Volume 1

Prólogo

Essa é a história de Tsuki Ottoe, um jovem-adulto por volta dos 30 anos, considerado por muitos um verdadeiro prodígio.

Ainda jovem conseguiu inúmeros prêmios de empreendedorismo e inovação, apresentando para o mundo a tática de mercado que passaria a ser conhecida como Estratégia Ottoe, que levava o público para dentro das empresas como se todos fizessem parte de uma grande família.

Essa estratégia visava aumentar drasticamente o envolvimento das pessoas com as empresas e consequentemente seus negócios e lucros. Com apenas algumas implantações, tal estratégia foi logo importada pelas grandes corporações e isso fez com que seu nome entrasse na mídia.

E, não só de estratagemas Ottoe fazia sua fama, também era procurado por sua aparência, tal como uma beleza exemplar. Diferente de muitos ídolos japoneses, Ottoe apesar de ter uma beleza quase que feminina, possuía um porte atlético acima da média, e para este propósito, muitas de suas horas da agenda eram ocupadas pela academia e salões de beleza.

Por fora ele era tido como o homem perfeito – para os padrões asiáticos –, porém, muitos não conheciam sua verdadeira personalidade. Tsuki Ottoe era arrogante e orgulhoso. Se a pessoa não era importante, fazia questão de pedir que seus agentes ou secretária o retirasse do local.

No entanto, era comum usar “máscaras” que o permitia ser carismático nas mais diferentes ocasiões. Ottoe poderia se dar bem tanto com diretores quanto faxineiros, mas só o fazia se isso fosse para enaltecer sua imagem ou abrir oportunidades para seus planos e objetivos.

Por causa da sua inteligência, aparência e sociabilidade, sua popularidade apenas aumentou dia após dia. Era em comerciais, era em revistas, era em festividades ou entrevistas, pelo menos um dia na semana ele estava na mídia.

Estava tudo indo bem em direção ao topo dos mais bem-sucedidos da sociedade até que um dia, Ottoe seria obrigado a fazer algo que mudaria sua vida.

Tsuki Ottoe trabalhava como analista sênior de uma empresa de assessoria.

De repente os donos dessa empresa venderam mais da metade das ações para uma outra empresa internacional e por causa dessa decisão, houve uma nova liderança. Portanto, uma grande parte do corpo de funcionários deveriam ser demitidos.

Até mesmo Ottoe tinha sido pego de surpresa com esse anúncio, e para piorar, os ex-líderes acreditavam que bastava ser Ottoe aquele que avisasse sobre a demissão em massa que não haveria problemas algum, pois para eles, “todos gostam do Ottoe”.

E dito e feito. Ottoe não só se tornou o embaixador da reunião de emergência como pessoalmente conversou com cada um que deveria ser retirado da empresa.

Seria apenas mais um dia de trabalho, se dentre os funcionários não tivesse alguns dos seus “amigos”. De todos aqueles conhecidos, Tsubara Ayoki era um de seus “melhores-amigos”, e quando chegou sua vez de receber a notícia, apelou pela amizade de anos para que Ottoe conversasse com os superiores e não o demitisse.

Mesmo Ayoki implorando pela ajuda do seu “amigo”, Ottoe apenas usou das desculpas mais comuns do seu meio. “Me desculpe, só estou seguindo ordens”, “São ordens vindo de cima, você sabe como é”, “Não se preocupe, eles certamente entrarão em contato em seguida” ...

No fim daquela noite, mais de um terço dos funcionários tinham recebido seu aviso de demissão através do Ottoe.

Para todo o dia de trabalho, aquele “demônio” – como passaram a chamá-lo depois disso – não parava de sorrir. Um sorriso genuinamente falso, pois quando não havia ninguém por perto, passava a ter suas expressões inexpressivas como sempre.

De todas as pessoas que Ottoe tinha se relacionado em um passado não tão distante até agora, apenas uma pessoa conhecia esse seu lado ruim. Era uma mulher que inclusive trabalhou com Ottoe até alguns meses atrás. Ela mesma já tinha saído da empresa pelos seus próprios motivos.

Então, por que ele estava pensando nela agora? Pois ela certamente iria brigar com ele pelo que tinha feito e mesmo que isso não o abalasse tanto quanto deveria, ainda sentia uma pequena centelha de culpa.

Amanhã será um novo dia, pensava, e logo se arrumou para voltar para casa.

A empresa estava muito mais vazia após esse evento importuno, mesmo assim, aquele silencio era reconfortante para Ottoe já que algumas horas atrás estava escutando reclamações, choro e desaforo dos seus colegas de trabalho.

Ottoe pegou as chaves do carro e aguardou o elevador chegar.

Quando a porta do elevador se abriu e mostrou a garagem, Ottoe deu alguns passos em direção ao seu carro quando notou seu “amigo” Tsubara Ayoki.

— Ainda não voltou para casa, Ayoki? — perguntou Ottoe enquanto arrumava seu terno e procurava as chaves do carro em seus bolsos.

— Como posso voltar... o que vou dizer para minha mulher? — respondeu com a voz trêmula.

— A verdade. Não é como você conseguisse ficar com esse emprego por mais tempo de qualquer forma. — Ottoe caminhou em direção ao carro, mas, vendo a situação do homem, decidiu parar.

— Quê? Como assim? — retrucou Ayoki.

— Apesar de eu não ter falado isso diretamente para vocês. — Deu uma pausa e arrumou seus cabelos antes de continuar: — Basta ligar os pontos para entender que os funcionários que estiveram abaixo da média com seus resultados foram aqueles marcados para sair.

Ayoki tentou se aproximar de Ottoe enquanto balançava as mãos em forma desesperada, porém, logo parou e começou a se lamentar:

— Mas... eu estava dentro da minha meta... por que eles iriam me demitir?

— Ayoki, Ayoki, você estava... dentro da sua meta mínima.

— Você, Ottoe, não conseguiria falar com eles para revisarem os números? Quero dizer, se você falar com eles tenho a certeza de que eles não iriam me demitir. Eles confiam em você.

— Já te disse antes, Ayoki, só estou seguindo as regras da empresa, além disso, eu não tenho nada a ver com as metas do pessoal que foi embora.

Ayoki estava visivelmente devastado, mas ele se inclinou diante do corrimão da escada que fazia presente e começou a chorar, mas era um choro contido daquele que não gostariam de mostrar para estranhos.

— Ah, qual é, não precisa chorar... — Retirou do seu bolso o ativador do seu carro e fez um sinal para Ayoki. — Você mora próximo do centro, certo? Te dou uma carona.

— Desculpa Ottoe por tê-lo forçado a ver isso. — Mesmo terminando de “chorar”, ainda estava soluçando enquanto limpava seu rosto com o próprio terno.

— Não tem problemas. E... — Ottoe não era de oferecer carona, ainda mais para alguém como Ayoki, por isso, durante um momento ficou pensando se valeria a pena, e continuou: — Vai aceitar minha carona?

— Sim... me desculpe, me desculpe.

Ottoe não o via como “melhor-amigo”, porém, sabia que Ayoki sempre o tratava assim, então o mínimo que ele poderia fazer seria oferecer carona no seu carro de luxo.

Os dois entraram e logo partiram.

O clima estava tão pesado que os dois se mantiveram quietos durante boa parte do trajeto. Ottoe estava exausto por causa do dia, mas ainda conseguia colocar suas máscaras, e assim o fez para que quebrasse aquele gelo de clima.

— A Sra. Tsukasa vai entender, basta você explicar certinho como eu falei durante a reunião.

Houve um silêncio constrangedor até que Ayoki comentou:

— É Tsubara.

— Como é? — perguntou meio sem jeito.

— Você errou meu nome. É Tsubara.

Ah, sim, sim... — Ottoe estava precisando focar mais que o comum na estrada já que aquela noite estava nublado e as luzes quase não iluminavam. — Como eu estava dizendo, basta explicar a situação. Não é como se fosse o fim do mundo, sabe? Você não vai morrer por causa disso.

Ottoe e seu orgulho o cegaram, pois ele não conseguia enxergar o estado de Ayoki e como ele estava tentando se segurar para cada palavra ácida que lançava contra seu “amigo”.

Sorrisos falsos, gestos encenados.

Ayoki estava vendo um lado que nunca tinha visto antes de Ottoe, mas, para ele não tinha dúvida, o verdadeiro Ottoe estava pouco se lixando para o que tinha acontecido naquele dia enquanto o “falso” Ottoe tentava animá-lo daquela maneira tão arrogante. Ottoe continuava:

— Sabe, se quiser, eu posso te emprestar um dinheiro assim você não precisa se desesperar...

— Então você é assim...

— Quê? — indagou Ottoe mais uma vez.

Ayoki retirou de dentro do seu terno uma faca de caça e avançou contra Ottoe, que pego de surpresa e sem conseguir reagir, perdeu o controle do carro.

Ninguém saberia dizer se Ayoki estava esperando o momento certo para fazer tal ataque, ou se os comentários do Ottoe tivessem o levado a tal, porém, como toda a confusão tinha sido feita próximo a subida da ponte, quando Ottoe perdeu o controle, o carro avançou contra a mureta de segurança e caiu no lago de bico.

Aquele carro luxuoso que valeria milhares de milhares de Ienes estava agora afundando no lago como um lixo.

Para todos aqueles que tinham sido demitidos, deveriam estar agradecido pelos atos de um homem desesperado? Afinal, outro “lixo” estava sendo jogado no fundo do lago.

— Mas que merda... argh, eu... levei uma facada? — Ottoe perguntou ainda atordoado. Como tinha batido a cabeça no volante e mesmo com o airbag, acabou se ferindo.

— Por quê? Por quê? Por quê... — Ayoki repetia várias vezes até que apontou para Ottoe e começou a gritar: — Você me obrigou a isso!

— Que merda você está falando? Você... — Olhou para o próprio abdômen coberto de sangue e sentia uma dor imensurável — Você me esfaqueou, seu arrombado!

Ottoe tentou agarrá-lo, mas estava preso e suas pernas, machucadas, não tinham forças para mover-se do lugar. Ele gemeu de dor enquanto observava o vidro do seu carro rachar com a pressão da água.

Novamente Ottoe tentava por sua máscara de bom moço e comentava:

— Olhe, se você me tirar daqui eu finjo que nada disso aconteceu, sem polícia, sem processo...

— Você me obrigou a isso! — gritou outra vez Ayoki.

Ayoki foi até a porta e tentou abri-la de qualquer jeito.

— Espere! Não faça isso — implorava Ottoe.

— Isso não está acontecendo, não está! — repetia Ayoki enquanto tentava abrir a porta do carro ainda mais frenético.

A porta não estava emperrada, mas a pressão da água fazia ainda mais difícil abri-la.

— Espere seu filho da puta, se você fizer isso...

Ayoki conseguiu abrir a porta do carro e logo a água começou a invadir rapidamente.

Ela estava realmente gélida.

Levou apenas alguns segundos para que a água cobrisse quase todo o carro. Ottoe tentava desesperadamente se libertar, mas em vão. Ele observava Ayoki nadar para fora enquanto isso.

Apesar da escuridão da água, ainda era possível ver logo acima as luzes da ponte. Ayoki, mesmo com dificuldades e desesperado, conseguiu sair e nadar para se salvar, mas, não antes de se virar a última vez e pensar: “esse desgraçado, por que ele não morre?”.

Ottoe por outro lado, ferido e com as pernas presas, não podia fazer nada a não ser prender a respiração o máximo que podia. O carro não tinha afundado tanto e se ele conseguisse se libertar, estaria a salvo. Porém, nada disso aconteceu.

A angústia de não conseguir respirar e a escuridão tomou conta do seu ser. Mesmo tendo um porte atlético ou mesmo suas várias horas de academia por semana não lhe garantiram forças nem resistência para escapar daquilo.

O ar dos seus pulmões também se esvaiu. Não dá mais, acabou... É SEU FIM.

Tudo que fiz até agora foi em vão.

Todos os elogios serviram para nada, todas as conquistas e segredos serão levados para o túmulo com essa morte... “Então é aqui que eu morro... que morte patética... E ainda tiveram a audácia de me chamarem de demônio”

É assim que vai ser?

“Sim, o que mais posso fazer?”

Você não quer tentar, outra vez?

“E o que mudaria?”

Que você não precisa mais fingir ser o que não é.

“Não faz diferença alguma se eu estiver morto”

Sim, mas, abra seus olhos e tente outra vez.

Em um momento Ottoe estava em meio ao abismo, cercado pelo nada e o vazio. As sensações e os sentidos não funcionavam, no entanto, ainda conseguia pensar, e era esse pensamento que lhe fazia estar vivo, em algum lugar.

“Onde estou?” Pensava... “O que eu sou?” Perguntava. Aos poucos, e novamente, conseguia ter seu espaço na existência.

“Não consigo sentir meu corpo... estou em pé? Sentado? Flutuando?” Inúmeras perguntas.

Mesmo que não visse nada, seu corpo ganhou um aspecto que lhe deu forma, ao menos no sentido da ideia. A sensação era que tinha ficado menor.

“O que há com meu corpo?”

“Eu... não morri?”

“Aquela voz que ouvi. Ela me mandou abrir os olhos, meus olhos..., mas, como faço?”

“Vamos... abra os olhos Tsuki, abra os olhos!”



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