Volume 1

Capítulo 20: INTERSECÇÕES

Para Kai, a luta só se tratava de uma disputa de força. 

Enfrentou o segundo filho de Enoryt Murphy, Ruff, em ocasiões similares uma pá de vezes. Sempre venceu; é claro, as lutas eram mediadas por mentores que, em sua grande maioria, pendiam para o lado do jovem lorde.

Mas percebeu que seu embate com Oren era de vida ou morte quando o vitanti conseguiu sair dos ataques massivos. Seu olhar era de um imenso ódio, éter escapava e uma intenção assassina era evidente.

Bom, a partir dali o que aconteceu foi rápido: numa série de investidas e estocadas, cujo Kai não conseguiu desviar da última, a lâmina de Oren o perfurou.

E não foi apenas perfurar, de modo superficial. Ela conseguiu rasgar o manto de chi, a roupa, o couro, carne, ossos, fibras... tudo. E ardeu; foi como ter se mergulhado em um lago congelado ou passar o dia num sol que queima para sempre. Provavelmente era mais doloroso que isso.

Ele urrou de dor; mas sua mente estava se esvaindo. Seus sentidos se perderam. Ele morreu.

É, morreu. Mas quem morre não deveria só dormir? Ou ir para os lençóis de Eteyow, segundo o que a crença vitanti afirmava?

Acontece que uma série de imagens passou na frente de seus olhos. A primeira coisa que se deparou foi com uma imensa construção de cristal, cujo chão e teto eram feitos de chamas. Ele viu um trono imenso e um ser imenso sentado nele, que era envolto de uma luz cegante.

E a visão rapidamente mudou: viu sete montanhas, três à esquerda e três à direita, e uma última no centro. Tornou a mudar: viu as fundações de algo imenso, gigante. Havia um túnel feito no chão com enormes quilômetros de distância, pilares de fogo vivo ao redor e fundo.

Sua visão mudou outra vez: estava de pé em frente a uma árvore de ramos pontiagudos cujo cada graveto derramava um orvalho prateado. E dessa árvore, frutos dourados eram gerados.

E mudou de novo; viu um rio enorme num fundo escuro cheio de estrelas. Haviam afluentes e subafluentes desses muitos rios, mas, um descia em direção a ele, do céu aberto e escuro, repleto de mais estrelas. E quando ele tentava tocá-lo, ele se afastava. E a vontade de tocar nesse rio cresceu. Queria porque queria. E quando estava para tocar, o rio se desfez em vários pontos e fagulhas brilhantes.

Então ele viu de novo o trono imenso e o Ser imenso sentado sobre ele; as montanhas; a árvore; o riacho. Viu olhos.

Viu uma vasta terra em fogo, suas florestas com árvores secas e apodrecidas. Viu um ser alado serpenteando o céu; viu uma guerra, corpos ao chão, o fedor vivido.

Reviu isso um monte de vezes.


***


Quando ele acordou, estava num quarto com paredes e teto abobadados, cor de creme.

Ele não conseguiu mexer o pescoço: seu ombro ardia, doía como se feito em mil frangalhos. Engoliu seco, portanto. Pensou estar morto.

Abwn estava sentado numa cadeira à sua direita, ele notou.

Fumava um cachimbo muito calmamente. Seus olhos encaravam o teto; mas, quando ele olhou para o rapaz, Kai achou que sua alma fora vasculhada. Era a força daqueles olhos cinzentos.

Ele sorriu.

– Como se sente? – indagou; soltou vários arcos de fumaça.

Kai se sentou, fazendo força para continuar consciente. Respirou e limpou a garganta.

– Ficarei bem.

Abwn sorriu; ajeitou os óculos e suspirou.

– Quanto tempo dessa vez?

– Um mês inteiro. – Abwn respondeu, calmo. – Mael e eu ouvimos seus gritos quando voltávamos para a Cova. Cheguei a tempo de ver seu ferimento.

– Devia ter visto o outro cara.

Abwn sorriu, os olhos se fechando.

– Consegui usar um contra feitiço a tempo de... bem, tempo o suficiente para evitar uma catástrofe.

Se teve de usar um contra feitiço, então a lança de Oren era mágica, pensou Kai.

– Entendo – Kai baixou a cabeça, pálido. – Sinto muito por causar problemas, Abwn.

– É por isso que temos de conversar. – Ele pareceu sério.

Kai lembrou que da última vez que teve uma conversa num quarto onde se recuperava, foi pra ser informado que nunca mais usaria magia. No entanto, lá estava ele outra vez. Mas duvidava que fosse ter esse tipo de conversa com o vitanti.

– O Sínodo se reuniu, logo depois de conversarmos sobre os acontecidos acerca dos tessaya. Acredito que já saiba o conteúdo de nosso concílio. Os líderes das seis regiões e os senhores mais prestigiados do Sínodo estão insatisfeitos; acreditam que sua presença causou tumulto indesejado, que tornou nossas crianças mais raivosas e mais violentas. Destemperadas, foi a palavra que usaram.

Kai assentiu. Já esperava por isso.

– Não é a opinião de todos, é claro – continuou. – Alguns acham que sua presença foi apenas o estopim para algo que está mascarado há décadas, senão séculos. Na minha não tão humilde opinião, penso que boa parte deles são tolos. Tolos por acharem que uma simples criança seria o bastante para amedrontar uma raça que não está em perigo há milênios. Acredito, na verdade, que você possa ter sido a fagulha de que alguns precisavam; aquilo que os faria mostrar quem realmente são.

– Eles querem que eu vá embora, é isso?

– Sim. – Abwn não pareceu feliz. – Nessa revelia, você teve pessoas que ficaram do seu lado. É o mesmo que já conversamos. Tudo parecia decidido até que, no entanto, alguém inusitado veio em sua defesa. Oren, que para muitos, um dos melhores soldados vitanti, declarou que era responsável pelo embate. E, como um dos primeiros a chegar no local de sua contenda, afirmo que ele estava realmente abalado.

“Em seu pedido, Oren disse... não, ele afirmou que não achava justo que você fosse embora sem que ele próprio fosse devidamente punido. Então bateu o pé, disse que se você fosse exilado, ele também teria de ir. Claro, houve quem chiasse. Mas ele foi irredutível. E como dono de um gênio particularmente forte, acredito que isso valeu como adição.”

– Então ele sentiu remorso, é? – Kai sentiu uma pitada de arrogância. Daria tudo para ver o rosto laranja do vitanti.

Abwn tinha uma feição indescritível.

– Oren é um bom rapaz, Kai. É como eu disse: tem um gênio muitíssimo forte e que ainda está sendo moldado.

– Não estou reclamando, mas sabe... ele tentou me matar.

– Sim, e ainda assim, exibiu uma preocupação irredutível. Penso que ele não queria realmente mata-lo. É por sua causa que você não se foi por completo. Sabe, ele iniciou um contrafeitiço, eu apenas finalizei.

Ao ouvir isso, Kai não pareceu satisfeito. Abwn notou.

– Repito: seu gênio é forte, mas ele sabe o que faz. – Reafirmou o líder vitanti.

Não pareceu saber quando tentava me partir ao meio, pensou Kai. Abwn o encarava.

– Sei o que está pensando, Kai. Mas confio em Oren; ele deixou se levar por um momento de irritação, falhou numa das leis militares vitanti: nunca perca a complacência. Era evidente que seu embate se tratava de uma disputa por força, arrogância singular é o nome. Ele foi desmedido.

Kai ficou encarando o velho vitanti. Seria impossível argumentar, uma vez que o velho homem estava irredutível quanto ao seu julgamento acerca do careca.

Mas foi Kai quem vira o olhar odioso do sujeito: não confiava e pronto.

– Que decidiram, então? – Kai perguntou, por fim.

– Que Oren deveria cumprir um tempo determinístico de prisão, ao invés disso. Você também foi julgado. Como acredito que não haveria julgamento maior do que o que você já estava enfrentando – e parece que Mael pensou o mesmo que eu pois, mais uma vez surpreendendo um total de zero pessoas, sugeriu que você ficasse um pouco mais para cumprir sua sentença.

Kai suspirou, já desejando ter sido expulso do Reino da Orquídea. Ser expulso talvez fosse uma punição melhor.

– E qual é?

Abwn suspirou.

– Receio que a guerra contra Pele-pétrea entrou em seu apogeu. Temos fortes evidencias para acreditar que ele sobreviveu e está formando um exército. Mael irá tentar recrutar o restante das tribos vitanti que estão pela floresta de Bulogg, bem como outras raças. E, enquanto os novos cadetes passam por treinamento, um batalhão já foi designado para o front. Tentaremos ocupar o maior espaço possível.

– E onde eu entro nisso? – perguntou, somente para ter certeza.

– Fará parte do batalhão nas primeiras linhas. Responsável por recuperar postos de combate avançados e ganhar localidade para o exército. Fará tudo o que seus superiores mandarem.

– E quanto isso vai durar?

– Até que os prólogos desta guerra estejam em suas últimas páginas. Será necessário, quando menos, enquanto novos soldados não se formam. O resto ficará a cargo dos comandantes.

– E eu tenho alguma escolha? – perguntou, não ironicamente.

Abwn sorriu. Se levantou e limpou as pregas de suas roupas.

– Receio que não. Acredito que essa seja uma punição justa, observando sua situação. O marechal foi bondoso.

– Foi é? Pode me apresentar depois? Gostaria de agradecer por nada.

Abwn gargalhou.

– Uma das coisas que gosto em vocês, humanos, é o senso de humor. – Ele enfiou a mão dentro das vestes longas e retirou um pano embrulhando alguma coisa. Entregou a Kai. – Antes que me esqueça, Mael pediu para lhe entregar isso. Disse que lhe seria útil.

Kai pegou e abriu. Um Quadro Rúnico sossegava tranquilamente, ao lado de um papiro. Ele o abriu e as palavras estavam em vertical. Um jeito estranho de se escrever.

“Faça bom proveito do quadro rúnico, Kai. Este é um pouco diferente, mais moderno. Acredito que não terá dificuldades em desbrava-lo. Você também precisará de uma arma; como foi convocado, sugiro que vá em algum ferreiro na Vila Lilás. Bom, nos vemos em dois dias
                                                                                   Mael.”

– E Kai – o rapaz ergueu o rosto para cima e viu Abwn sorrindo parado em frente ao arco de saída. – Não precisa me agradecer. Como marechal, foi um prazer lhe ajudar.

E saiu.


***


Kai estava sentado na janela de seu quarto na casa de Abwn. Caia uma chuva torrencial, mas apenas alguns pingos passavam pelas folhas e galhos.

O Quadro Rúnico que Mael lhe deu era mais complicado que o anterior. Parecia ser aberto manualmente; só que ele não teve êxito quando tentou abrir pros lados e cima/baixo. Nem com pressão funcionou.

Essa pedra também era diferente em outros aspectos: era dividido em dois ao meio, com formato de quadrado; sua cor era de obsidia. Parecia um pedaço de tijolo miúdo. Então como raios abriria? Ele também tentou inserir chi; não funcionou.

Acabou por se estressar e atirou a pedra numa poltrona próxima. Ficou olhando a chuva cair nos campos. Era grossa, caindo deitada. Uma vontade de tomar banho lhe inundou, mas deixou para lá.

Será que era artificial também? A chuva.

Sentou de pernas cruzadas no meio do quarto e meditou. Mas sua mente estava cheia: sempre tornava a pensar na pedra negra. Se levantou e foi até o sofá onde pegou o quadro de novo.

Voltou ao seu lugar de meditação e colocou a pedra na sua frente. Ficou encarando, imaginando como poderia abrir. Já tinha tentado por força e por chi; não deu certo. Olhou-a de um ângulo diferente; então um pensamento lhe surgiu.

Pegou de novo e inseriu chi. Quando a energia foi infundida, ele deslizou em diagonal.

E abriu. Simples assim.

A pedra pulou da mão de Kai e caiu no chão, um quadro rúnico aparecendo instantaneamente.

Mais fácil? Só era mais espalhafatoso.

Mas era de fato muito engenhoso. Era como uma aba aberta, uma janela. Flutuava com uma cor transparente, mas Kai não entendia como poderia lhe ajudar.

Um círculo apareceu com uma mensagem de voz. Kai pulou para trás, assustado.

Seja bem-vindo ao novo sistema de Quadros Rúnicos, anão fedorento. Você já pode inventar, seu bundão feioso.

A voz grave se dissipou; Kai ficou encarando o objeto por alguns minutos antes de fecha-lo e jogar de volta na cama. Não voltaria a tocar naquilo.



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