Volume 2

Capítulo 98: KAMI DO VENTO

 

Nada do que Kai fez diminuiu o ímpeto da vil criatura. Na verdade, a cada vez que ele desviava de um tentáculo maldito e tentava inferir um pesado golpe, a criatura ficava mais e mais irritada, aumentando o próprio ritmo duas vezes mais.

Kai era incapaz de aceitar o que estava acontecendo por uma série de motivos. O maior de todos era simplesmente a inércia. Não tinha como uma criatura tão pesada e grande ser rápida o bastante para desviar de golpes precisos e, no mesmo instante, golpear com seus chicotes negros e vis.

Sem contar que ela flutuava vez ou outra sempre que via que estava correndo perigo concreto, o que não acontecia muito facilmente. A batalha escalonava lenta e cansativamente, e a favor da criatura.

As outras criaturas aladas ainda estavam distantes, o que só influenciava na explicação de que eram tremendamente inferiores a esta que em questão de segundos cobriu todo o espaço da fenda que agora se alargava por vários metros.

Desviando de um golpe pesado e lutando para que sua energia não se esvaísse tão facilmente, Kai respirou fundo e tornou a encarar a criatura.

Não havia uma simples abertura… a criatura era pesada, enorme, forte e amedrontadora. Não fosse a adrenalina pulsando em suas veias, Kai seria sobrepujado pela intenção assassina da criatura. 

Outrossim, a criatura parecia querer acabar com esta luta o quanto antes. Kai percebeu ansiedade e agonia em muitos golpes dela, o que facilitou em seus desvios. 

A fonte de tal sentimento não estava exposta, contudo. Mas Kai deveria mesmo perder tempo tentando decifrar os sentimentos desse demônio? 

A resposta era não, obviamente. Mesmo assim, ele continuava inquieto.

Como se algo pinicasse no canto de sua visão periférica, Kai se forçou a tirar o olhar por alguns segundos da criatura, observando brevemente a fenda que se alargava cada vez mais. As criaturas pareciam… desesperadas para chegar na borda da fenda o quanto antes. Voavam umas por cima das outras, feito mosquitos querendo escapar do braseiro. Era como se…

É claro… O gosto da compreensão inundou a boca de Kai por segundos prazerosos. Era como se o quebra-cabeça de duas peças finalmente tivessem se juntado. Ele praguejou por ter demorado tanto para perceber, afinal, a perspicácia sempre foi sua maior arma. Deu um voto a si mesmo, no entanto. Estava sendo articulado pela criatura controladora de mentes, e pesadamente conseguiu sair das tortuosas e gélidas amarras que o prendiam num ciclo sem fim.

Talvez fosse o controle desse monstro, ou outras coisas envolvidas que fizeram Kai perder o foco, mas esse segundo foi custoso. Ele achou que finalmente tinha controlado as beiras de sua sanidade, como alguém bêbado que tenta, cansativamente, controlar seu copo e o próprio corpo num centro de gravidade altamente afetado.

Assim estava a mente de Kai. Como um bêbado à beira de uma queda. Numa corda bamba, mantendo nos ombros pesos que desequilibram, flertando com o precipício, a bocarra do abismo incólume e impiedoso.

Sim… a perda do foco foi custosa. A criatura aproveitou o momento de distração e chicoteou com força. Kai sentiu o impacto e foi lançado do outro lado do espaço, caindo de volta à beira da fenda.

Ele se empertigou, tentando acalmar os ânimos. Sua barriga doía. Kai se equilibrou em seus joelhos e se inclinou para frente, cuspindo um jorro de sangue negro.

Sua mente começava a ficar nebulosa, ansiando por seu desmaio. Ele sabia o que isso significava, mas não poderia perder a consciência. Não assim. Só os deuses sabem o que poderia acontecer.

Seu chi falhou ao notar a presença sublime que se sobrepôs a ele. Havia, afinal, gasto as últimas gotas de energia para receber o maior dano do golpe da pesada criatura, e isso resultou no fim de suas reservas.

Era a primeira vez que isso acontecia desde que ele aprendeu a controlar a própria energia. Nunca esteve numa luta em que suas energias se esgotaram taxativamente, até porque ele conseguia o feito de desmaiar e acabar com o inimigo antes mesmo de isso acontecer. Sem contar que seu uso era limitado a pequenas percepções do ambiente e em focar golpes em ataques precisos e únicos.

Havia também a vantagem de que ele conseguia absorver pequenas quantidades de energia do ambiente, o que lhe mantinha sempre com um fluxo constante de energia fluindo por seus canais e Tanden.

Agora, no entanto, a energia ambiente se recusava a se mesclar com a sua própria, e ele esgotara toda sua energia nos últimos dias, varrendo uma área consideravelmente maior do que a de quando esteve no plano superior. Seu controle minucioso também aumentou… por isso esse embate deveria ser rapidamente resolvido, pois ele ainda teria de escapar da horda alada que se precipitava.

E Kai nem queria pensar sobre a enorme mão que surgiu do nada. A despeito do fato de que era melhor ser fatiado por inúmeras agulhas do que ser esmagado por esse ser ou até mesmo pisoteado por essas criaturas monstrengas… Kai enfiou cada pensamento suicida e de humor duvidoso num baú bem fundo e fechado a sete trancas. Seu senso estava ridículo ultimamente.

Mas o que ele poderia fazer…? A criatura se mostrou muito mais forte do que ele, e isso era um problema. Kai enfrentara criaturas perigosas neste plano… mas nenhuma era como essa. Vil, poderosa, veloz… foi um massacre.

Ele estava tranquilo, contudo. Sua mente costumava ficar em repouso em momentos como esse. Era como se tivesse num enorme campo cheio de flores brancas, o som do mar ribombando na costa… tranquilidade.

Kai apertou os olhos e observou a densa massa acima dele, as asas batendo num borrão indistinto. O instinto gritava para reagir, e sua mão apertou bem o cabo de Tirise numa ação incontrolável.

Tudo aconteceu num piscar de olhos. A bolsa de carne na cintura dele brilhou, iluminando a criatura acima. Essa luz se transformou numa névoa densa e azul, e envolveu Kai como se tivesse vida.

Kai se sentiu renovado, como se tivesse dormido por muitos dias e o cansaço tivesse ido embora.

A névoa entrou por sua narina, boca, ouvidos. Se instalou por trás de suas pálpebras, deixando-o levemente etéreo. Mas isso deu um alavancar em suas percepções.

Tudo se movia lentamente, de repente seus nervos inebriados por uma adrenalina incontrolável. Kai sorriu, ciente da circunstância sempre a seu favor. Que ironia.

Era como se uma energia nova e tentadora se apossasse de seu corpo, sendo mesclada com uma energia recente e nova, e… com uma antiga, dominadora, efervescente. Todas essas energias pulsavam no corpo de Kai, fervilhando em mil e uma possibilidades…

Tirise assobiou e o vento foi cortado. O som do ar foi rompido, e um baque pesado surgiu, levantando uma chuva de poeira e areia.

A criatura rolou pela areia, sangue jorrando de um toco em suas costas. As asas haviam sido cortadas num golpe rápido e tentador. Kai pousou a meia distância, numa mão Tirise, na outra as asas feito folhas enormes, ainda batendo, mas numa velocidade moderada.

Os olhos de Kai brilhavam num intenso azul, e seu corpo liberava uma energia incomum, verde-arroxeada e etérea. Tirise zumbia. O ar ao seu redor pulsava em pequenas quantias de vibração. Ondas de energia.

Kai sorriu, o corpo cheio de sangue escuro e vil. Ele apertou bem o cabo de Tirise, segurando-a com as duas mãos agora.

O monstro se ergueu lentamente, muito mais nervoso do que antes. Se virando para o outro lado, ensaiou uma fuga, mas Kai não permitiu.

Cobrindo o espaço num piscar de olhos, se aproximou da criatura, e uma luta densa se iniciou.

Areia era erguida e o baque era levado para longe pelo ar. A criatura guinchava, a espada de Kai sibilava. Ambos os dois, monstros de sua espécie, iniciaram uma batalha árdua, feia e cheia de sangue. Kai sorria a cada golpe que recebia, um mais pesado e mortal que o outro. Mas era a criatura que recebia todo o dano, inundando o círculo em que dançavam de sangue e horror.

Kai estava banhado de sangue, aparando um golpe no outro, tão focado e entusiasmado quanto poderia. Adrenalina e energia corriam soltas por suas veias, prontas para explodir em milhões de fragmentos.

Ele era como um lindo dançarino, tomando as rédeas dos passos. Antes, ele foi levado ao limite e facilmente dominado, mas agora era diferente. Kai conseguia saber o próximo passo do monstro, e até mesmo forçar o monstro a agir como ele queria.

Kai Stone sempre foi alguém perspicaz e que comandava as lutas em que se metia. Quando parecia estar em desvantagem, era aí que surgia sua notória capacidade de sair de uma situação ruim. E agora, era tão fácil que nem parecia que tinha ficado em apuros.

Ele sorria e gargalhava, inferindo um golpe atrás do outro. E a criatura parecia a ponto de enlouquecer, prestes a dar as costas e fugir dali. Kai queria isso.

Stone já tinha decepado dois tentáculos, uma perna, e abrindo um rombo na casca da criatura. Coisa que não parecia possível minutos atrás. Mas algo mudara, como sempre.

Kai parecia ser acometido por momentos de reflexão intensos e de entendimento do cosmo, assim sendo capaz de enxergar sua capacidade inata. Nestes momentos, ele conseguia entrar num fluxo de concentração aprimorado, e agir no ápice de sua acuidade mental. Adicione isso às reservas renovadas… era como se Kai nem tivesse lutado.

E também havia sua capacidade de pensar a longa distância. Mesmo que ele não tivesse infligido muito dano anteriormente, Kai sabia que em algum momento a criatura tentaria fugir ou ficaria cansada.

Kai preparou o terreno para este momento, focando em lugares pouco acessíveis e, consequentemente, sensíveis.

Ele só conseguiu a proeza de abrir a carapaça da criatura após longos golpes revestidos de energia. Isso também fez com que sua energia se esgotasse mais rapidamente. Mas valeu a pena.

Quando a criatura se virou para fugir, ela fez exatamente o que Kai esperava. Isso abriu um leque de possibilidades. Era bem difícil que Kai ficasse nas costas da criatura, isso só aconteceu quando suas asas foram arrancadas.

E era ali que se encontrava a maior parte de sua fragilidade. Kai respirou fundo e abriu a palma da mão. Um orbe de energia elíptica se formou rapidamente tomando forma e proporção. Em segundos estava do tamanho de seu antebraço.

Kai se preparou e jogou o orbe, que girou, parecendo um disco, na direção da criatura. Como se sentisse o ataque iminente, ela se virou e chicoteou o orbe. O orbe se espatifou em inúmeras gotículas de energia, e esvaiu. Contudo, Kai não estava onde deveria.

Ele apareceu acima da criatura e apertou bem o cabo de Tirise. Ele cerrou os dentes e moveu a espada, pronunciando num tom indistinto:

Kama’i: Mil foices.

O ar ondulou e ondas de vibração permearam a área, chegando a enormes distâncias. Tirise sibilou novamente, como se ganhasse a vida. Na verdade, era como se o mundo ruísse. A areia era cortada, e o ar era fatiado. Os céus se partiram e o sol branco ondulou, iluminando a criatura que guinchou, chicoteando a si mesma.

O solo começou a rugir em resposta. Um segundo se passou, e um zunido tomou forma. Causava cansaço a quem ouvisse, e o principal afetado era a criatura, que se espatifou e foi cortada em milhares de pedaços de si mesma. O sangue explodiu, e a areia ao redor do monstro evaporou, revelando o solo entrecortado por milhares e milhares de golpes, feito foices.

O céu fechou novamente, mas a área em que a criatura pereceu não perdeu o brilho. Grãos de areia faziam o trabalho de iluminar o local.

Parado no meio de todo aquele rebuliço, Kai respirava pesado, os olhos arregalados. Seu corpo todo ensanguentado, como se chovesse sangue. Parecia que ia soltar Tirise, que ainda sibilava e repelia ondas de vibração…, mas seu aperto se firmou.

Kai ergueu o rosto, assustado. Ele não parecia surpreso consigo mesmo e o golpe devastador que criara a pouco. Isso o fez gastar quase toda sua reserva, mas valeu a pena.

Contudo, seu foco era outro. Na fenda, as criaturas aladas começavam a se matar para tomar o lugar uma da outra, como se assustadas.

E a razão disso não era outra senão uma: a mão enorme começava a avançar, e uma densa e enorme massa geoide com colunas entrecortadas se erguendo de seu topo.

A estrutura geoide se moveu lentamente, e Kai sobressaltou. Ele achava que poderia ser o corpo de uma outra criatura, provavelmente tentando escapar da mão enorme. Ledo engano.

Na verdade, a densa massa geoide era simplesmente a cabeça do gigante, e seus pequenos olhos de brasa ardente fitavam Kai com um furor inebriante.

Apoie a Novel Mania

Chega de anúncios irritantes, agora a Novel Mania será mantida exclusivamente pelos leitores, ou seja, sem anúncios ou assinaturas pagas. Para continuarmos online e sem interrupções, precisamos do seu apoio! Sua contribuição nos ajuda a manter a qualidade e incentivar a equipe a continuar trazendos mais conteúdos.

Novas traduções

Novels originais

Experiência sem anúncios

Doar agora