Volume 2 – Parte 2
Capítulo 44: Re:Encontro
No raro dia ensolarado do rigoroso inverno, a garota despertou em sua cama como se acordasse de um longo sonho.
Ao erguer o torso, levantou as mechas emaranhadas do volumoso, porém, curto cabelo castanho-claro que caíam sobre a face.
Olhou pela janela que se encontrava ao lado do local onde dormia.
A claridade adentrava o cômodo enquanto uma brisa fria, que passava pela pequena fresta inferior, fazia as cortinas de voil branco dançarem com leveza.
Após exalar um profundo suspiro, como se no intuito de tomar coragem para enfrentar a gelidez espalhada pelo recinto, retirou o edredom das pernas e deixou o colchão.
Tomou um banho quente — gostaria de perder mais tempo lá —, vestiu uma blusa de manga amarela com detalhes de renda e depois sua calça jeans clara.
Penteou o cabelo que caía até metade do pescoço, pegou o casaco dobrado sobre a cama e deixou o quarto rumo ao andar de baixo.
— Bom dia, filha. Dormiu bastante? — A mulher a recebeu com um sorriso na cozinha, colocando os pratos à mesa.
— Sim. Mas confesso que queria ter dormido mais um pouquinho.
Ela respondeu da mesma maneira, sentando-se numa das cadeiras de madeira já de olho no que iria comer de café da manhã.
Pegou dois pães e os colocou na torradeira. Depois de ajustar o tempo, levou as atenções à jarra de suco de laranja ao lado.
— Você tem certeza de que não quer companhia? — Se juntando à filha no outro lado, ajeitou os fios do cabelo que caía até metade das costas. — Sei que não quer perturbar seu pai no trabalho, mas estou disposta a te levar até lá.
— Não se preocupe... Eu já tomei essa decisão. — A jovem retirou as torradas e passou manteiga sobre elas. — Preciso ir por conta hoje. Já estou bem para isso, de verdade.
— Se você diz, confio em você. Apenas tome cuidado.
— Tomarei, mãe!
Ela mordeu o pão crocante e assim seguiu até finalizar o café da manhã.
Deixou a cadeira, escovou os dentes no banheiro mais próximo e pegou o casaco largado no sofá, para enfim alcançar a saída da residência.
Sua mãe a acompanhou pelo menos até o lado de fora.
A calçada cercada, que servia como uma varanda, tinha a área gramada coberta por resquícios da última nevasca.
As árvores espalhadas pelo quarteirão apresentavam as mesmas condições, misturando branco e verde-escuro de maneira nada padronizada.
Sentindo o frio bater na pele caucasiana, a menina preferiu aguardar mais um pouco até pôr o agasalho.
Respirou fundo, uma camada de ar condensado foi expelida da boca.
— Então, estou indo. — Virou-se à mulher e assentiu com a cabeça.
— Até mais. Mande meus pensamentos para eles.
Por meio de uma resposta silenciosa, a garota desceu os degraus da entrada e avançou pela área asfaltada.
Caminhando a passos curtos, ganhou distância até virar a esquina, deixando sua mãe solitária frente à porta
“Tome cuidado... minha Helen”, executou uma rápida prece, como se buscasse segurar emoções quentes que lhe subiam o rosto.
Dessa maneira, puxou a maçaneta e entrou de volta à casa.
Passados alguns minutos, tempo para que as nuvens carregadas voltassem a preencher o céu ciano, Helen desceu do ônibus e avançou alguns metros até alcançar a entrada do cemitério.
Deu o primeiro passo após a passagem aberta e, antes de prosseguir, virou o rosto sobre o ombro.
O vento bateu no vazio, fazendo os fios de seu cabelo menearem no espaço.
Ela observou bem a rua, como se buscasse encontrar algo.
O fluxo de pessoas naquele lugar era pequeno, a exceção parecia indicar a uma ínfima aglomeração já dentro do local.
De alguma maneira, sentiu como se alguém em específico a observasse.
“Foi minha imaginação?”, ponderou antes de voltar ao trajeto principal.
Deixou o pressentimento de lado quando atravessou as inúmeras lápides pela faixa asfaltada central.
Não demorou muito até encontrar uma das que procurava, virando à esquerda e indo até próximo da reta final daquele setor de sepulturas.
Essa carregava o nome da primeira vítima que presenciou o assassinato a sangue frio: Willian Anderson.
Ao contemplar a estela de pedra, onde as datas de nascimento e falecimento encontravam-se estampadas abaixo da identificação da pessoa, evocou as dolorosas memórias.
O átimo de tempo no qual o viu receber o tiro na altura da têmpora, estourando seus miolos sem lhe dar chances de recuperação diante do elevador destruído...
Remeter a isso lhe trazia uma ansiedade fora do comum, despertando os efeitos do trauma por todo o corpo.
A ânsia subiu o peito, fazendo-a levar uma das mãos à boca de imediato.
As pernas cambalearam mesmo paralisadas, contudo, manteve-se firme na posição erguida.
Conseguiu se controlar ao fechar os olhos e respirar de forma compassada, inspirando e expirando o ar com calma.
Quando se recuperou, sem dizer nada, deixou a área de volta ao trajeto central, dessa vez indo mais a fundo no mar de lápides.
Nas proximidades da reta final, virou à direita e passou pela faixa de pedras, onde encontrou a segunda.
Nela, o nome gravado era o de Hudson Coleman, o segundo companheiro que se tornou mais um dentre tantos números na chacina da universidade.
O regresso das lembranças continuava inevitável.
Parecia viver na pele, mais uma vez, o instante das explosões consecutivas no anfiteatro.
No momento em questão, Helen sucumbiu às emoções mais fortes, não sendo capaz de impedir o surgimento das lágrimas.
Tentou vencê-las num último suspiro ao juntar ambas as mãos contra o rosto, mas foi impossível.
“Não consigo... Não ainda”, aceitou ao utilizar o escasso esforço para se manter minimamente em pé.
Embora meses tivessem se passado, ainda era recente demais. Tinha acabado de sair da reabilitação psicológica, então conseguia aceitar aquelas recaídas bruscas.
Com o tempo, a dor seria amenizada e, de certo, conseguiria visitá-los sem qualquer amparo.
Estava ciente de que jamais conseguiria evitar aquelas memórias, porém ainda lhe faltava forças para enfrentá-las.
E, pela sequência desses eventos, queria acreditar que essas poderiam ser encontradas com ele.
No desfecho das recordações, o terceiro amigo sempre aparecia, a salvando da morte iminente em meio à camada espessa de fumaça.
Por alguma razão, enxergava nele um brilho branco, como se fosse sua luz no fim do túnel de incontáveis sofrimentos.
Depois da tragédia, teve raros contatos com Norman.
Durante sua reabilitação inicial, apenas alguns dias passados do evento, mandou mensagem para ele dizendo que queria vê-lo novamente.
No entanto isso nunca ocorreu desde então.
Mesmo quando recebeu alta, dando continuidade às terapias a fim de retomar a vida normal, não recebeu mais quaisquer notícias acerca do único sobrevivente de seu grupo de amigos.
Sempre que pegava o smartphone, desejava contatá-lo por mensagem ou ligação, mas desistia no meio do caminho.
Por mais que discasse o número dele, tinha dificuldades em clicar no botão de executar a chamada ou enviar texto.
Tinha medo de não ser retornada.
Por favor... não me deixe...
Foram as últimas palavras dela para ele.
Foi mal... Vou acabar com isso...
Foram as últimas palavras dele para ela...
Por acaso, encontrou pelo caminho as lápides referentes à família do rapaz, morta num acidente de carro uma semana antes do caos na instituição.
Lado a lado, pai, mãe e filho caçula descansavam nas sepulturas.
“Onde você está...?”, apertou os punhos cerrados contra o peito, tanto para se livrar do frio quanto para se proteger do desconforto.
Queria muito vê-lo de novo.
Precisava vê-lo de novo.
“Norman...”
Ao abaixar os braços, colocou o casaco que carregava desde a saída de casa e tomou uma importante decisão.
Dali, não voltaria direto para onde sua mãe a esperava. Precisava passar em um local antes disso.
Não poderia mais suportar esse fardo.
Através do semblante determinado, as sobrancelhas franzidas e as vistas semicerradas, saiu com passadas apressadas.
A sensação estranha de quando entrou no local se repetiu, mas resolveu não dar atenção demasiada àquilo.
Somente encarou com o canto dos olhos na mesma direção de outrora e, ao confirmar ser mais um fruto de sua imaginação, prosseguiu ao destino da vez.
Depois de encerrar a visita no cemitério, Helen retornou de táxi.
O intervalo de tempo não foi delongado durante a viagem, mas foi o bastante para que a neve voltasse a cair do céu nublado.
Defronte a grande casa de dois andares, engoliu em seco à medida que a adrenalina começava a subir o corpo.
“A casa do Norman...”, pensou ao agarrar com força a camisa, no centro do peito. “Já o visitei várias vezes, mas ainda assim...”
Não conseguia lidar com tamanha ansiedade, capaz de lhe despertar leves tremedeiras da cabeça aos pés.
Seguiu em frente, em direção à porta, preparada para entrar. Moveu a maçaneta com cuidado, empurrou-a lentamente, a ponto de fazer o rangido se proliferar pelo vazio.
Correu com os olhos por todo o interior, escuro e desprovido de quaisquer presenças.
Levou-se à sala de estar a passos curtos, logo após fechar a passagem vertical.
Era muito estranho estar ali sozinha, envolvida pela ausência de calor que aquele local costumava proporcionar.
Os pais do rapaz não mais voltariam e o próprio estava desaparecido desde o conflito na universidade.
Receosa, apesar de tudo, sustentou a firmeza na postura em prol de continuar os afazeres dos quais se propôs.
Retirou o casaco, jogou-o acima do sofá e começou a limpar a sujeira acumulada.
Passou por todos os móveis tirando a poeira nas minúcias. Após isso, pegou a vassoura e varreu todos os cantos da residência.
Rearrumou os objetos guardados nos armários e na geladeira, tudo para que não deixasse qualquer alimento estragar com o avanço do tempo.
Também lavou o banheiro e o quintal, percebendo a lenta chegada do entardecer.
Quando terminou tudo, foi para o andar de cima e repetiu os processos.
De cômodo a cômodo, alcançou o quarto do companheiro.
Recebeu a leve brisa do inverno a invadir através da janela semiaberta, as cortinas a dançarem em seus flancos.
Perdeu alguns segundos paralisada ali, em observação silente daquela região da qual frequentava bastantes vezes na presença do jovem.
A saudade crescia ainda mais, a ponto de fazer seu coração bater mais rápido.
Um aperto surreal lhe atiçava a garganta.
Engoliu em seco a vontade de derramar lamúrias, depois balançando a cabeça para os lados e tomando coragem para continuar.
Prosseguiu até o canto extremo do quarto.
Estava um pouco úmido, ainda com resquícios de neve que entrava pela ínfima abertura deixada na divisória de vidro.
Foi até o andar de baixo, pegou um pano e uma pá e regressou no intuito de limpar aquilo.
Primeiramente secou o chão.
Depois, empurrou as finas crostas nevadas ao pegador de metal e as jogou pela janela mesmo.
Com aquilo feito, era hora de trocar a roupa das duas camas.
Respirou fundo antes de puxar o lençol responsável por cobrir o colchão que, como bem lembrava, pertencia ao mais velho.
Terminou a tarefa final num estalo de dedos. Continuou ali, fitando o recinto por mais algum tempo.
“Será que ele está bem?”, sempre se perguntava isso, com certa frequência inclusive.
Vira e mexe fechava os olhos e pedia para que estivesse protegido, fosse para qualquer entidade ou ser inatingível.
Era bastante cética quanto a isso, porém servia como forma de se confortar perante as preocupações e a solidão.
— Acho que é hora de voltar — murmurou para si própria, a única ali.
Chegou a abrir um fraco sorriso de escárnio ao pensar nisso.
Quando se preparou para dar meia-volta e puxar consigo a porta...
— Então vai continuar assim, sem saber de nada!? — A voz masculina de aspecto avantajado a assustou, quase a fazendo saltar no mesmo átimo. — Eita, não morre agora! Vai perder toda a graça assim!
Ele estava sentado na janela, que era para estar quase fechada.
Posicionava-se de lado, as mãos apoiadas no peitoril abaixo e as pernas intercaladas; uma dentro do quarto e outra do lado de fora.
O sorriso, tão avantajado quanto o que a voz demonstrara, trazia arrepios indescritíveis à garota, que levou uma mão ao peito.
Tentava comedir as arfadas causadas pelo medo, conforme encarava a aparência do rapaz.
Ele possuía pele caucasiana, cabelo castanho-claro bagunçado e de pontas espetadas.
Usava um casaco por cima de uma blusa e calça jeans rasgada, com tênis maltrapilhos. Mas o que mais se destacava nele era a marca estampada na lateral canhota inteira da face.
De um leve tom vermelho-escuro, mostrava ser fruto de uma forte queimadura.
Pela aparência, Helen não podia dizer se era algo ocorrido há muito tempo, mas chutaria essa hipótese caso não estivesse aflita.
— Quem... quem é você? — Tentou se impor através da pergunta, mas só tirou risadas do garoto.
— Ah, ‘cê vai adorar saber! Mas antes, eu queria contar umas coisinhas pra ti. Gostaria de ouvir?
Manteve o rosto virado, com a parte queimada parcialmente invisível à garota, daquela posição.
— Não quero ouvir nada, saia da casa do Norman! — esbravejou de maneira a andar um passo.
Ameaçou apanhar a vassoura para confrontá-lo.
Ele não se moveu.
— Esse Norman... é seu amigo sumido, né? — Tais dizeres congelaram a menina. — Eu ouvi falar dele, um pouco! ‘Tô procurando ele nesse exato momento, acredita!?
— Você... conhece o Norman? — Abaixou os braços e relaxou um pouco a postura.
Foi o estopim para que os lábios maliciosos do jovem se contraíssem em euforia.
— Ah, claro, claro! Afinal, ele é igual a mim. — Ao perceber o olhar dúbio e interrogativo dela, não poupou palavras ao prosseguir: — Eu sei onde o encontrar, pra falar a verdade.
Helen aparentou estar ainda mais instigada, na iminência de quase morder o lábio inferior.
— Me leve... — Primeiro saiu num sibilo fraco. — Me leve até ele.
— Tem certeza? Mesmo depois de tudo que ele fez? — Levou a palma canhota ao rosto, escondendo o riso. — Depois de ter te enganado, abandonado e, ainda por cima... de ter matado seus preciosos amigos?
Por um instante, a garota perdeu contato com a realidade.
Piscou diversas vezes, tentou clarear a mente conturbada a fim de conferir se tinha realmente escutado o que escutou.
— Como...?
— Ora, ‘cê não sabe!? O desastre naquela universidade, lembra? A fonte de todos os seus tormentos e de centenas de outras pessoas... — Apontou o indicador a ela, a palma voltada para o alto. — É tudo culpa de seu “amigo”. Se ele não ‘tivesse lá, nada daquilo teria acontecido. E quer saber o motivo?
O misterioso enfim virou o rosto em sua totalidade, revelando a grande queimadura a tomar boa parte da bochecha, o olho esverdeado e a orelha.
Até o pescoço era preenchido.
E agora, além daquela marca de ferimento, outra roubava todo o foco logo abaixo da vista específica.
Um símbolo brilhante, de pontos e vértices interligados numa forma peculiar.
Helen não parecia acreditar no que enxergava.
Pensou ser uma tatuagem a priori, porém tal fulgor exalava mais do que a simples aparência; o calor que saía dali e envolvia o quarto era real.
— Vou te contar tudo que ele te escondeu, Helen Simmons — afirmou ao saltar da janela, enfim ficando de pé.
Sua altura era bem maior que a dela, que precisou levantar a cabeça em alguns centímetros no intuito de continuar vidrada na marca cintilante.
Do lado de fora, sem que pudesse ser percebida, outra pessoa observava o ocorrido acima de um poste.
Encontrava-se a algumas quadras da rua onde o encontro ocorria, porém podia enxergar com perfeição.
Sorriu animada, como sempre, ciente de que tudo corria num fluxo favorável.
Os ondulados fios dourados dançavam na vertente da brisa invernal, à medida que os flocos de neve aumentavam em quantidade sob o céu desbotado.
Opa, tudo bem? Muito obrigado por dar uma chance À Voz das Estrelas, espero que curta a leitura e a história!
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