Volume 1

Capítulo 40: EU SOU


Arjuani levou as mãos à lateral do corpo, tremendo e suando.

Éter fluiu por seus punhos e ela tentou uma investida contra o mago, que se transformou em névoa e sumiu com uma risada ecoando.

– Oh! Não me desaponte, Juani.

A risada continuou por longos segundos.

Arjuani caiu sobre um joelho, arfando e tremendo.

Olhou para a ferida abaixo.

A adaga de cabo retorcido fora enfiada até poucos centímetros do cabo.

Com a mão esquerda tremendo, reuniu força e agarrou-a, puxando rapidamente.

Sangue expeliu enquanto uma lâmina de 20 cm saía da abertura.

Ela ficou pálida; largou a adaga no chão e conduziu seu lento éter pela ferida, para pelo menos estancar seu sangramento. Nunca foi muito boa em autorregeneração por meio de energia vital.

Ainda tremendo, ergueu-se. Gostaria de saber como aquela pessoa tinha ciência sobre uma lembrança tão longínqua.

Será que tinha caído numa artimanha elaborada?

A verdade é que sabia muito pouco sobre os humanos; seu primeiro contato com um foi com Kai Stone, seu antigo vice em comando.

Sua mente estava fraca. Será que havia algum veneno na adaga?

Ela checou a ferida, que tinha pequenas quantidades de éter transparente correndo para fechá-la; não havia qualquer coloração incomum. Portanto, descartou o envenenamento.

Poderia ser que a névoa estivesse mexendo com sua cabeça, ou mesmo  a perda de sangue a causasse aquilo. Era uma incógnita.

No entanto, memória há muito bloqueadas tornaram a boiar na superfície emaranhada de suas lembranças.

Memórias que ela lutou para que, com o tempo, não fossem tão dolorosas. Memórias custosas.

A dor em seu peito foi ficando maior. Ela lutou para que a ansiedade de um passado distante não retornasse. Lutou contra pensamentos invasivos, mas foi inevitável.

Sua memória a levou para sua infância.

“Pense no éter como uma extensão do seu corpo, Juani.” Soou a voz de um homem alto com o rosto tampado pelo sol artificial. “Vamos, mais uma vez.”

A pequena Arjuani balbuciou, tentando criar éter com as pequeninas mãos. Mas ela não tinha qualquer jeito para aquilo.

“O éter não consegue condensar, não é?” Indagou um outro homem se aproximando.

Ela se virou. Ele era alto, sua pele permeava entre o amarelo e o laranja, não sabia ao certo. Hora ou outra, pela reflexão do sol artificial, era possível jurar que ele era a própria luz.

“Babit!” Saiu correndo até o homem e deu-lhe um grande abraço. “Filito fala e fala, mas nunca consigo compreender...”

Ele se ajoelhou.

“Isso porque seu éter é muito poderoso, Juani.” Sua voz soou prazerosa e gentil. “Precisa de um conduíte. Que é que você tem em mente?”

Arjuani levou a mão ao queixo, forçando-se a pensar. Abriu a boca, mas tornou a fechá-la. Babit soltou um riso fraco.

“Pense, de que modo você gostaria de lutar?”

A imagem mudou, Arjuani corria de alguns meninos roxos.

“Venha, traidora, junte-se a nós.” Gritou um deles.

“Vamos, isso mesmo, seja como a escória que é seu babit e toda sua linhagem de traidores.”

Arjuani tropeçou e tacou-se no chão. Logo foi cercada pelos garotos.

“Você é a desgraça do nosso clã Verband, não fosse aquele inútil do seu antepassado, não estaríamos em desgraça tão ao leste da Orquídea.”

“É!” Disse um menino chutando o rosto da pequena Arjuani. “Nem mesmo Neru’dian poderia interceder por nós.”

Ela se colocou em estado fetal e recebeu uma série de chutes. Dizia a si mesma que acabaria logo, que estaria logo no fim.

De repente os chutes cessaram. Ela ergueu a cabeça e lá iam os meninos, cansados demais de bater.

Depois de se erguer, limpar a sujeira do corpo e caminhar lentamente, voltou para casa.

Estava sentada num batente, sangue escorrendo de vários lugares do corpo quando ouviu uma voz gentil.

“Foi uma boa surra” Disse seu babit.

“Deveria ter visto o outro cara” respondeu Arjuani, cabisbaixa.

Babit se aproximou e sentou ao seu lado. Começou a limpar seus ferimentos, não disse uma palavra.

“Por que nosso clã está em exílio? Por que nós, da família principal, somos tratados desta maneira pelo resto do clã?”

Não houve resposta imediata. O vento uivou e a respiração de seu babit ficou lenta.

“Há muitos anos, houve uma contenda entre vitanti e humanos. Os Verband, um clã muito prestigiado dentro da casta vitanti, não tomou o lado apropriado daquela batalha. O antigo líder, nosso ancestral, Carelli das Ostras-mil, decidiu que nosso lugar não era num campo de batalha e que uma contenda somente destruiria nosso lar e diminuiria nossa reputação para com o grande criador.”

“Tendo em vista que éramos o clã mais forte da época, possuíamos o maior número de vitanti com a qualidade da razão, foi uma baixa significativa para os vitanti de muitas cores. Ostras-mil era um pacificador, considerado por muitos o futuro Neru’dian daquela geração.” Ele suspirou. “Após a longa contenda entre homens e vitanti, houve um debate entre o Sínodo. Fomos depostos de nossos títulos, proibidos por lei marcial e indefinida de usar as artes da razão. Desde então fomos direcionados para o Leste, como protetores de uma das saídas da Orquídea.”

“Mas por que seguimos isso cegamente? Uma lei não poderia nos impedir, poderia?”

“De fato não. Acontece que um feitiço foi lançado na nossa família antes mesmo de nascermos. Isso impede que compreendamos a razão.”

Um silêncio perdurou por bastante tempo.

“Por que Ostras-mil simplesmente não se juntou à batalha? O resultado não teria sido outro?”

“Teria. Mas Ostras-mil não acreditava em violência descabida, ou seja, sem propósito algum. E, na época, ele viu aquela batalha como uma disputa de ego.”

“Mas ele não pensou nas gerações futuras? Uma decisão dessa...”

Babit sorriu, a felicidade não chegando aos seus olhos.

“Nenhuma decisão era tomada sem o comum acordo dos anciãos do clã, Juani. Ele teve o apoio de todo o clã. Apenas acontece que as gerações futuras não enxergaram que a paz importasse tanto se o preço para isso era nossa liberdade.”

“Mas o Neru’dian...”

“Neru’dian nunca foi um líder monárquico, querida. Este posto sempre foi visto como um facilitador entre nós e nosso protetor Bulogg. Neru’dian sempre teve voz, mas nunca a voz final. Decisões assim sempre foram tomadas pelos seis senhores.”

“E quando sairemos dessa punição? Já não passou tempo demais?”

“Recentemente o senhor de Pylpunt, um grande homem, devo dizer, levou a ideia até as reuniões senhoriais. Mas teve pouca atenção. Isso se repetiu mais ao longo destes 500 anos do que imagina, Juani.”

Outro silêncio permeou o lugar.

“E o que o senhor pensa disso, papai?” Era a primeira vez que Arjuani usava o termo comum ao invés do antigo viteni.

Ele a olhou e sorriu, desta vez, seus olhos curvando-se junto de sua boca gentil.

“Penso que Ostras-mil foi um homem justo, honesto e que, como senhor atual do clã Verband, eu faria tudo igual. Ostras-mil acreditava que todos éramos iguais perante o criador. Por que nos matar? Por que iniciar contendas por causa da diversidade? Fosse assim, nós vitanti de muitas cores deveríamos todos nos matar, não é?!”

“Então somos todos iguais?” Indagou Juani. “Até mesmo os gorilas?”

Babit sorriu.

“Até mesmo eles. Veja bem, um vitanti não deve ser medido pela quantidade de força que tem ou exerce numa contenda, Juani, e sim pela quantidade de resiliência que demonstra quando posto em prova. Lembre-se, a força é boa, mas a razão somente é compreendida quando há concílio entre espírito, mente e ser. E o ser, aquele que Eteyow nos dá no momento de nossa criação, é que desempenha a função de nossas vidas.”

Ele sorriu outra vez.

“Aqui” tirou um par de luvas de algum lugar e entregou a ela. “Há de lhe ajudar a controlar melhor o éter. Mas lembre-se, sua força não é tirada daqui” apontou para as luvas. “E sim daqui.” Apontou para o peito da menina.
 
A imagem mudou e Arjuani estava de frente para uma pira enorme. Os vitanti cantarolavam suas preces.

“Não éramos todos iguais, babit?” Pensou ela. “Então por que morreu para eles? Por que teve de me deixar, hein, babit?”

E ela esteve só novamente.


– Uma história comovente, Juani. – A voz do mago soou. – Morto por um humano... que bela ironia do destino.

Sua voz tirou Arjuani de seu torpor.

Era algo nessa névoa, ela entendeu.

As lembranças foram como se uma faca estivesse sendo enfiada várias e várias vezes em seu cérebro.

A dor da memória recente. Da infância dura após a morte do pai. Tendo que se tornar forte, fazendo cada um daqueles vitanti comer poeira.

A verdade é que nunca acredito na falácia de que vitanti se ajudavam, que eram bons. Que seu cerne era ser acolhedor e bom para com os outros.

Todos que conheceu durante toda sua vida, mostraram arrogância. Nada diferentes dos humanos que tanto falavam.

No fim, o único que fora justo com ela depois de tanto tempo, morreu tentando salvar uma raça que era inimiga por nascença da sua.

Um homem alheio a tudo aquilo. Conhecedor de tanta coisa e que, ao conhecer uma raça totalmente diferente da sua, não deixou de ficar surpreso.

Kai Stone foi a pessoa mais próxima que Arjuani pôde chamar de amigo; e agora ela tinha certeza das palavras de seu pai. Nem todos eram iguais. Mesmo assim, eram.

A raça de alguém não era motivador o suficiente para destacar o caráter dela.

Ela conheceu vitanti com o gênio podre. E conheceu humanos com qualidades que faria qualquer vitanti ficar com inveja.

Finalmente as palavras de seu pai fizeram sentido, e todo aquele ódio ressentido, guardado no seu cerne, foi desaparecendo.

Ela compreendia as palavras dele.

Suas mãos começaram a pulsar. As luvas tremiam com a pressão imposta nelas.

De repente, grande quantidade de energia começou a esvair de seus poros. Sua visão aguçou.

Viu diversos pontos. Haviam brancos, vermelhos, marrons e azuis. Mas o que estava em maior abundância era o roxo etéreo.

O éter no seu corpo gritava para ela usar aqueles pontos.

“O éter é uma extensão do seu corpo, Juani.” Lembrou da voz viva do pai.

Será que... isso... como?

Não havia outra explicação.

Sentido uma nova onda de vitalidade, percebeu uma ondulação na névoa aqui e ali. Parecia perturbado.

Não vai fugir de mim, mago. Pensou.

As luvas colapsaram e se estilhaçaram, dando uma liberdade renovada à Arjuani.

Ela notou uma enorme quantidade de éter entrando e saindo em seu corpo, com um fluxo constante se autoinduzindo.

Esticou a mão direita para a frente e a esquerda para trás. A névoa começou a se juntar, tomando uma direção contínua. Era como se uma maré de ar se formasse. Ela girou ao redor de si mesma.

Logo, fortes ventos e rajadas de ar sopraram aqui e ali.

Os gritos do mago puderam ser ouvidos de dentro quando Arjuani direcionou toda a névoa num raio de 50km para cima, dispersando-o.

O mago caiu, o corpo todo ferido.

– Que droga foi essa? – Gritou ele.

– Parece que compreendi a razão..., mas como? – Disse para si mesma, sorrindo e estupefata.

O mago se levantou. Seu capuz havia caído, revelando sua pele negra.

Era careca e tinha alguns cortes.

– Sua violeta de merda! – gritou ele, se erguendo rapidamente. – Como conseguiu sair do meu transe?

– Sua magia não me atinge, humano.

– Foda-se! Eu sou Calaher Dalgun! Sou um grão-mago de grau 6! – Balbuciou, histérico.

Arjuani apenas sorriu.

– Coloque seus títulos no campo de batalha, então.

– Ora sua!

Ele fechou os punhos, o ar condensando ao redor dele.

– Ares: Garras Talhantes!

Enormes ventos em formas de garras açoitaram na direção de Arjuani.

Com um erguer de suas mãos, um muro de dois metros e meios ergueu-se arredor e sobre Arjuani.

As garras resvalaram no muro foram direcionados para cima e para baixo, cortando tudo ao seu redor.

– Ares: Furacão Indomável!

Dois funis de três metros se formaram e arquearam, a fim de engolir o muro e tudo ao redor de Arjuani.

Batendo a palma de suas mãos, Arjuani fez os furacões pararem no ar.

Era uma disputa para ver quem poderia ficar com o controle do feitiço.

A feição de Calaher mudou para espanto.

– Eu disse, Calaher Dalgun, grão-mago de grau 6, para colocar seus títulos no campo de batalha.

– C-como isso é possível? Magias de nível 5 foram paradas tão facilmente... que tipo de monstro é você?

– Alguém que não se prende a níveis e graus. O céu é o limite.

De repente, o chão tremeu. O ar zuniu. Uma vibração inconstante aconteceu nos próximos dois segundos.

Como se sugados para um tipo de imã, os dois furacões foram puxados para cima, a magia claramente sendo desfeita.

Calaher ergueu o rosto e seu queixo caiu.

Havia um cilindro com 10 metros de altura e 15 de largura. Na ponta que estava direcionada para baixo, havia três pontas de oito metros cada, com ar e fogo ondulando ao seu redor.

O ar ao redor do enorme tridente ondulava e era sugado gradualmente.

Calaher olhou em direção à Arjuani, estupefato demais.

Ela parecia indomável, uma maga de verdade.

Seu cabelo açoitava para trás e para frente; seus olhos eram cheios de um novo enervar. Estava com a mão erguida para o céu.

Calaher sorriu, abrindo os braços.

– Quem é você?

Ela lentamente abaixou o braço e, seguindo sua deixa, o tridente começou a fazer seu percurso na direção de Calaher, com os braços abertos.

O tridente sugava tudo por onde passava, notou ela.

Desviou sua atenção para o mago, que sorria freneticamente para o tridente vindo na sua direção. Uma calma a assolou.

– Eu sou descendente de Carelli das Ostras-mil; sou filha de Ostras-mil VI. Eu sou Arjuani do Clã Verband.

Calaher gargalhou feito um louco quando o tridente estava perto e queimava sua pele.

Sentiu o ar faltar e fora empalado, não restando nada num raio de 20 metros. Não sobrou nada além de uma grande cratera. 



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