A Terceira Lua Cheia Brasileira

Autor(a): Giovana Cardoso


Volume 1

Capítulo 14: O Povo das Montanhas

"Em um mundo de magia e mistério, o verdadeiro poder reside na compreensão de quem somos e de onde viemos."

(O Legado Perdido, Haruki Tanaka)

 

5ª Lua Cheia do ano 1647

Lua da Sombra, dia 16

 

 

Há momentos em que o universo nos sussurra sinais de que algo está prestes a acontecer. Aquela sensação estranha, como se estivéssemos dentro de um sonho e um alarme distante soasse, nos preparando para o inevitável. Quando finalmente o momento chega, é como se acordássemos, e tudo se encaixasse, cada peça do quebra-cabeça revelando um propósito.  Desde que acordara, Yuri sentia essa inquietação, mas a ignorara, fingindo que tudo estava normal. Tentando atuar em um papel que não lhe pertencia.

Agora, estavam encurralados. Os enormes guerreiros abriram passagem, e uma mulher se aproximou de Shin, apontando uma lança diretamente para o pescoço dele. Ela era alta, quase da altura de Yuri, e seus braços definidos destacavam-se sob a roupa sem mangas. Todos prenderam a respiração, atentos.

— Ora, ora... parece que alguém se perdeu — disse a mulher, os lábios se curvando num sorriso que misturava desdém e perigo.

Shin inclinou-se levemente para trás, evitando a lâmina. Então, ele sorriu, um brilho desafiador nos olhos.

— Quase conseguiu me assustar dessa vez, Kiku.

Com um suspiro teatral, ela abaixou a lança, e os dois explodiram em uma gargalhada que quebrou a tensão no ar.

“Eles se conhecem?” Yuri pensou, sentindo o suor escorrer pela testa enquanto procurava por uma explicação nos rostos ao redor, mas eles apenas trocavam olhares constrangidos.

— Também estava com saudade, Shin — ela murmurou, com uma familiaridade que fez Yuri se perguntar sobre a profundidade daquela amizade.

— Esta é Kiku Ishikawa, uma... velha amiga — Shin apresentou, hesitando brevemente, como se as palavras carregassem memórias que ele não queria revisitar. Kiku apenas lançou lhe um olhar de advertência, limpando a garganta antes de se dirigir ao grupo:

— Meus homens irão guiá-los pelas montanhas. Preparem-se para caminhar. Precisamos deixar as montarias aqui. — Sua voz era autoritária, carregada de uma segurança que fazia todos entenderem que, nas montanhas, ela era a líder.

O clã Ishikawa, o povo das montanhas, era conhecido por sua resistência e profunda conexão com a terra. Yuri sentiu um nó se formar na garganta enquanto se movia na fila atrás de Kiku. A sensação de inquietude apertava seu peito, transformando-se em um calafrio que parecia lhe roçar a pele. Ele tentou afastar o incômodo, enterrando-o na escuridão de seus pensamentos, mas algo lhe dizia que aquele frio persistente era mais do que o ar das montanhas.

A base das montanhas surgiu no horizonte ao mesmo tempo em que o sol despontava. Yuri olhou para cima, cobrindo os olhos com o antebraço. O pico mal era visível, ainda havia um longo caminho a percorrer. Seguiam em fila pela trilha íngreme entre as rochas, com o vento cortando o ar e queimando suas bochechas.

À frente, os guerreiros Ishikawa marchavam animados, trocando palavras baixas. Shin, logo atrás, integrava-se facilmente, oscilando entre seriedade e despreocupação com uma naturalidade que Yuri admirava, mas que ele mesmo nunca conseguira alcançar. Em silêncio, Yuri avançava atento a tudo ao redor, enquanto Akemi seguia ao seu lado, com os Lobos Divinos fechando a formação.

Enquanto subiam, ele refletia sobre a batalha no Vale Profundo, que havia ocorrido há um mês. Desde então, a rebelião se fortificara, forjando alianças estratégicas. Aquele conflito não fora apenas a primeira vitória sob a liderança de Shin, mas um divisor de águas que atraiu aliados e inimigos influentes. A aliança com o clã Ishikawa, detentores de vastas terras e produtores de alimentos e plantas medicinais, seria um trunfo econômico e militar. Protegidos por muralhas quase impenetráveis, eles prosperaram independentes, com um poder bélico formidável.

Yuri perdeu-se por um momento em pensamentos sobre Akemi. Os registros não mencionavam seu nome. Seu destino permanecia um enigma.

— Você parece mais pensativo que o normal, está preocupado com algo? — Akemi interrompeu seus devaneios, surpreendendo-o.

— Só não estou acostumado com caminhadas tão longas — ele respondeu, inclinando a cabeça para ela numa tentativa de parecer despreocupado.

Ela o observou com uma expressão intrigada, mas respondeu no mesmo tom leve.

— Já estamos nas terras do clã Ishikawa, mas para alcançar a vila, precisaremos atravessar o Abismo Hebi.

Yuri dirigiu um olhar para Akemi, e por um momento, perdeu o fôlego. Os cabelos esvoaçantes que contrastavam com sua beleza delicada. Seus olhos dourados eram o que mais chamavam a atenção, algo se agitou dentro dele quando ela o olhou de volta, e ele desviou o rosto, torcendo para que ela não percebesse.

Caminharam em silêncio até que o grupo à frente começou a parar, reunindo-se em uma sombra.

— O que aconteceu? — Yuri perguntou.

— Pausa para o almoço — Shin respondeu, sentando-se com os Ishikawas, que já desembalavam suprimentos.

O aroma de ervas selvagens misturava-se ao ar fresco da montanha. Raios de sol atravessavam as folhas, criando um jogo de sombras sobre o musgo. Prepararam um guisado com ingredientes locais, e a atmosfera acolhedora criou uma sensação de paz momentânea para Yuri.

— Akemi, você conhece Kiku há muito tempo? Ela parece ter uma boa relação com Shin, não? — Yuri perguntou, tentando decifrar a situação.

— É a primeira vez que a vejo, mas Shin já havia falado sobre ela. Pelo que ele dizia, achei que tinham um passado conturbado. Parece que me enganei. — Akemi desviou o olhar, um traço de desapontamento em seus olhos.

A compreensão atingiu Yuri como um soco no estômago. “Mas é claro! Eu sempre fui lento para perceber esse tipo de coisa, mas agora tudo está claro.”

— Desculpe, talvez eu não devesse ter mencionado isso — ele murmurou, percebendo o desconforto dela.

Antes que Akemi pudesse responder, Kiku ergueu a voz:

— Vamos lá, não pensem que podem relaxar por muito tempo! Ainda temos uma longa jornada pela frente, e o tempo não espera por ninguém!

O grupo recolheu os pertences e retomou a caminhada. Akemi se distanciou com passos rápidos, e dois guerreiros Ishikawa bloquearam a passagem de Yuri quando ele tentou alcançá-la, deixando-o frustrado. Ele se arrependeu do que dissera, temendo que suas palavras tivessem sido mal interpretadas.

— Então, o que você acha? — Shin perguntou de repente.

— Anh, o quê? — Por um momento, Yuri sentiu que Shin pudesse ler seus pensamentos.

— Sobre Kiku. Surpreendente, não acha? — Shin comentou com um sorriso de admiração.

Yuri concordou, observando a presença firme de Kiku à frente do grupo.

— Parece que vocês têm uma história interessante juntos — insinuou, provocando um sorriso enigmático em Shin.

— Mais do que você imagina. — Ele respondeu, afastando-se um pouco para falar com Haruka, Ryota e Hikari que se mantinham na retaguarda.

Deixado sozinho, Yuri refletiu. “Primeiro sou arrastado para uma guerra, agora isso?” Por um instante, ele teve vontade de gritar.

 

***

 

A paisagem ao redor transformava-se conforme avançavam, as montanhas ganhando forma imponente e selvagem. As árvores densas logo deram lugar a uma clareira iluminada pelo sol, que tocava o caminho com uma luz acolhedora. Enquanto seguiam pelas trilhas sinuosas, trocavam histórias e risadas, criando um laço improvável entre os membros do grupo. Nori, um dos guerreiros do clã Ishikawa, contou sobre o dia em que se perdeu nas montanhas, arrancando sorrisos de todos.

— Pensei que só os forasteiros se perdiam nas montanhas. — Shin comentou, rindo.

— Eu era só uma criança! — Nori protestou, e gargalhadas ressoaram pelas montanhas, carregadas pela brisa fria que começava a ganhar força.

Até Haruka, que se mantivera distante durante a viagem, agora sorria, o que suavizou um pouco a tensão que ela exalava. Enquanto Hikari provocava Ryota de formas tão diversas que Yuri se perguntava como a imaginação dela poderia ser tão fértil.

Conforme o fim da tarde se aproximava, nuvens carregadas começaram a se acumular no céu, e a atmosfera tornou-se pesada.

— Parece que o tempo vai mudar. — Shin comentou, em voz baixa, quando as risadas se dissiparam.

— As montanhas são traiçoeiras durante uma tempestade. Precisamos apressar o passo. — Kiku ordenou, e o grupo acelerou, deixando as risadas se perderem entre as árvores.

O vento ficava mais frio a cada passo, e a neve começou a cair, primeiro em flocos suaves, depois mais densos. Caminharam rapidamente até encontrarem uma caverna escavada na rocha da montanha.

— Aqui estamos seguros para a noite. — Kiku anunciou. — Taki, prepare a refeição. Nori e Garu, vocês ficam de guarda.

— Podemos nos revezar. — Shin sugeriu.

— Em Ayatsuri, vocês são convidados. Deixe a segurança conosco. — Kiku respondeu, lançando um olhar para a escuridão lá fora. — Há coisas nas montanhas que só nós sabemos como lidar.

 

***

 

A fogueira iluminava a caverna com tons alaranjados, e o calor acolhedor rapidamente envolveu o grupo. Enquanto Taki preparava a refeição, eles estenderam as capas para secar e verificaram as armas, um gesto instintivo. Yuri percebeu Akemi sentada em um canto, retraída, e decidiu aproximar-se.

— Desculpe se toquei em algo delicado mais cedo. — A voz saiu antes que pudesse conter as palavras.

Ela o olhou, surpresa.

 — Não precisa se desculpar — respondeu, desviando o olhar para a fogueira.

Yuri sentiu um aperto no peito. Ficaram em silêncio por um tempo, enquanto ao redor deles as conversas abafadas misturavam-se ao som da nevasca. Akemi abaixou a cabeça, pensativa.

— Às vezes, a vida nos leva por caminhos que não esperamos... às vezes, precisamos sair do caminho planejado para encontrar algo novo. — Ela parecia melancólica, e Yuri apenas assentiu, tentando compreender o que ela queria dizer.

— Shin insiste em me chamar de general, mas eu não sou mais uma. Você deve saber que o imperador tem bushis a seu serviço, você já lutou contra eles, pessoas que não podem usar magia, mas compensam esse fato tornando-se espadachins inigualáveis. Eu era a sua líder, a general, que servia diretamente ao imperador.

Então Yuri se lembrou. Na primeira vez que a viu, ela usava uma armadura diferente da que costumava usar agora. Uma armadura com desenhos de ondas esculpidos, representando o império da água.

— Você traiu o imperador... — A conclusão escapou em um murmúrio. — Akemi... quem é você realmente?

Ela paralisou, os olhos trêmulos como se estivesse à beira das lágrimas. Porém, respirou fundo e começou a contar sua história.

— Nasci na nobreza do clã Himura. Me chamavam de “princesa da luz”. Tive o que muitos considerariam uma vida perfeita até que... chegou o momento e nenhuma magia se manifestou em mim. Nada. Nenhuma faísca. Passei a ser rejeitada. De “princesa da luz” a serva, motivo de vergonha. Fui deixada sozinha. Quando já não suportava mais, fui embora... e eles nem se despediram. Nem olharam para mim. Meus pais...

Ela fez uma pausa, a voz quase inaudível. Yuri prendeu a respiração, uma pergunta surgindo, mas ele a conteve. O que mais ela tinha perdido? Ele não ousava interromper, mas sua mente fervilhava em perguntas, surpreso pela vulnerabilidade que, por um breve momento, ela deixava transparecer.

— Depois disso, vivi num vilarejo. Aprendi a lutar, a sobreviver sozinha. O imperador me tirou de lá e me fez general. E eu o servi com orgulho. Mas com o tempo, vi quem ele realmente era. Percebi que estava lutando do lado errado. — Os reflexos da fogueira iluminavam seu rosto, e algumas mechas soltas de seu cabelo flutuavam no vento suave. — Sei que pela minha traição, mereço a morte, mas se for para morrer, que seja lutando por justiça.

Yuri estava em silêncio, absorvendo cada palavra. Já a admirava, mas agora compreendia a profundidade de sua força e da solidão que ela carregava.

— Sinto muito.

Akemi suspirou, como se estivesse aliviada.

— Quando fui deixada pelo meu clã... — A voz de Akemi hesitou, e ela respirou fundo. Yuri permaneceu quieto, mas seu olhar não deixou o rosto dela, como se com isso pudesse lhe dar a coragem para continuar.

— Aprendi a não confiar em ninguém —, continuou ela, os olhos voltados para as chamas. — Eu... por muito tempo, pensei que minha vida nunca tivesse propósito.

Yuri franziu a testa, sentindo um peso familiar nas palavras dela.

— E então você conheceu Shin? — perguntou, mais para quebrar o silêncio, mas as palavras saíram estranhamente baixas.

Ela assentiu, um leve tremor em seus lábios.

— Sim. Com ele, pela primeira vez, eu... senti que podia fazer algo maior. — Ela inspirou profundamente, como se enfim pudesse descansar. — Obrigada por me ouvir, Yuri... Guardei isso por tanto tempo que pensei que nunca conseguiria contar para alguém.

— Todos temos cicatrizes do passado, e nem sempre é fácil carregá-las sozinhos. Eu que agradeço por confiar em mim. — Ela olhou dentro de seus olhos e sorriu. A mão dela estava apoiada no chão, bem próxima à dele, e Yuri teve vontade de segurá-la. Mas não sabia como ela reagiria, então só devolveu o sorriso.

Uma lágrima solitária rolou pelo rosto de Akemi, e Yuri desviou o olhar, encarando o fogo. A gente sabe que a pessoa já passou por muita coisa, quando vê que ela consegue chorar de forma tão silenciosa.

Naquela noite, apesar do cansaço, Yuri permaneceu desperto por muito tempo, as palavras de Akemi ecoando em sua mente. Havia tanto que ele ainda não compreendia, tanto que ela escondia. Talvez, ele pensou, ambos fossem peças deslocadas em um jogo que não tinham escolhido jogar. “O que estou fazendo? Que sentimento é esse? Sou um espadachim renegado, um médico hesitante, uma peça fora do lugar…, mas então por que me sinto vivo agora, mesmo sem ter razões para isso?”

Estendendo a mão no escuro, ele sentiu o vazio, buscando alguém que nunca mais veria. No fundo, porém, uma pequena fagulha de esperança teimava em brilhar. Ele não sabia o que encontraria pela frente, mas sentia, pela primeira vez em muito tempo, que não estava sozinho naquela escuridão.

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