Volume 1

Capítulo 6: OS CUROH'TELUYA

Kai balançava pra lá e pra cá em cima de alguma coisa macia, peluda e fedorenta.

Sua cabeça zunia e seu rosto latejava, como se tivesse sido picado por várias dezenas de abelhas.

Não apenas isso, enquanto lutava para permanecer acordado, um grito sufocado lhe saiu ao ver que estava muito, muito acima do solo.

Pendia para lá e para cá, sua visão periférica checando os arredores e uma tremedeira constante. Nunca foi muito fã de altura. Estava, pelo menos, no topo de uma enorme árvore, a vários metros acima de copas esverdeadas que iam ficando mais e mais distantes. Fechou os olhos por um segundo e sua consciência se esvaiu outra vez.

Acordou quando todos os seus ossos gritaram e seu rosto latejou tanto que achou que alguém estivesse lhe dando socos. Olhou ao redor e uma náusea lhe abateu. Todos os seus pertences foram levados: sua comida, roupas, espada e cerveja. Que droga.

Estava preso à uma gaiola enorme com o teto alto. Pendurado à uma sequência de cipós amarrados à um galho enorme e grosso – como bem percebeu ao botar a cabeça por entre as grades. Outras gaiolas balançavam com o vento uivante e soturno. Uma chuva densa adentrava pelas brechas da gaiola.   

Ele arriscou outra olhada por entre as grades e bile subiu sua garganta. Depois de vomitar, tentou se acalmar. Estava, como viu antes, muito acima do solo. Mas era muito mesmo. Era tão alto que conseguia ver o oceano que banhava a floresta de Bulogg e uma longa área de verde pros outros lados.

– Tudo bem aí, colega?

Kai se virou rapidamente, à procura da voz. Será que estava ficando maluco?

– Relaxa, carinha, tô aqui.

Ele olhou de novo para uma gaiola ao lado da sua e viu: um ser de dois metros – no mínimo – e a cara animalesca. Onde devia estar seu rosto, havia uma cara de gato, ou onça. Seu pelo era branco e espesso. Usava uma roupa muito diferente daquela que Kai estava acostumado a ver, no entanto. Nunca vira nada igual. E ainda mais: usava um conjunto de joias nos braços e orelhas, que, notando melhor, faltavam pedaços consideráveis na esquerda.

Ele tinha írises azuis que preenchiam todo seu olho; só caia bem num felino, pensou Kai.

Entre as patas grandes e felpudas, descansava um charuto. Kai franziu o cenho. Como alguém poderia estar fumando numa hora dessas?

– O que? – indagou o estranho. – Nunca viu alguém como eu?

Kai negou.

– Bom, nem eu – abriu uma gargalhada e se engasgou com a fumaça do charuto. – É uma maldição, entende, amiguinho? Por isso essa cara de bicho perdido.

– Que tipo de maldição faria isso? Sempre pensei que maldições seriam mais...

– Cruéis? – ele limpou o nariz numa lambida muito habitual para gatos; Kai achou nojento. – Bom, temo ao dizer que topei com um feiticeiro com humor ácido. Zarastura é cheia de cretinos assim.

– Z-zarastura? Você é de...

– Sim – ele cortou a frase de Kai outra vez. – Vim de Cardos. Mais especificamente da cidade-estado de Cardos. Uma regiãozinha montanhosa ao sul de lá. Sabe, pessoalzinho muito arrogante, os de Zarastura. Já deve ter ouvido falar de lá, não?

Kai assentiu. Ouvira mesmo, mas nunca achou necessário saber mais do que o nome de algumas figuras de outros países uma vez que nunca tomaria o caminho político. Zarastura era uma cidade-estado que se emancipou do resto de Cardos, que ficava ao oeste de Algüros. Cardos era conhecida por ter várias regiões assim, mas que mudou com a troca de suserano. Ao que parece, Zarastura continuava do mesmo jeito.

– Bom, foi assim – ele continuou a falar, ignorando o rapaz. – Lá estava eu, andando com meus amigos bem intencionados quando bati o olho numa cigana. Sabe, muitos dizem que elas veem o futuro, cara. Então fui até ela, queria saber se iria me casar algum dia. Ela então disse que um futuro bem peludo me aguardava... dá pra acreditar? Então a cretina queria que eu pagasse mil moedas de prata, isso dá... 50 moedas de ouro. Um absurdo, a maior sacanagem. Daí, quando me recusei a pagar, ela fez isso – ele fez círculos ao redor do rosto, incrédulo demais. 

Kai piscou. Aquilo soou como uma grande idiotice. Mas teve de concordar: mil moedas de prata era um valor alto demais para uma simples “leitura de mão”.

– Ah, me desculpe. E você, como terminou... hum... assim?

Ele repetiu o gesto círcular no rosto e apontou para Kai.

O rapaz franziu o rosto e o outro pareceu entender.

– Ah! – exclamou. – Entendo a confusão... só um segundo... um pouquinho mais... aqui! – gritou enquanto puxava um espelho de seu bolsinho e mostrava para Kai. Quando este bateu o olho no pequeno objeto, bile subiu de novo pela garganta.

Ele suprimiu o desejo de vomitar e se escorou nas grades, nauseado demais para continuar. Seu rosto estava roxo, num tom doentio. O queixo estava tão inchado e torto que ele ficou incrédulo por conseguir falar. Abaixo dos olhos, havia uma cor estranha entre roxo, verde e amarelo.

Então, depois de longos minutos, respirou fundo e contou ao companheiro de cela o que aconteceu. Não tudo, obviamente, somente a parte em que saiu da barreira.

– Ah... – ele riu. – Você é corajoso, mas é maluco. Quem em plena consciência iria para além das barreiras na floresta de Bulogg? E ainda por vontade própria. Sabe, em Zarastura isso só é feito por meio de punição. O pessoal lá é bem casca-grossa. Cara... eu quase ia me esquecendo – ele esticou a mão peluda para fora e, depois de perceber que as gaiolas estavam muito distantes, recuou o braço, constrangido. – Me chamo Hivchatt. Qual seu nome?

– Kai.

– Bom, Kai, como ia dizendo: a cretina me falou que só podia fazer voltar ao meu rosto habitual se eu pegasse uma liteira que estava enterrada na sétima árvore à direita no estreito de Bulogg, além do território público. Eu sei o que isso parece, sei sim... acho que ela quis me dar uma dupla punição. Bom, nunca saberei, acho que vamos morrer aqui. – E deu outra gargalhada.

Nauseado demais para rir, Kai só se ateve à uma pergunta:

– Que são essas coisas? Onde estamos?

– Sei tanto quanto você, amiguinho. Cheguei faz uns... bom, uns 15 dias, acho. Tinha mais... não sei como posso chamar aquelas coisas... bom, estavam presos também. A única coisa que achei mais normal quando cheguei aqui foi uma mocinha de pele roxa clara. Mas ainda era estranha. Selvagem, entende?

Kai suprimiu a vontade de recorrer a ironia. Sujo falando do mal lavado, pensou.

– Que aconteceu com eles?

– Foram levados, cara. Na primeira noite levaram a criatura com... como era mesmo? Bom, ele fazia sons estranhos, tipo um pio de pássaro, mas não parecia com um pássaro, parecia mais com... você já viu um Psychrolutes marcidus?

Kai negou, aquela conversa estava começando a ficar estranha demais...

– Droga... É um... um... UM PEIXE-BOLHA – gritou, sorrindo. Deu uma gargalhada. – Isso, isso mesmo... hahaha. Um peixe-bolha, amiguinho, é o que ele parecia. Todo mole, sabe, a boca inchada e o nariz capenga... Esqueci de perguntar, de onde você vem?

– Algüros – respondeu, querendo evitar ao máximo dar informações; começava a se arrepender de dar corda pra um gardenal.

– Ah... – suspirou. – Bom, isso nos faz amigos ou inimigos? Bom, tanto faz, estamos presos mesmo. Acho que se trombasse com você teria de te matar.

Um olhar cautelo passou pelo rosto do homem-gato/tigre/onça. Em segundos, voltou à feição descontraída.

Uma quantidade de tempo consideravelmente grande passou e Kai já estava totalmente arrependido por ter tomado aquela rota. Primeiro porque estava bem ferido e as criaturas que o prenderam sequer deram sinal de vida. Segundo porque seu colega era um tagarela. Falava pelos cotovelos, até mais do que Ardara e Gunter quando estavam juntos. Ele teve de se afastar, mas isso não pareceu ser problema para Hivchatt, que continuou a falar e falar.

Somente quando – e apenas aí – uma penca de comidas foi jogada em sua gaiola, o homem-gato parou de falar. Tinha frutas e carnes com cheiro bom demais. Ele caiu de boca sem pestanejar. Lançou um olhar de relance para Kai e ficou de costas para ele, escondendo sua refeição.

– Eu aconselho a comer a sua e tirar os olhos da minha, amiguinho – disse, entalado. – Vai remar muito pra ganhar o mesmo que eu.  

Kai franziu a testa e olhou para comida que foi jogada aos seus pés, na vã esperança de encontrar quem sabe cerveja e uma boa carne. Bile subiu sua garganta e dessa vez não conseguiu se conter. A cabeça de um enorme rato do tamanho de um gato jazia no chão da gaiola. O pelo cinza e sujo fedia. A boca estava aberta e a língua para fora. Kai conseguiu ver parte do osso para fora do pescoço, moscas começando a se acumular.

Ele varreu o olhar pela gaiola e viu que mais e mais partes de ratos enormes compunham aquele chão imundo. Apenas agora notou que só a carcaça daquelas criaturas estavam aqui. Vomitou mais um pouco.

Quando caçava, nunca pegava esse tipo de roedor, sempre haviam coelhos e outras espécies de bichos. Ratos eram a origem da sujeira, nunca passou por sua cabeça comê-los. No entanto, agora viu isso como a única forma de sobreviver. Mas não comeu, preferiu passar fome. Se comesse agora, estaria só adiantando sua morte; qualquer doença que aquela criatura tivesse, ele iria adquirir ao primeiro toque.

No primeiro dia, quando a cabeça da criatura entrou em decomposição, a dor de Kai diminuiu um pouco. No segundo dia, quando vermes começavam a rastejar de dentro para fora daquilo e começava a feder, Kai se levantou e deu-lhe um chute, a cabeça caindo pelas grades. Sua perna machucada urrou de dor.

No terceiro dia, Hivchatt continuou a receber mimos deliciosos. No fim do sétimo dia, ganhou um abono: pencas de maçãs, bananas, laranjas azuis, mamões e melancias. Frutas tão típicas que Kai se surpreendeu ao ver que existia ali, em abundância.

Hivchatt gargalhou com sua sorte e, com um ar de arrogância, passou duas horas falando sobre como avisara a Kai para comer o rato lá no início.

Mas ele tinha a sensação de que, caso fizesse isso, estaria assinando sua sentença. Qualquer que fosse a intenção daquelas criaturas, não era boa. Em parte, porque continuavam a jogar comidas do alto e nunca apareciam. Somente seu ávido colega tagarela se sentiu feliz com aquela enxurrada de “comida”.

Depois de quase três semanas, Kai emagrecera ao passo que Hivchatt engordara. Uma cabeleira espessa cresceu no rapaz. Seu único suprimento era a água da chuva que o mantinha hidratado. Agora que ela se fora e o sol resolveu aparecer, ele não considerou que deveria continuar usando aquelas roupas calorentas.

Sua bochecha encovada e cinzenta rebatia a luz do sol; sua boca quebradiça e seca estava entreaberta, enquanto que sua cabeça pendurada entre duas grades, esperava a vinda de água. Nada.

Foi somente numa noite muito fria que ele conseguiu captar algo. Um rebuliço começou a soar ao lado de sua gaiola. Abriu os olhos e ficou atento.

A de Hivchatt começou a balançar e então tocou algo, como se pousasse o solo.

– Ei – ele bradou – Que é que vocês querem comigo? Vão me dar mais comida é? Tá vendo garoto? Vão me soltar, hahaha. Deveria ter sido bonzinho também, vai morrer agora.

Kai correu para a extremidade da grade para acompanhar o homem ser levado por criaturas altas, de ombros largos. Mas não conseguiu ver nada além disso: estava escuro. Então foi quando sua própria gaiola balançou, ele se agarrando às grades para não cair.

Finalmente pousou no que pareceu ser o mesmo solo e, com uma zoada de grade se abrindo, Kai viu duas mãos negras e peludas depositarem uma pessoa dentro que gritava muito. Quando a gaiola tornou a balançar sob a corda de cipó, o coração de Kai tão acelerado pelo medo de que ela pudesse se partir; ele se sentou, juntou os joelhos no peito e os agarrou.

Ficou encarando a figura que continuava sob a sombra da árvore. Ela bradava numa língua distinta da qual Kai desconhecia. Ainda estava muito escuro para que pudesse ver, mas pelo som da voz e das curvas da sombra, ele deduziu que fosse uma mulher.

Ela estava nervosa quando finalmente se sentou e bufou. Começou a balbuciar algo, que pouco a pouco ia ficando claro para a língua de Kai. O som da floresta foi se acalmando, a gaiola parando de gemer. Ele apurou um pouco os ouvidos, não negando a falta que mana lhe fazia nesses momentos. Depois de quase uma hora escutando aquilo que agora parecia muito um cântico, Kai se apertou mais sobre o joelho.

Ela dizia:

Malditos Curoh’tuleya, vamos execrar todos vocês.

Isso se repetiu por horas a fio.



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