés de altura.

Depois de subirem por quase uma eternidade, chegaram à construção circular. Estava vazio, óbvio. Haviam pontes que ligavam a outras árvores, por quilômetros de distância. Eram distantes umas das outras, no entanto.

Na base circular e notavelmente espaçosa, haviam barracas altas montadas e empoeiradas. Algumas tinham até cupins.

– Não é usado há eras. – Mael observou.

Kai entrou numa das barracas; era enorme se comparada ao exterior. Tinha, pelo menos, 3 metros de altura. Sentou-se lá dentro. Havia um fedor de mofo misturado com relva.

Ele fechou os olhos e respirou fundo. Posicionou as mãos uma de frente para a outra, como se segurasse uma bola. Exalou o ar e, partindo da base da coluna, direcionou-o coluna vertebral acima, o ar passou pelas duas escápulas e desceu para os ombros e braços, tendo como destino final as mãos.

Imaginou que uma bola se formava, e praticamente conseguia vê-la tomando aspecto. Era pequena como uma fagulha, ondulava entre azul e roxo. Seu corpo relaxou e ele iniciou o processo de inalação e exalação.

Imaginou-se como parte do fluxo de um rio. Um imenso rio sob as estrelas de um céu negro. Desse rio, diversas afluentes e subafluentes se formaram; de repente, uma fina luz começou a descer do céu negro desenhado por estrelas.

Ele se imaginou tocando-a, seus dedos rapidamente se formaram. O indicador e o médio se elevando cada vez mais. E sempre que ele achava que a tocaria, ela se afastava.

Então ele estava longe do chão, e não sentiu medo. E tocar aquela luz era tudo que ansiava. Queria porque queria.

Esticou e esticou os dedos. A luz já não era mais luz: eram fagulhas, milhares delas. Então tocou, e teve um breve insight. Era como se olhos enormes o vigiassem. Foi por uma fração de segundos, mas pareceram horas.

Ao puxar a mão de volta, despertou. Estava flutuando quase 1 metro e meio acima do solo de taco.

Mas não perdeu o foco, aquela sensação de flutuar era incrível. Entre suas mãos, havia uma enorme bola que espiralava com fluxos menores espiralando dentro dela. Era de uma cor roxa bem viva.

E não somente isso era magnífico: suas veias haviam aumentado consideravelmente, tanto que mais chi circulava por elas. Seu Tanden era como uma pequena foz, chi circulando e entrando em fluxo com o sangue e com suas veias.

Sua expressão se alegrou.



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