A Terceira Lua Cheia Brasileira

Autor(a): Giovana Cardoso


Volume 1

Capítulo 30: Herdeiro do Fogo

" O verdadeiro despertar acontece quando abraçamos todas as partes de nós mesmos."

(O Despertar da Alma, Sakura Nakamura)

 

9ª Lua Cheia do ano 1833

Lua do Nevoeiro, dia 19

 

 

O tempo passou de forma estranha desde que Yuri deixou Amateru.

Não era só a passagem dos dias. Era a maneira como o mundo parecia ter perdido o ritmo. As manhãs eram silenciosas demais, as noites longas demais. Seus músculos cresceram. Seus sentidos se aguçaram. Ele aprendeu a respirar com controle, a lutar com mais precisão, a suportar o peso do cansaço sem ceder. Mas o vazio... o vazio continuava ali. Latejando sempre que o silêncio caía.

Durante meses, Yuri mergulhou em treinos incessantes. Sozinho. Sem mestres, sem aliados. Só ele e a espada. Buscava respostas, mas era como tentar agarrar a névoa. A cada golpe desferido, a cada técnica aprimorada, seu desejo crescia. Ele precisava voltar. Voltar para eles. Para Shin, que confiou nele até o fim. Para Akemi, que caiu diante do imperador enquanto ele apenas assistia. Para todos que ficaram para trás, feridos, talvez mortos. Por causa dele.

E por mais que seu corpo se fortalecesse, sua alma parecia cada vez mais frágil. Começava a duvidar dele mesmo. Será que tudo aquilo realmente aconteceu? E se fosse apenas delírio? Um pesadelo vívido moldado pela culpa, pelas cicatrizes que carregava?

Às vezes, à noite, acordava com o nome dela escapando de seus lábios. Akemi.

Era estranho perceber o quanto pensava nela ultimamente. Mais estranho ainda era aceitar que talvez... sempre tivesse sido assim. Desde o começo. Não era saudade. Não era apenas preocupação. Era outra coisa. Algo mais vivo. Uma presença que ardia dentro dele como uma lembrança teimosa, como uma chama que se recusava a apagar. Uma esperança.

Na noite mais fria daquele inverno, quando a lua parecia trincada no céu, Yuri tomou uma decisão. Vestiu sua antiga túnica de treino, amarrou a espada às costas e caminhou até o velho campo de pedras do clã Koyama. O lugar onde tudo começava, e terminava, para sua linhagem.

Ajoelhou-se no centro do círculo, o frio cortando sua pele, mas seu foco era outro. O silêncio era profundo, absoluto. Respirou fundo, com os olhos fixos no céu escuro.

—Izanora... Kaenjin... — a voz dele saiu quase num sussurro. — Eu fui ao passado. E não por vontade própria. Foi magia. Uma magia antiga que ainda pulsa dentro de mim, como fogo nos ossos. Então eu clamo a vocês, ancestrais... me concedam mais uma vez essa capacidade. Me levem até eles novamente. Por favor...

Esperou.

O vento sussurrou entre os galhos, espalhando folhas secas ao redor. Mas fora isso, nada. Nem resposta. Nem sinal. Só o frio, o silêncio e o peso da realidade puxando-o de volta.

Yuri fechou os olhos, deixando a cabeça cair.

“Talvez... talvez eu nunca devesse ter voltado. Talvez aquele mundo não fosse meu.”

Mas então, algo mudou.

Não fora uma resposta vinda do céu. Nem uma visão, nem um milagre. Foi algo interno. Um calor que começou devagar, como uma brasa no centro do seu peito. Depois se espalhou, pelas costelas, pela espinha, pelos dedos. Um tremor percorreu seu corpo, e ele percebeu: não era de fora que a resposta viria. Ela sempre esteve ali. Dentro dele.

Pela primeira vez, deixou de resistir. Aceitou.

Aceitou o médico e o guerreiro.

Aceitou a dor e o amor.

Aceitou que aquilo que havia negado por toda a vida, o legado do seu clã, era também parte dele.

E foi nesse instante que sentiu.

Sombras ondularam ao seu redor, suaves como véus dançando ao vento. E logo em seguida, calor. Fogo. Não o fogo que destrói, mas o que ilumina, o que protege. As duas forças, opostas, impossíveis, coexistindo em equilíbrio. A magia híbrida dos seus antepassados, finalmente despertando.

O ar vibrou. O chão tremeu sob seus joelhos. A luz ao redor começou a distorcer, como se o mundo estivesse sendo dobrado, torcido por dentro.

E então viu.

Uma fenda. Uma rachadura no tempo, cortando o espaço à sua frente como uma lâmina invisível. Já havia sentido aquela energia antes, quando colocara a máscara de lobo tanto tempo antes, e quando saltava entre presente e passado. Só que agora era ele quem a invocava. A escolha era dele.

Sem hesitar, deu um passo adiante.

A fenda o engoliu.

E antes que pudesse entender como, onde ou quando... tudo ao redor sumiu. A neve. As árvores. O campo de pedras. Tudo se apagou como tinta lavada pela chuva.

E ele foi levado de volta.

Ao passado. Ao campo de batalha.

A eles.

 

***

 

 

A neve em Amateru estava manchada de sangue. A fumaça cobria o vale como um véu espesso e sufocante. Cada respiração queimava. As vozes ao redor já soavam distantes, abafadas pelo frio. Espadas quebradas. Gritos engasgados. Corpos caídos. Amateru tremia sob o peso da guerra. Os soldados da rebelião estavam exaustos. Akemi continuava no chão, protegida por Kiku e dois arqueiros que pouco ainda podiam fazer. O ferimento que o imperador causara... era grave demais. E mesmo assim, mesmo com ela naquele estado, Shin não podia ir até lá. Porque diante dele estava o imperador.

E ele... já não tinha forças.

Tentou levantar a espada de novo, mas ela caiu de sua mão. Seus joelhos cederam. E então ele soube...

— Parece que é o fim, garoto — disse a voz de Takeshi, distorcida sob o vento. — Vai morrer como um cachorro, ajoelhado na lama. Assim como seu pai... e sua linda mãe.

Shin encarou o chão. Não porque havia desistido. Mas porquê... estava pronto. Porque, naquele momento, não havia mais ninguém para ajudá-lo.

Mas estava errado.

O céu escureceu de repente, e uma rajada de vento quente varreu o campo. Uma luz rubra cortou o ar como uma fenda em brasa, e dele surgiu uma silhueta envolta em chamas e sombras.

No começo Shin pensou que era um inimigo. Mas então viu os olhos. Aqueles olhos cansados, determinados, cheios de dor e esperança. E reconheceu.

—Yuri...?

Não conseguiu conter o sussurro. Era ele. Mas não era o mesmo Yuri que tinha visto partir. Ele estava diferente. Mais forte. Os cabelos mais longos. A postura mais firme. Seus olhos tinham algo diferente. Uma certeza. E fúria. Ele parecia... outra pessoa. Ou talvez, ele mesmo, pela primeira vez.

Quando ele deu o primeiro passo à frente, todos pararam. Até mesmo o imperador. Como se o próprio tempo segurasse a respiração.

A magia queimava ao redor dele como um manto vivo, serpenteando pelo ar com elegância feroz. Ele não disse nada. Só ergueu a espada e avançou.

Shin não conseguia acreditar no que seus próprios olhos viam. Aquele homem que avançava rumo ao imperador não era apenas seu amigo. Era seu próprio sangue, sua linhagem. No punho da espada havia um brasão que nunca havia visto antes, mas sabia que era a combinação de chamas e sombras, o símbolo do clã Koyama. Aquele era o reflexo do próprio destino de Shin.

Yuri ergueu a lâmina, e o ar pareceu fender de novo ao redor do fio prateado. A magia híbrida se espalhava em ondulações sutis, sombras profundas brotando da lâmina enquanto chamas vivas serpenteavam por seu corpo.

O imperador bufou, recobrando a compostura.

— Tolo — ele desdenhou, erguendo o tridente. — Acha que pode me derrotar com truques baratos?

Yuri não respondeu. Avançou. Cada passo dele era medido, preciso. Aquele campo, que ontem fora palco de nossas derrotas, hoje reverberava com esperança.

Cada golpe que ele desferia era mais do que uma técnica. Era o reflexo de tudo que viveu. Não era mais só um médico, nem apenas um guerreiro. Eu era a soma de tudo isso.

E tinha voltado para lutar.

Ele ergueu a espada num corte diagonal. A chama estourou, iluminando o rosto do imperador. As sombras rodopiavam a seu redor, consumindo o vento.

O imperador atacou de volta, o tridente traçando arcos de luz cintilante. A lâmina de Yuri bloqueou o golpe, e a força do impacto vibrou até meus ossos.

Yuri se afastou num passo leve, girou e disparou uma rajada escura, um estilhaço de sombra que perfurou a guarda do imperador. Ele cambaleou.

— Você é... — o imperador gemeu, recuando — quem é você?

Yuri ergueu o olhar e bradou. Sua voz saiu estridente e profunda.

— Sim. O sangue que corre em minhas veias é o mesmo da linhagem real do clã Ito!

O imperador avançou, mas Yuri foi mais rápido. A lâmina cortou o ar, e naquele instante, um dragão de fogo surgiu acima dele. Uma divindade de chamas, tão antiga quanto o próprio tempo.

Kaenjin.

O impacto final ecoou como um trovão, e o tridente caiu aos pés do inimigo. Ele tombou, vencido.

Silêncio.

Quando Shin olhou ao redor, viu que as tropas da rebelião erguiam bandeiras. O inimigo fugia em desordem.

Yuri, ofegante, guardou a espada. E finalmente olhou para ele.

— Shin — disse ele. — Eu voltei.

— Sim, irmão — respondeu Shin, colocando o braço sobre o ombro dele.

— E o que faremos agora?

O sol que surgia no horizonte tingia a neve de ouro. Shin respirei fundo.

— Agora, reconstruiremos o futuro.

 

(FIM DO VOLUME 1)

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