A Terceira Lua Cheia Brasileira

Autor(a): Giovana Cardoso


Volume 1

Capítulo 3: Limiar

"Nas interseções do destino, encontramos não apenas o reflexo de nossas próprias escolhas, mas também a interconexão de todas as coisas no universo, mostrando que estamos todos ligados por fios invisíveis de destino."

(Reflexos do Destino, Yuki Kazehana)

 

1ª Lua Cheia do ano 1833

Lua da Seca, dia 24

 

 

Três meses haviam se passado, trazendo consigo os dias quentes do início do verão. A rotina havia se enraizado na vida de Yuri como uma sombra persistente. Ele sabia a hora exata em que o primeiro cliente entraria no café todas as manhãs, assim como o pedido da senhora do cachecol colorido, que sempre se sentava sozinha perto da janela.

Trabalhar ali fora desafiador no início, mas a repetição dos dias oferecia estabilidade. Distraia-o da solidão que parecia ter se tornado parte de quem era. Enquanto servia xícaras de café e trocava palavras com os clientes, sentia-se ligado ao mundo, mesmo que por breves instantes. Observar rostos desconhecidos e imaginar as histórias por trás deles era sua forma silenciosa de escapar do passado.

Mas aquela paz artificial era só o prelúdio de algo maior.

Tudo começou a mudar numa madrugada qualquer, quando Yuri despertou como se uma lâmpada tivesse se acendido direto em seus olhos. Sentou-se de súbito, o peito arfando, desorientado. Levou alguns segundos para reconhecer o teto baixo do quarto em Itakawa, a poltrona encostada na parede, a janela entreaberta por onde entrava o vento gélido da noite.

Passou as mãos pelo rosto. Estava suado. De novo.

Fechou os olhos, as mãos ainda úmidas do suor, tentando agarrar qualquer vestígio do sonho. Mas, como sempre, ele escapava como névoa. Ainda assim, algo permanecia. Aqueles olhos. Suaves, mas irreais. Carregavam o peso de eras e o medo de um fim iminente.

Era o medo que mais o incomodava.

Não era seu.

Era o medo daquela pessoa, da figura encapuzada. Um medo profundo, que parecia colar na pele de Yuri mesmo depois de acordar. Como um cheiro que não saía, por mais que se esfregasse.

Levantou-se. Foi até a cozinha, os pés descalços contra o chão frio. Talvez um chá ajudasse. Abriu a torneira e deixou a água correr, curvado sobre a pia por longos segundos, tentando recuperar o fôlego.

Foi quando sentiu novamente.

Aquela presença.

Não um som, não uma imagem. Apenas a certeza incômoda, quase infantil, de que havia alguém atrás dele. Que se virasse, veria os olhos. Veria o capuz. O medo.

Respirou fundo e ergueu os olhos devagar.

Nada.

Só ele.

Mas, por um breve segundo, pensou ter visto um reflexo no escuro. Um brilho dourado atravessando sua visão.

Ele deu um passo para trás, o coração acelerado.

— Não estou ficando louco... — murmurou para si mesmo, mas a voz saiu baixa, incerta.

Voltou ao quarto, pegou um caderno antigo e escreveu com a primeira caneta que achou:

Olhos dourados. Capuz. Medo. Não é meu.

Ficou encarando aquelas palavras como se fossem um enigma. Algo que, um dia, talvez fizesse sentido.

Fechou o caderno e se deitou de novo.

Mas não dormiu.

Minutos depois, uma batida na porta. Seu coração disparou. Quem estaria ali àquela hora?

Para sua surpresa, deparou-se com sua irmã mais nova parada no corredor.

— Otsu? O que está fazendo aqui?

— Eu precisava tanto te encontrar... — murmurou, tentando conter as lágrimas.

Yuri a olhou com ternura. Com um gesto delicado, segurou o braço da irmã e a puxou para dentro. Enquanto Otsu acomodava-se no sofá, suavizando sua expressão.

Ela estava vestindo seu uniforme escolar e suas mãos estavam grosseiramente enroladas em ataduras. Yuri nunca a tinha visto assim antes. Era desconcertante. Ela seguiu seu olhar e encarou as próprias mãos com um sorriso sem graça.

— Sou péssima nisso, né?

— Até que não ficou tão ruim assim. — Yuri tentou animá-la, mas não conseguia disfarçar a preocupação. — Está tudo bem?

— Papai quer que eu herde a academia em seu lugar — respondeu baixinho. Embora seus olhos estivessem voltados para as mãos, Yuri viu o brilho das lágrimas neles e sentiu uma pontada de culpa por vê-la daquela maneira.

— O que aconteceu? — Yuri perguntou, sentando-se ao lado dela.

— Eu o enfrentei. — respondeu, amarga. — Na frente dos discípulos dele.

Yuri fez uma careta, curvando-se para ver melhor o rosto dela.

— Me conte tudo.

Ficaram ali, conversando por um longo tempo. Falaram das brigas em casa, da pressão insuportável e das mágoas que se acumulavam como poeira sob o tatame. E, aos poucos, as palavras de Otsu foram ficando mais intensas, e ela deixou escapar as frustrações e mágoas que vinha acumulando.

— Você achou que estava fazendo o melhor para si, mas... — A voz de Otsu falhou. Seus olhos brilharam com uma raiva contida por tempo demais. — E quanto a nós? E quanto a mim? — As palavras escaparam de seus lábios como uma explosão, a dor tão clara quanto sua voz trêmula. — Você foi embora... — Ela engoliu em seco, respirando fundo antes de continuar. — ...quando eu mais precisava de você!

Yuri sentiu o peito apertar, mas não soube o que dizer. As palavras de Otsu eram como punhais, perfurando cada camada de sua resistência. Ele sabia que tinha machucado a irmã, mas nunca tinha parado para pensar no quanto. “Eu realmente a deixei sozinha”, pensou, enquanto a culpa crescia dentro dele, pesada como uma âncora.

— Você não entende... Eu precisava fazer isso... Eu… eu precisava fugir, Otsu.

— Eu sei que você tinha seus próprios demônios para enfrentar, Yuri, mas isso não diminui a minha necessidade de você. — As lágrimas escorriam pelas bochechas dela. Sua voz agora era um sussurro. — Senti sua falta todos os dias. Cheguei a falar sozinha... pra ter a sensação de que estava falando com alguém... E agora... estou prestes a desistir dos meus sonhos só pra agradar o nosso pai.

Yuri soltou um suspiro e se aproximou devagar.

— Me desculpa. Deve ter sido muito difícil. Sei que a confiança não se reconstrói de uma hora pra outra, mas… eu quero tentar. Me perdoa por não estar lá.

Com lágrimas nos olhos, Otsu deu um passo à frente e abraçou Yuri. Ele curvou seu corpo retribuindo, sentindo a dor em seu peito evaporar com o abraço inesperado.

— Que tal um pouco de chá? — sugeriu, com a voz abafada contra o cabelo dela.

Ela assentiu e voltou a se sentar no sofá gasto, ao passo que Yuri se dirigiu ao fogão. Enquanto preparava o chá. Otsu observava tudo com curiosidade. Só então pareceu reparar o quanto o apartamento era pequeno comparado à casa onde cresceram.

Até que o olhar dela grudou na máscara de lobo que Yuri havia deixado em cima da estante. Era um artefato antigo, símbolo da herança e tradição da família Koyama. A visão daquela máscara trouxe à tona uma lembrança vívida, tão clara como se tivesse acontecido no dia anterior.

O cheiro do chá se misturou com o aroma de memórias antigas enquanto Otsu ergueu a mão lentamente e tocou a franja que escondia a cicatriz em sua testa.

Yuri sorriu de lado, trazendo duas xícaras.

— Eu lembro daquele dia. Você tinha quatro anos. Quis aprender uns golpes comigo. E eu... só queria impressionar o pai. Acabei acertando sua testa com a espada de madeira. Quando vi o ferimento em sua testa, entrei em pânico. Fiz um curativo e tentei esconder de todo jeito. Mas foi naquele momento que percebi… que queria cuidar das pessoas.

Depois de tomarem o chá, continuaram conversando, deixando de lado as mágoas que os separaram. Otsu tomou banho e Yuri fez novos curativos em suas mãos. Agora, um silêncio confortável tomava conta do ambiente. Era bom voltar a ser apenas eles mesmos por um tempo. Porém, Yuri sentia que seu coração ainda parecia ser puxado por uma âncora, arrastando-o facilmente para as profundezas.

Enquanto observava a irmã se aconchegar em sua cama, falando sobre algum assunto qualquer, sabia que, no fim das contas, não poderia fugir. Precisava tomar uma decisão. 

 

***

 

Otsu já estava acordada quando Yuri se levantou pela manhã, talvez nem tivesse conseguido dormir. Segurava uma xícara de chá enquanto olhava pela janela. Seu cabelo casualmente jogado para trás percorria toda a extensão de suas costas, lembrando a Yuri o quanto ela se parecia com a mãe.

— Acho que já está na hora de voltar — disse ela, sem se virar, pegando-o de surpresa. Yuri esperava que ela ficasse ao menos alguns dias. Na verdade, a ideia de tê-la por perto parecia muito acolhedora.

— Se quiser ficar mais um pouco…

— Não — respondeu ela, virando-se. — A mamãe deve estar preocupada. Além disso, agora que sei onde você mora, posso vir te visitar. — Por um momento, ela pareceu tão madura que Yuri ficou sem reação. Era como se ele estivesse diante de uma pessoa diferente. Mas então ela sorriu, voltando a ser a Otsu que ele conhecia. — E você sabe que o papai me mataria se eu deixasse de ir para a escola.

— Tudo bem — concordou Yuri. — Estarei aqui, sempre.

— Não se esqueça que tem uma irmã, hein?

Ela deixou a xícara na pia, pegou a bolsa e lhe deu um abraço rápido.

— Preciso correr. O trem sai em meia hora. Te ligo quando chegar.

Ele deu um grunhido de concordância, impressionado com a confiança que ela demonstrava agora, em comparação com a noite anterior. “Ela sempre foi determinada”, pensou, ao contrário dele, que costumava fugir das situações difíceis.

Fechou a porta para ela e entrou preguiçosamente no banheiro, espalhando uma névoa de vapor pela porta entreaberta. Saiu ainda consideravelmente molhado, com a toalha enrolada na cintura, e pegou o uniforme preto do Kokoro Café. Vestiu-se um pouco apressado devido ao frio matinal. Arrumou o cabelo com as pontas dos dedos fazendo uma careta para o espelho antes de enfiar os pés em sapatos desgastados e descer as escadas da entrada.

Na saída do prédio, fez carinho no gato que sempre aparecia pela manhã e seguiu despreocupado, parando somente quando avistou a fachada, agora tão familiar. Suspirou, atravessou a rua e adentrou as portas de vidro.

Em poucos minutos, o aroma do café recém-preparado tomava conta de todo o lugar. Yuri pegou uma xícara, encheu-a de café até o topo, deu um gole e a colocou de lado, passando um pano úmido no balcão. Deixou escapar outro suspiro enquanto retomava a xícara e conferia o relógio na parede ao lado. Ainda tinha cerca de meia hora antes que Diro, Keid e Emi, os outros funcionários, chegassem.

Morar em Itakawa não chegava a ser entediante, mas a rotina fazia parecer que estavam parados no tempo. O que poderia acontecer de diferente? Nada. Era nisso que ele pensava no momento em que a porta do café se abriu com um estrondo. O sino da porta soou. Não como de costume, aquele tilintar leve que mal se ouvia entre as vozes, mas alto, ríspido, quase como um lamento.

Yuri virou-se, a saudação presa na garganta.

Uma mulher surgiu na entrada, vestida com uma armadura samurai, apoiando-se na parede, os ombros caídos como se carregassem o peso de uma guerra. O brilho metálico contrastava com a luz suave do ambiente. Sangue escorria por entre as dobras da capa surrada, gotejando em silêncio sobre o chão envernizado do café.

O aroma do café se dissolveu no ar, substituído pelo odor metálico do sangue. O tempo pareceu suspenso.

— Posso... ajudá-la? — tentou dizer, mas a voz mal saiu.

Ela ergueu o rosto e Yuri congelou.

Sentiu os lábios adormecerem e o ar ao seu redor tornar-se subitamente pesado. As mãos, as mesmas que por tanto tempo evitaram segurar qualquer coisa além de xícaras, tremiam sobre o balcão. O som do próprio coração rugia nos ouvidos, abafando tudo.

Os olhos. Dourados. Idênticos aos do sonho. Idênticos ao pressentimento que o perseguia havia dias.

A mulher cambaleou, caindo de joelhos.

O mundo voltou a girar.

— Diro! — gritou, antes mesmo de perceber que havia se movido.

Não houve resposta. Estava sozinho.

Pegou o celular no balcão e começou a digitar o número da ambulância, mas parou. Não haveria tempo. Ela já havia perdido muito sangue. Se esperasse o socorro, seria tarde demais. Teria que salvá-la.

Por um instante, hesitou. Olhou para as próprias mãos. E por um momento cruelmente longo, não sabia o que fazer.

Impulsionado pelo desespero, cruzou o salão. Disparou pela porta do café, o pano do avental ainda preso à cintura.

Nunca havia corrido tanto. Subiu as escadas do prédio, abriu a porta do apartamento quase com violência e, sem pensar, puxou do alto do armário uma caixa empoeirada que não abria há muito tempo. Sabia exatamente o que havia dentro: ataduras, agulhas, linha de sutura e antisséptico. Nada de anestesia, mas teria que servir.

Seu corpo inteiro tremia quando voltou e se ajoelhou ao lado dela. Com cuidado, afrouxou a parte frontal da armadura, revelando um corte profundo, sangrando sem parar. Pressionou a ferida com as ataduras, sentindo o sangue escorrer por entre os dedos. O tempo se arrastou até que, finalmente, o sangramento começou a ceder. Quando encontrou o pulso ainda fraco, mas presente, sentiu o primeiro lampejo de alívio.

Dar os pontos enquanto tentava conter os próprios tremores foi um desafio exaustivo. Quando terminou, estava coberto por uma camada pegajosa de suor. Só então conseguiu observá-la com mais atenção: era jovem, talvez da sua idade. Fios prateados emolduravam o rosto bronzeado e desciam pelos ombros. A armadura trazia entalhes delicados de ondas e, agora solta, deixava à mostra um rasgo no tecido do kimono por baixo. O ferimento, agora coberto por ataduras, era profundo, na lateral do abdome. Não parecia ter sido causado por uma faca comum.

Encarou as mãos que ainda tremiam. Mal podia acreditar no que acabara de fazer. Até aquele dia, pensava que jamais conseguiria atuar de novo como médico. Ela ainda precisava de cuidados em um hospital de verdade, então pegou o celular mais uma vez e discou para o pronto-socorro.

Mas enquanto tentava explicar a situação, algo o fez calar.

Ela não estava mais lá.

Olhou em volta, incrédulo. Correu até a janela, o coração martelando no peito, esperando ver alguma pista de para onde ela poderia ter ido. Mas o beco estava vazio, como se nada tivesse acontecido.

“Impossível”, pensou. Com aquele ferimento, ela mal conseguiria se mover. Desaparecer tão rápido era inconcebível.

Virou-se de volta para o café.

O sangue que antes empapava o chão havia sumido. Não havia sequer uma mancha.

Yuri ficou parado, o silêncio agora opressivo.

— Isso realmente aconteceu? — murmurou, levando a mão à testa.

O suor frio escorria por seu rosto. Os dedos ainda manchados de sangue. A única prova de que ela estivera ali.

O telefone ainda zumbia em sua mão. Mas ele já não tinha palavras.

Algo estava muito errado. E, naquele instante, Yuri compreendeu o que tentava negar havia tanto tempo:

O passado estava voltando para buscá-lo.

 

 

 

Notas:

A roupa usada por baixo da armadura samurai é chamada de "kimono" ou "shitagi". O shitagi é uma peça interna leve, semelhante a uma camisa, usada para absorver o suor e proteger a pele. Já o kimono ou juban pode ser uma camada adicional, tradicionalmente usada embaixo da armadura. Esses tecidos permitiam mobilidade e conforto durante o uso da armadura pesada.

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