Volume 1

Capítulo 8: PODEMOS SONHAR

Durante os dias que se sucederam, a companheira de cela rabugenta de Kai foi ficando mais mansa, mas, em contraparte, mais impaciente.

Por vezes gritava a plenos pulmões, lançando aquilo que Kai imaginou serem os piores jargões de sua língua natal.

O agrião se mostrou realmente eficaz. Foi efetivo com o problema dos ossos: uma sensação de junção se fez ao longo dos braços e pernas. O rosto, no entanto, não obteve tanta melhora; Kai tinha receio de tocá-lo e descobrir que estava uma caca. A moça fez questão de deixar claro que estava legal.

No momento conversavam a respeito de uma possível fuga. Kai já nem tinha mais certeza de quanto tempo estava ali; tudo era um pesadelo.

– Tenho quase certeza de que quando meus amigos notarem que sumi, virão atrás de mim. Eles... nós nunca deixamos ninguém para trás.

Tentando não parecer rude como fizera pouco tempo atrás, Kai ficou calado.

Kai se imaginou sendo salvo por seus amigos. Seria demais esperar que Ardara e Gunter adentrassem a floresta de Bulogg em busca de alguém que deixou claro que não queria ninguém atrás da sua bunda.

Inconsciente, o canto de sua boca se levantou.

– O que? – ela piscou várias vezes.

– Pode me falar sobre seu povo? – ele desconversou e se afastou um pouco.

Ela o encarou por alguns minutos. Levantou e andou. Quando Kai pensou que não obteria uma resposta, ela se voltou para ele.

– Os Curoh’tuleya não são o único povo inteligente aqui nessa floresta. Existem os muta’hebog, os tessaya, os mudanti... Meu povo é um dos mais antigos daqui. Somos os vitanti de muitas cores. Não posso dizer muito sobre o local que moramos, somente Bulogg, nosso deus vivo permite que outras pessoas de fora tenham conhecimento acerca disso. Mas te garanto que é... que é lindo.

Havia certa graça em sua fala, como se estivesse a se referir sobre um mundo à parte.

– Então Bulogg...

– Sim, é o deus da floresta. Ele vive e nos protege, nos conecta. Mas os Curoh’tuleya...

Kai notou o pesar em sua voz, imaginando que ela quisesse deixar esse assunto para lá.

– São maus... – continuou. – estamos em contenda com eles há séculos. Todas as raças, inteligentes ou não, digo. Os vitanti são os que mais doam e mais perdem nesta luta. Contudo, também temos levado muitos deles.

Era tudo muito absorto para Kai. Vivia há alguns poucos quilômetros desse lugar, mas nunca estivera tão longe. Foi como pensou quando ela citou sua casa natal: a floresta de Bulogg era um caso à parte. Eles tinham suas próprias guerras para lutar, seus próprios planos. Era incrível que soubessem, no mundo lá fora, tão pouco sobre uma “nação” que parecia ser tão grande.

E esta nação sobrevivia ali: no território dos humanos, onde diziam que somente o homem podia fazer morada. Onde os gananciosos e arrogantes homens e mulheres levantavam muralhas e erguiam tropas, para afastar as outras raças. Se sentiu um pouco enojado. A história nunca mentiu.

– Quando estive na arena... – Kai falou e ela ergueu o olhar para ele. – o gorila branco...

– Pele-pétrea – ela disse.

– Isso. – Respirou fundo. – Pele-pétrea disse o seguinte: Até mesmo aquela tribo de pele roxa sente repulsa pelo seu sangue de origem... que ele... – Kai ergueu o rosto, tomando cuidado com o que ia dizer. Começava a se amigar para o lado da moça, não queria parecer enxerido. Ela continuou olhando, suavemente – ... que ele quis dizer com isso?

Como da outra vez, ela se levantou, se afastou e começou a andar, como se estivesse formando palavras. Parou um segundo e se virou.

– Não tenho permissão de contar os dias negros do ser humano... como posso lhe chamar? – indagou, seu rosto ruborizando um pouco.

– Hã... sou Kai – ficou tentado a perguntar o dela, mas não queria lhe tirar do raciocínio.

Kai...é um belo nome. Que significa?

Ele piscou. No fim, ela mesma se interrompeu.

– Significa oceano.

– Ah! – Ela voltou a andar e se virou. – Como ia dizendo, não posso contar sobre os dias negros do ser humano. É algo que remete à própria criação dos clãs vitanti. O próprio Bulogg tem parte nisso. Se tiver de saber, saberá.

E ficou frustrado. Não obteve nenhuma resposta, no fim. Ela rodeou, rodeou e... nada. Mas ficou tentado a saber mais sobre o seu próprio povo. O povo vitanti. Será que todos tinham a mesma cor de pele e de olhos? Será que todos eram tão bonitos quanto ela?

Seu pensamento se voltou para alguém que não pensava há muito.

O cair da noite chegou e ele sentou na borda da gaiola, pernas e braços para fora das grades. O vento açoitava a pele nua de suas pernas, cheias de hematomas. Nenhuma cicatriz aparente, exceto a da mão direita.

Ele a fechou e abriu, a tremedeira já tinha se dissipado. Então fechou os olhos sob as brilhantes estrelas. Ouviu quando sua nova amiga foi se deitar e parou para pensar no termo que adotou para ela. Então era uma amiga.

E sua mente voou de novo para uma pessoa que não pensava há tanto tempo. Fazia um ano que não a via, a Ardara Murphy. Será que ainda tinha os cabelos longos e volumosos, ou ela cortou como tantas vezes ameaçou fazer?

Será que seu sorriso ainda era tão brilhante quanto se lembrava? E seus olhos, aquele verde-oliva vivo... seu pensamento foi quebrado quando o piar alto de uma coruja soou.

Ele ficou olhando o céu, esperando que o bicho passasse. Então outro piar soou e, junto dele, uma explosão.

CABUMMMM!

Sua gaiola balançou e a sua nova amiga acordou junto. Ela pôs-se rapidamente de pé e correu até seu lado, fitando o vazio escuro.

– Que aconteceu? – indagou.

– Não sei... do nada houve uma explosão...

– Explosão? – seus olhos se encontraram, os dela muito brilhosos. – Teve algum aviso antes?

Kai ficou confuso.

– Aviso? Como assim?

– Algum sinal. Algo que pareceu incomum.

Ele de repente ligou um mais dois.

– Duas corujas piaram... – a testa franzida vendo a amiga se levantar e correr até o outro lado da gaiola. – Por que, o que isso quer dizer?

Ela se virou e ele viu seu largo sorriso.

– Não são corujas – disse num ar engraçado. – São eles. Estão aqui.

– Eles? Quem está aqui?

– São meus irmãos. São os vitanti.

Entrementes, ouviu-se o som de três gaiolas pousarem na passagem do galho e gritos em seguida. Dali a pouco, a gaiola deles balançou mais uma vez e pousou num baque surdo.

Kai ficou esperando a zoada da portinhola e a mão negra daqueles macacos aparecer. Não aconteceu.

Dois homens apareceram em vez disso. Ambos seguravam tochas e Kai fitou seus rostos: o da esquerda usava um coque negro acima da cabeça, um arco atravessado na parte baixa do nariz, que ficava perto da boca. Ele tinha uma pele roxo escura e estava todo pintado com os mesmos sinais que a amiga de Kai.

O outro tinha uma pele mais diferente... era laranja. Seu cabelo era raspado e os desenhos em seu corpo eram diferentes, como se realmente estivessem gravados em sua pele. Ele era robusto e seu rosto não tinha nenhum apetrecho.

Ambos sorriram e abraçaram a menina, compelidos num misto de emoções. Eles começaram a conversar em sua língua, enquanto Kai espiava por cima deles de vez em quando, querendo ver o que acontecia.

De repente, ela apontou para ele e a expressão dos outros dois esfriou. O primeiro que usava coque negou com a cabeça e gritou e, o segundo, a segurou pelo braço firmemente, tentando puxá-la para fora. Ela ergueu o queixo e o encarou. Kai nunca viu tamanha firmeza e coragem antes. Exceto nos nobres de Neve Sempiterna.

Num impulso, ele foi até o outro lado e tentou empurrar o musculoso para trás, mana saltando como as últimas gotas de um coco há muito esvaziado.

Sentiu o rebote e, mesmo assim, permaneceu parado, os braços latejando. Que tipo de força era aquela?

Ela olhou para Kai e franziu a sobrancelha, como se aquilo tivesse sido muito estúpido.

– Como todos os outros – disse o careca, afrouxando o toque na garota. – Arrogante e prepotente. O que acha que pode fazê-lo me enfrentar, Curoh’nekedoh?

Ele é diferente disse a moça, mantendo o olhar frio.

– Então será sua obrigação se algo der errado, entendeu? – disse o outro, mais próximo que antes. Kai viu que seus olhos eram da mesma cor de âmbar que os dela. – Entendeu?

Ela assentiu, pressurosa. Então os três começaram a correr e Kai ficou ali parado enquanto observava.

Ficou olhando a enorme ponte feita de galhos a frente. O céu estava muito escuro, o impossibilitando de tentar enxergar qualquer coisa.

A moça parou de repente e se virou, o rosto sério.
 
– Venha. Vamos embora desse lugar.

Assentindo, Kai tomou impulso e saiu correndo.

Enquanto corria pela ponte de galhos entrelaçados, olhou para baixo e ouviu gritos de guerra. Sons de coisas explodindo e gorilas gritando de cima a baixo.

Vez ou outra ouvia o ar rasgando abaixo das pontes suspensas, como se pássaros enormes estivessem sobrevoando o lugar.

Rapidamente chegou no centro onde um monte de galhos formavam vários caminhos indo direto para casulos bem montados por árvores. As estradas eram emaranhadas de grossos galhos que se cruzavam a todo momento. Em cima e em baixo, tudo se conectava. Virou uma esquina e depois outra.

Uma criatura extremamente grande passou voando com alguém montado nela. Aquele que montava atirou algo e assim que tocou nos galhos, explodiu.

Saiu gritando:

ILALALAYEEEEE

Kai continuou correndo, evitando ser atingido por o que quer que fosse isso. A garota continuava muito a frente, os outros dois guiando muito bem.

Num determinado momento, chegaram à enorme arena, onde havia um escarcéu. Criaturas aladas com vitanti pilotando rodeavam o céu, atirando enormes flechas.

Mais vitanti enfrentavam os gorilas com uma força sobrenatural. O uso de manti deles era impecável.

Um vitanti deu um passo e, de repente, passou zunindo ao lado de um gorila, enquanto brandia uma enorme espada dentada. Quando pousou do outro lado, o tronco do bicho despencou. O vitanti bradou o mesmo grito de guerra.

Aquele careca que libertou Kai e a garota, pulou de onde estava e caiu com maestria no meio da arena.

Desviou do soco de um enorme gorila, deixando o braço aberto. Os dois braços se engancharam e ele foi erguido para trás; levantou o joelho e acertou bem na têmpora do bicho.

O contato do golpe verberou um estrondo, fazendo gavinhas incolores saltarem.

O primata caiu com um baque surdo. Só então Kai percebeu que este era o mesmo que o abatera na luta da arena... o filho de Pele-pétrea.

O vitanti careca subiu no tronco de Dedos-de-mel e urrou, dando outro soco e mais outro, até que a cabeça deste estava afundada junto dos outros crânios, gotejando sangue.

Os vitanti avançavam com maestria contra os primatas; uma magia etérea flutuava aqui e ali. De vez em quando Kai percebia a energia incolor rodeando o corpo dos guerreiros.

Quando socavam e se mexiam, por exemplo, essa energia entrava em abundância. Energias transparentes cruzavam a arena e atingiam bem em cheio seus alvos peludos, que caiam sem vida, encarando o céu aluado.

Os vitanti eram verdadeiros mestres no manejo, portando bravura, decência e brutalidade com suas espadas longas de dois fios, cujas pontas finas e afiadas riscavam os peitos dos primatas e arrancavam gotas de sangue, rasgando a pele grossa e impenetrável destes.

E tal eram graciosos na espada quanto eram em suas artes marciais. Sendo flexíveis, moviam-se em unidade, muito ordenados. Davam piruetas e chutavam como se estivessem completando passos de dança.

Entrementes, Pele-pétrea observava tudo boquiaberto, em desalinho com o que acontecia.

Um vitanti no céu gritou algo, então o careca, que ainda estava em cima de Dedos-de-caju, urrou e correu até a beira da arena, seguido pela hoste vitanti. Eram, no mínimo, uns 120. E foram o suficiente, no entanto.

– Púrpuros, vamos. – Gritou; ele olhou para trás, em busca de algo ou alguém, até que seu olhar pousou em Kai. Eles se fitaram durante alguns segundos; em seguida, o olhar do vitanti caiu sobre a garota, que estava um pouco a frente de Kai. – Fioled.

Ela o olhou por um instante e, a seguir, olhou para Kai. Trocaram olhares por alguns minutos até que ela esticou a mão e abriu um sorriso, os dentes perfeitamente brancos e alinhados, os caninos aparecendo.

– Vamos.

Kai agarrou sua mão e saíram correndo em direção aos outros. Eles pularam no abismo e Fioled fez o mesmo. Kai praguejou em todas as línguas possíveis. Mas, um pouco abaixo, uma enorme ave pairava com cinco vitanti esperando. Eles pousaram; o rapaz soltou um urro de dor.

Então a ave voou em direção à lua, seguindo as outras aves. O vitanti laranja olhou de volta para a enorme sequoia e deu um berro. Uma série de explosões se sucederam, afundando a enorme árvore em fumaça, fogo e desgraça. 

A última coisa que Kai viu foi o rosto incrédulo de Pele-pétrea, incapaz de ter qualquer reação. 



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