All You Need Is Kill Japonesa

Tradução: Virtual Core


Volume Único

Capítulo 1: Recruta Kiriya

 

{1} Quando as balas começam a voar, é apenas uma questão de tempo antes do medo dominar um soldado.

Você está lá e o aço da morte passa pelo ar.

Um tiro ao longe soa baixo e lamacento, um som oco que você mais sente do que ouve. Os mais próximos soam alto e claro. Eles estrondam como uma voz que chacoalha os dentes e você sabe que é o alvo. Eles perfuram o chão profundamente, jogando para cima um véu de poeira que paira por ali, esperando que a próxima rodada atravesse tudo.

Milhares de projéteis, queimando através do céu — pedaços de metal do tamanho do seu dedo — e basta um para matá-lo. Apenas um para transformar o seu melhor amigo em um pedaço de carne fumegante.

A Morte vem rápida, durante uma batida do coração, e ela não é exigente sobre quem levar.

Os soldados que ela leva rapidamente — antes que saibam o que os atingiu — são os sortudos. A maioria morre em agonia, seus ossos quebrados, seus órgãos rasgados, um mar de sangue vazando no chão. Eles esperam sozinhos na lama pela Morte que vem roubar e retorcer suas últimas gotas da vida com as mãos geladas.

Se existe um paraíso, então é um lugar frio. Um lugar escuro. Um lugar solitário.

Estou aterrorizado.

Aperto o gatilho com os dedos rígidos; meus braços tremem quando envio uma chuva de aço escaldante para o inimigo. O rifle recua quando atiro. Vunk. Vunk. Vunk. Uma batida mais firme que meu coração. O espírito de um soldado não está em seu corpo. Está na sua arma. O cano aquece até brilhar, o calor transforma o medo em raiva.

Fodam-se os oficiais e a merda da desculpa ridícula para chamar o apoio aéreo!

Fodam-se os estrategistas e seus planos que não valem nada uma vez que a merda começa!

Foda-se a artilharia que segura o flanco esquerdo!

Foda-se aquele bastardo que acabou de ser morto!

E mais do que todos eles, foda-se qualquer um que estiver mirando em mim! Use sua raiva como um punho de aço e esmague a cara deles.

Se mover, foda-se!

Eu tenho que matar todos eles. Fazer com que parem de se mover.

Um grito abriu caminho através dos meus dentes cerrados.

Meu rifle dispara 450 balas de 20mm por minuto, para que possa gastar um pente mais rápido. Não há motivo para se segurar. Não importa quanta munição você ainda tem quando está morto. Hora de recarregar.

“Recarregar!”

O soldado com quem gritei já estava morto. Minha ordem morreu no ar, um pulso sem sentido de estática. Apertei meu gatilho novamente.

Meu amigo Yonabaru foi atingido na primeira rodada quando eles contra-atacaram — foi um daqueles dardos. Acertou em cheio, rasgando através da Jacket. A ponta saiu coberta de sangue, óleo e alguns líquidos não identificáveis. Sua Jacket fez uma dança macabra por cerca de dez segundos antes de finalmente parar de se mover.

Era inútil chamar um médico. Ele tinha um buraco logo abaixo de seu peito, quase dois centímetros de diâmetro, que atravessava até suas costas perfeitamente. A fricção nas bordas deixou uma chama laranja dançando em torno da abertura. Tudo isso aconteceu no primeiro minuto após a ordem de ataque.

Ele era o tipo de cara que gostava de implicar com você sobre a merda mais estúpida possível, ou dizer quem era o culpado em um romance policial quando você ainda está no primeiro capítulo. Mas ele não merecia morrer.

Meu pelotão — 146 homens da 17ª Companhia, 3º Batalhão, 12º Regimento, 301ª Divisão de Infantaria Armada — foi enviado para reforçar a extremidade norte da Ilha de Kotoiushi. Eles nos enviaram de helicóptero para emboscar o flanco esquerdo do inimigo pela retaguarda. Nosso trabalho era acabar com os que recuavam quando o ataque frontal inevitavelmente os empurrava para trás.

Inevitável.

Yonabaru morreu antes do combate sequer começar.

Me pergunto se ele sofreu muito.

Quando finalmente percebi o que estava acontecendo, o meu pelotão estava sendo esmagado no meio da batalha. Estávamos sendo atacados pelo inimigo e nossas próprias tropas. Tudo o que eu podia ouvir eram gritos, soluços, e “Foda-se!” Porra! Porra! Porra! Os xingamentos voavam tão rápido quanto as balas. Nosso líder do esquadrão estava morto. Nosso sargento estava morto. O barulho dos rotores nos helicópteros de suporte já tinha desaparecido há um tempo. As comunicações foram cortadas. Nossa campanha foi rasgada em pedaços.

A única razão pela qual eu ainda estou vivo é porque eu estava tomando cobertura quando Yonabaru foi atingido.

Enquanto os outros se mantiveram firmes e lutaram, eu estava escondido na minha Jacket, tremendo como uma folha. Estes trajes são feitos de um composto japonês que é a invejado pelo do mundo. Eles te protegem tanto quanto possível. Percebi que se uma bala passasse pela primeira camada ela nunca passaria pela segunda. Então, se eu me escondesse por tempo suficiente, o inimigo iria embora. Certo?

Eu estava cagando de medo.

Como qualquer recrutar recém-saído do acampamento eu poderia disparar um rifle, mas ainda não sabia como fazer isso servir para alguma coisa. Qualquer pessoa pode apertar um gatilho. Bang! Mas quando e onde atirar quando você está cercado? Pela primeira vez percebi que não sabia o essencial sobre a guerra.

Outro dardo passou pela minha cabeça.

Provei sangue na minha boca. O gosto de ferro. Prova de que ainda estava vivo.

Minhas mãos estavam úmidas e lisas dentro das minhas luvas. As vibrações da Jacket me disseram que a bateria estava quase morrendo. Senti o cheiro de óleo. O filtro estava nas últimas, e o fedor do campo de batalha estava encontrando seu caminho através da armadura, o cheiro de cadáveres inimigos como se fosse o cheiro de folhas amassadas.

Não senti nada abaixo da minha cintura por um tempo. Deveria estar doendo onde fui atingido, mas não. Eu não sabia se isso era bom ou ruim. A dor te faz perceber se está morto ou não. Pelo menos não tinha que me preocupar com o mijo na armadura.

Sem granadas de combustível. Só restavam trinta e seis balas de 20mm. O pente estaria vazio em cinco segundos. Minha bazooka — que de qualquer forma tinha apenas três foguetes — se perdeu antes que eu pudesse disparar aquela porcaria. Minha câmera frontal quebrou, a armadura no meu braço esquerdo foi retalhada e mesmo em plena potência a Jacket só operava a 40%. Milagrosamente, o bate-estaca do meu ombro esquerdo tinha sobrevivido sem um arranhão.

O bate-estaca¹  é uma arma de curto alcance que utiliza uma carga explosiva para disparar picos de carboneto de tungstênio — boa apenas contra os inimigos no alcance do braço. Os cartuchos que dispara são tão grandes quanto o punho de um homem. Em um ângulo de 90 graus de impacto, a única coisa que pode resistir a ele é a blindagem dianteira de um tanque. Quando eles me disseram pela primeira vez que só aguentava vinte rodadas, eu não achei que ninguém viveria tempo suficiente para usar tudo isso. Eu estava errado.

O meu tinha quatro rodadas sobrando.

Eu tinha disparado dezesseis vezes e errei quinze — talvez dezesseis.

O display do meu traje estava deformado. Eu não podia ver merda nenhuma onde estava dobrado. Podia ter um inimigo em pé na minha frente e eu nunca saberia.

Eles dizem que um veterano que está acostumado com o traje pode ver ao seu redor mesmo sem usar a câmera. É preciso mais do que olhos na batalha. Você tem que sentir o impacto passando por camadas de cerâmica e metal até o seu corpo. Prever o puxar do gatilho. Sentir o chão através das botas. Ver os números do display e entender o estado da batalha em um instante. Mas não posso fazer nada disso. Um recruta em sua primeira batalha não sabe de merda nenhuma.

Expira. Inspira.

Meu traje estava encharcado de suor. Um cheiro terrível. Catarro estava escorrendo do meu nariz, mas não podia limpá-lo.

Verifiquei o cronômetro ao lado da tela. Sessenta e um minutos se passaram desde que a batalha começou. Que monte de merda. Parecia que eu estava lutando há meses.

Olhei para a esquerda, direita. Cima, baixo. Fechei o punho dentro da luva. Não posso usar muita força, tinha que me lembrar. Exagero e meu objetivo vai por água abaixo.

Não há tempo para verificar o Doppler². Hora de atirar e deixar rolar. 

Thak thak thak thak thak!

Uma nuvem de poeira subiu.

As rajadas do inimigo pareciam vento sobre minha cabeça, mas as minhas desviavam ao deixar o cano, como se os inimigos simplesmente as afastassem. Nosso sargento disse que as armas poderiam brincar dessa forma. Se me perguntar, me parece justo que o inimigo deve começar a ver seus projéteis brincando com eles também. Devemos todos ter a chance de sentir a respiração da Morte na parte de trás do nosso pescoço, seja amigo ou inimigo.

Mas como deve ser a chegada da Morte para um inimigo não humano? Será que eles pelo menos sentem medo?

Nossos inimigos — os inimigos da United Defense Force³ — são monstros. Nós os chamamos de Mimics.

Minha arma estava sem balas.

A silhueta de um orbe deformado se materializou na neblina marrom. Era mais curta do que um homem. Provavelmente chegaria até o ombro de um soldado com a Jacket. Se um homem fosse um poste fino em pé, um Mimic seria um barril robusto — um barril com quatro membros e uma cauda, pelo menos. Algo como o cadáver inchado de um sapo afogado, como gostamos de dizer. Os ratos de laboratório dizem que eles têm mais em comum com estrelas do mar, mas isso são apenas detalhes.

Eles são um alvo menor do que um homem, então naturalmente são mais difíceis de acertar. Apesar de seu tamanho, eles pesam mais do que nós. Se pegar um desses tonéis largos, do tipo que os americanos usam para destilar whisky, e o encher com areia molhada, daria mais ou menos o peso certo. Não é o tipo de massa que um mamífero com 70% de água poderia esperar alcançar. Um único golpe de um dos seus membros pode enviar um homem voando em mil pedacinhos. Seus dardos, projéteis disparados de respiradouros em seus corpos, têm o poder de balas de 40mm.

Para combatê-los, usamos máquinas para nos fortalecer. Usamos as Jackets — armaduras mecanizadas, a melhor e mais moderna ciência. Nos enfiamos em exoesqueletos de aço tão resistente que uma escopeta disparada a queima-roupa não faria um risco. É assim que enfrentamos os Mimics, e estamos perdendo.

Mimics não inspiram o medo instintivo que você esperaria caso se encontrasse diante de um urso protegendo seus filhotes, ou o olhar de um leão faminto. Os Mimics não rugem. Eles não são assustadores de se ver. Eles não abrem nenhuma asa ou ficam de pé sobre as patas traseiras para intimidar. Eles simplesmente caçam com a implacabilidade das máquinas. Eu me sinto como um cervo parado no caminho de um caminhão que se aproxima. Não conseguia entender como tinha me metido na situação em que estava.

Eu estava sem balas.

Até logo, mãe.

Eu vou morrer em um fodido campo de batalha. Em uma maldita ilha esquecida por Deus e sem amigos, sem família, sem namorada. Na dor, no medo, coberto por minha própria merda. E nem consigo levantar a única arma que tenho para afastar o bastardo correndo em minha direção. Foi como se toda a força em mim tivesse se esgotado com minha última munição.

O Mimic está vindo até mim.

Eu posso ouvir a respiração da Morte no meu ouvido.

Sua figura cresce em meu display.

Agora eu o vejo; seu corpo está manchado de vermelho sangue. Sua foice de dois metros de comprimento, é uma sombra vívida. Parece mais de um machado de batalha do que uma foice. Em um mundo onde amigo e inimigo usam a mesma camuflagem empoeirada, ele lança um brilho vermelho metalizado em todas as direções.

A Morte se move, mais rápida do que um Mimic. Uma perna escarlate chuta e eu saio voando.

Minha armadura está esmagada. Eu paro de respirar. O céu se torna o solo. Meu display está se afogando em avisos vermelhos piscando. Eu tusso sangue, poupando o trabalho dos avisos.

Então meu bate-estaca dispara. A explosão me joga pelo menos dez metros no ar. Pedaços da blindagem da parte de trás do meu Jacket se espalham pelo chão. Eu caio de cabeça para baixo.

A Morte balança seu machado de batalha.

O metal ressoa enquanto perfura o imperfurável. O machado soa como um trem de carga parando.

Eu vejo a carapaça do Mimic navegando pelo ar.

Bastou um golpe para reduzir o Mimic a uma pilha imóvel. A areia cinzenta saiu da ferida aberta. As duas metades da criatura estremeceram, cada uma mantendo seu próprio ritmo estranho. Uma criatura que as maiores invenções tecnológicas da humanidade mal conseguiam derrotar, devastada por uma arma bárbara de mil anos atrás.

A Morte virou-se lentamente para me encarar.

Em meio as luzes de advertência vermelhas que se aglomeravam em minha tela, uma única luz verde piscou. Uma transmissão amigável entrante. “…um pouco …kay?” Uma voz de mulher. Impossível de entender em meio ao ruído. Eu não conseguia me levantar. O Jacket estava destruído e eu também. Gastei o resto das minhas forças apenas para rolar o lado direito para cima.

Vendo mais de perto, eu não estava, de fato, na companhia do Anjo da Morte. Era apenas mais um soldado de Jacket. Um Jacket não exatamente como o meu, era equipado com aquele machado de batalha maciço onde o regulador do bate-estaca deveria estar. As insígnias no ombro não indicavam JP, mas sim U.S. No lugar da habitual camuflagem empoeirada, o traje brilhava em um rubro metálico da cabeça aos pés.

A Vadia de Ferro.

Eu tinha ouvido histórias. Uma viciada em guerra sempre perseguindo a ação, não importa onde ela ia. Dizia-se que ela e seu esquadrão das Forças Especiais do Exército dos EUA eram responsáveis por metade de todas as mortes confirmadas de Mimic. Talvez alguém que tivesse lutado tanto e vivido para contar a história realmente fosse o Anjo da Morte.

Ainda carregando o machado da batalha, o Jacket vermelho ardente andou em minha direção. Ela esticou o braço e procurou o plug no meu ombro. Uma entrada de comunicação.

“Há algo que eu queria saber.”

Sua voz preencheu meu traje, clara como cristal. Um tom suave e leve, em desacordo com o machado de dois metros e a carnificina que acabara de criar com ele.

“É verdade que o chá verde que servem no Japão no fim da refeição é de graça?”

A areia que se derramava para fora do Mimic caído voou afastada pelo vento. Eu podia ouvir o ruído distante das balas voando. Este era um campo de batalha, o lugar podre onde Yonabaru, Capitão Yuge e o resto do meu pelotão tinham morrido. Uma floresta de projéteis de aço. Um lugar onde seu traje se enche com sua própria urina e merda. Onde você se arrasta através de sangue e lama.

“Eu me meto em problemas por acreditar em tudo o que leio, então pensei em perguntar a um local”, ela continuou.

Aqui estou eu, meio morto, coberto de merda, e você quer falar sobre chá?

Quem anda até alguém, o chuta pelo chão e então pergunta sobre chá? O que estava passando na cabeça dela? Eu queria que ela entendesse o que eu estava pensando, mas as palavras não vinham. Eu podia pensar nas palavras que eu queria dizer, mas minha boca tinha esquecido como funcionava — uma linha de xingamentos estava na frente.

“Isso é o problema com os livros, metade do tempo o autor não sabe o que diabos ele está escrevendo — especialmente aqueles romancistas de guerra… Agora, que tal você tirar o dedo do gatilho e respirar fundo?”

Bom conselho. Demorou um minuto, mas comecei a ver em linha reta novamente. O som da voz de uma mulher sempre conseguia me acalmar. A dor que eu tinha deixado na batalha voltou ao meu intestino. Meu Jacket interpretou mal as cãibras em meus músculos, enviando um espasmo leve pelo traje. Pensei na dança que o traje do Yonabaru fez antes de morrer.

“Está doendo muito?”

“O que você acha?” Minha resposta não foi muito mais do que um sussurro rouco.

O Jacket vermelho se ajoelhou diante de mim, examinando a placa de armadura rasgada sobre meu estômago. Arrisquei uma pergunta.

“Como está a batalha?”

“O 301º foi aniquilado. Nossa linha principal recuou até a praia para reagrupar.”

“E seu esquadrão?”

“Não há necessidade de se preocupar com eles.”

“Então… como estou?”

“Isso perfurou a frente, mas a placa traseira parou. Está carbonizado.”

“O quão ruim?”

“Ruim.”

“Foda-se”. Olhei para o céu. “Parece que está começando a ficar limpo.”

“É. Eu gosto do céu daqui.”

“Por que?”

“É limpo, nada melhor do que uma ilha com o céu limpo.”

“Vou morrer?”

“Vai.” ela me disse.

Senti lágrimas nos olhos. Fiquei grato pelo capacete esconder meu rosto. Mantive minha vergonha só para mim.

O Jacket vermelho manobrou para pegar suavemente minha cabeça. “Qual é o seu nome? Não o seu rank ou seu código. O seu nome.”

“Keiji, Keiji Kiriya.”

“Sou Rita Vrataski. Vou ficar aqui até você morrer.”

Eu não poderia desejar nada além do que ela disse, mas eu não ia deixar ela ver isso. “Você também vai morrer se ficar.”

“Eu tenho um motivo: quando você morrer, Keiji, eu vou pegar a bateria do seu Jacket.”

“Isso foi cruel.”

“Não precisa reclamar, relaxe, aceite.”

Ouvi um som eletrônico — um sinal de comunicação de entrada no capacete de Rita. Era a voz de um homem. A ligação entre nossos Jackets automaticamente transmitiu a voz para mim.

“Calamity Dog, aqui é Chief Breeder.”

“Na escuta.” Apenas ordens.

“Servidor Alpha e a vizinhança sob controle. Estimativa de que podemos segurar por treze minutos. Hora de pegar a pizza.”

“Calamity Dog recebido. Tudo calmo por aqui.”

O Jacket vermelho estava de pé, cortando o nosso link de comunicação. Atrás dela, uma explosão ecoou. Senti o chão tremer pela minha espinha. Uma bomba guiada a laser tinha caído do céu. Ela mergulhou nas profundezas da terra, e penetrou a base antes de detonar. A terra branca arenosa parecia uma panqueca cozida; sua superfície rachada trazia vomitava uma terra mais escura no ar. Uma chuva de lama salpicou minha armadura. O machado de Rita brilhava na luz.

A fumaça desapareceu.

Pude ver uma massa retorcida no centro da enorme cratera deixada pela explosão: o inimigo. Pontos vermelhos surgiram no meu radar, havia tantos que cada ponto estava tocando outro.

Pensei ter visto Rita assentir. Ela saltou para a frente, voando pelo campo de batalha. Seu machado subiu e desceu. Cada vez que brilhava, a casca de um Mimic rachava. A areia que brotava de suas feridas espiralava nos redemoinhos traçados por sua lâmina. Ela os cortava com a facilidade de um laser. Seus movimentos faziam um círculo ao meu redor, me protegendo. Rita e eu passamos pelo mesmo treinamento, mas ela era como um gigante enquanto eu estava no chão, um brinquedo estúpido que tinha esgotado sua bateria. Ninguém me forçou a estar aqui. Eu tinha me arrastado para este campo de batalha, e eu não estava fazendo nada por ninguém. Melhor que eu tivesse morrido ao lado do Yonabaru. Pelo menos não teria colocado outro soldado em perigo para me proteger.

Decidi não morrer com três disparos sobrando no bate-estaca.

Levantei uma perna. Coloquei uma mão sobre o joelho.

Fiquei de pé.

Gritei. Eu me forcei a continuar.

O Jacket vermelho se virou para mim.

Ouvi barulho na saída de áudio, mas não entendi o que ela estava tentando dizer.

Um dos Mimics se destacou do resto. Não que ele parecesse diferente dos outros. Só mais um sapo afogado e inchado. Mas havia algo que o diferenciava. Talvez a proximidade com a morte tivesse aguçado meus sentidos, mas de alguma forma eu sabia que como qual eu deveria lutar.

Foi o que eu fiz. Eu pulei para o Mimic e ele me atacou com a cauda. Senti meu corpo ficar mais leve. Um dos meus braços foi cortado. O braço direito — deixando o bate-estaca intacto no esquerdo. Sorte minha. Eu puxei o gatilho.

A carga disparou, em um perfeito ângulo de 90º.

Mais um tiro. Um buraco aberto na carapaça daquela coisa.

Mais um tiro. Eu apaguei.

 

{2} O livro que eu estava lendo se encontrava ao lado do travesseiro.

Era um romance de mistério sobre um detetive americano que deveria ser um tipo de especialista no Oriente. Meu dedo apontava para uma cena onde todos os personagens chaves se encontravam para jantar em um restaurante japonês em New York. O cliente do detetive, um italiano, tenta pedir um café expresso após a refeição, mas o detetive o impede friamente. Ele fala sobre como os restaurantes japoneses te trazem chá verde após o jantar para que você não tenha que pedir nada. Então ele afirma como o chá verde vai bem com molho de soja, e oh, por que é que na Índia eles apimentam o chá de leite? Ele finalmente reuniu todos os envolvidos no caso em um lugar, e ele fala sobre tudo menos sobre o culpado.

Esfrego os olhos.

Passando minha mão sobre minha camisa, sinto meu estômago através do pano. Eu pude sentir o six-pack que não estava lá meio ano atrás. Nenhum vestígio de ferida, nenhuma carne carbonizada. Meu braço direito estava bem onde deveria estar. Está tudo bem por aqui. Que sonho de merda.

Devo ter adormecido lendo o livro. Eu deveria saber que algo estava acontecendo quando Mad Wargarita começou a ter pequenas conversas sobre romances de mistério. Os Operadores Especiais Americanos que haviam atravessado todo o Oceano Pacífico apenas para provar sangue não tiveram tempo para ler o último best-seller. Se tivessem tempo livre, provavelmente o gastariam verificando seus Jackets.

Que jeito de começar o dia. Hoje seria a primeira vez que sentiria o verdadeiro gosto da batalha. Por que não poderia sonhar que explodi alguns malditos e fui promovido um ou dois ranks?

No beliche acima de mim, um rádio tocava uma música com um baixo — algum tipo de rock pré-histórico, tão antigo que meu velho não teria reconhecido. Eu podia ouvir os sons, conversas incoerentes vindas de todas as direções, e acima de tudo, a voz de cafeína do DJ falando com a previsão do tempo. Eu podia sentir cada palavra perfurar meu crânio. Está claro e ensolarado aqui nas ilhas, assim como ontem, com um alerta do índice UV para a tarde. Cuidado para não se queimar no sol!

Os quartéis não eram muito mais do que quatro pedaços de madeira resistentes ao fogo apoiadas juntas. Um cartaz de uma gata bronzeada de biquíni pendurado em uma das paredes. Alguém tinha substituído sua cabeça por uma foto do primeiro-ministro tirada do jornal. A cabeça da garota do biquíni sorria do topo do corpo musculoso de um macho em outro cartaz nas proximidades. A cabeça do homem musculoso estava perdida.

Me estico no meu beliche. As barras de alumínio rangem em protesto.

“Keiji, assine isso”. Yonabaru esticou o pescoço sobre o lado do beliche superior. Ele parecia ótimo para um cara que eu vi ser empalado. Dizem que as pessoas que morrem em sonhos vivem para sempre.

Jin Yonabaru se alistou três anos antes de mim. Três anos a mais para queimar a gordura, três anos a mais para criar músculos. Quando ele era um civil, era magro como um galho. Agora ele estava esculpido em pedra. Ele era um soldado e se parecia com um.

“O que é isso?”

“Uma declaração. Aquela da qual te falei.”

“Assinei isso ontem.”

“Sério? Isso é estranho.” Eu podia ouvi-lo folheando as páginas. “Não, não aqui. Que seja, assine para mim novamente, beleza?”

“Está tentando tirar vantagem de mim?”

“Só se você voltar em um saco. Além disso, você só pode morrer uma vez, então que diferença faz quantas cópias assina?”

Os soldados da UDF na linha de frente tinham uma tradição. No dia anterior a uma operação, eles entrariam no PX e sairiam com bebida alcoólica. Beba e seja feliz, pois amanhã morreremos. A batalha quebra qualquer acetaldeído deixado na corrente sanguínea. Mas quando a luta acabasse e todo mundo tivesse voltado à base, eles fariam um balanço do inventário e, se você fosse pego, eles te levariam até um comitê disciplinar — talvez uma corte marcial se você realmente foder com tudo. Claro, era difícil condenar um cadáver. É por isso que todos deixamos notas antes da batalha explicando como o roubo tinha sido a nossa ideia. Certamente, quando a investigação começava, quem tinha planejado tudo sempre era um idiota que deu um jeito de morrer. Era um bom sistema. As pessoas trabalhando no PX eram espertas, por isso eles deixavam escapar algumas garrafas que não fariam falta. Você poderia pensar que eles apenas davam a todos alguns drinques na noite antes da batalha — talvez pelo amor e pela moral — mas não, era o mesmo de sempre. Boas ideias não têm chance contra boa burocracia.

Peguei o papel de Yonabaru. “Engraçado, eu pensei que ficaria mais nervoso.”

“Mas já? Espera pelo menos o dia chegar, cara.”

“O que quer dizer com isso? Vamos nos preparar à tarde.”

“Ficou doido? Por quanto tempo planeja usar essa coisa?”

“Se eu não usar hoje, quando é que eu vou?”

“Que tal amanhã, quando nós partirmos?”

Eu quase caí da cama. Por um instante, meus olhos pousaram no soldado deitado no beliche ao lado do meu. Ele estava folheando uma revista pornô. Então olhei para o rosto de Yonabaru.

“O que você quer dizer, amanhã? Eles adiaram o ataque?”

“Não, cara, sempre foi amanhã, mas a nossa missão de se embriagar começa esta noite às mil e novecentas horas… Nós bebemos até cair e acordamos com uma ressaca amanhã de manhã… Um plano que nem mesmo o QG poderia foder.”

Espera. Tínhamos entrado no PX na noite passada. Me lembro de tudo. Eu estava nervoso sobre minha primeira batalha, por isso decidi me levantar bem mais cedo. Eu tinha voltado para o beliche e comecei a ler esse romance de mistério. Até me lembro de ajudar Yonabaru a chegar até a cama dele quando veio cambaleando de bêbado.

A menos que… a menos que eu também tivesse sonhado com isso?

Yonabaru sorriu maliciosamente. “Você não está tão bem, Keiji.”

Peguei o romance na minha cama. Eu o trouxe para ler no meu tempo livre, mas estava tão ocupado memorizando a formação que ele ficou largado no fundo da minha bolsa. Me lembro de pensar o quão irônico era o fato de que eu não tive tempo de começar a ler até o dia anterior ao qual eu provavelmente iria morrer. Abri o livro na última página que li. O detetive americano, que deveria ser um especialista no Oriente, estava discutindo as características do chá verde, como eu me lembrava. Se hoje era o dia antes da batalha, quando eu li o livro? Nada fazia sentido.

“Escuta, não há nada demais na operação de amanhã.”

Eu pisquei. “Nada demais, hein?”

“Basta voltar para casa sem atirar em alguém pelas costas e você vai ficar bem.”

Eu resmunguei em resposta.

Yonabaru fez uma arma com a mão e apontou o dedo indicador para a cabeça. “Falo sério, pense demais nisso e você vai se sobrecarregar — vai acabar perdendo a cabeça antes mesmo que eles tenham a chance de explodir seu cérebro.”

O cara que eu substituía tinha se dado mal, então eles o tiraram da linha de frente. Dizem que ele começou a espalhar informações sobre como a humanidade estava condenada pelas linhas de comunicação. Não é o tipo de merda que você quer que a UDF ouça. Podemos não perder soldados dessa forma como perdemos para o inimigo, mas não é legal de qualquer forma. Na batalha, a menos que esteja presente de corpo e mente, você é um passivo. Eu acabei de chegar na linha de frente — não vi nenhuma batalha — e já estava tendo alucinações. Quem sabe quais alarmes de advertência estavam piscando na minha mente.

“Se me perguntar, alguém sair da batalha não agir ‘um pouco diferente’ deve ter perdido um parafuso ou três.” Yonabaru sorriu.

“Hey, não amedronte nós novatos,” eu protestei. Eu não estava realmente assustado, mas eu estava cada vez mais confuso.

“Basta olhar para Ferrell, a única maneira de fazer isso é perder o que quer que faça de você um humano. Um indivíduo sensível e atencioso como eu não foi feito para lutar, essa é a verdade.”

“Não vejo nada de errado com o sargento.”

“Não é uma questão de certo ou errado, trata-se de ter um coração feito de tungstênio e músculos tão grandes que não deixam o sangue ir para o cérebro.”

“Eu não diria isso.”

“E em seguida, vai dizer que Mad Wargarita é apenas mais uma como a gente.”

“Eh, bem, o caso dela é —” e assim a conversa continuou como sempre. Nossa especulação sobre Rita estava no auge quando o sargento apareceu.

O sargento Ferrell Bartolome estava nessa a mais tempo do que qualquer outra pessoa em nosso pelotão. Ele viveu muitas batalhas, era mais do que um soldado, ele era a cola que mantinha nossa companhia unida. Eles disseram que se você o colocasse em uma centrífuga, o resultado seria 70% de parceiro, 20% broca e 10% de fibra de carbono reforçado com aço. Ele franziu o cenho para mim, então olhou para Yonabaru, que estava apressadamente guardando o álcool. Ele franziu ainda mais a testa. “Você é o soldado que invadiu o PX?”

“Sim, fui eu”, confessou meu amigo sem deixar rastros de culpa.

Os homens nas camas ao redor se cobriram com seus lençóis a toda velocidade como baratas se escondendo da luz, revistas pornográficas e baralhos esquecidos. Eles tinham visto o olhar no rosto do sargento.

Limpei minha garganta. “A segurança, uh… enfrentou algum tipo de problema?”

A testa de Ferrell se entrelaçou como se estivesse equilibrando um de blindado na cabeça. Tive uma forte sensação de déjà vu. Tudo isso aconteceu no meu sonho! Algo sem relação tinha dado errado, no momento exato em que Yonabaru e os caras estavam entrando no PX. A segurança já estava em alerta e o roubo foi descoberto antes do previsto. “Onde você ouviu isso?”

“Só, uh, um palpite.”

Yonabaru se inclinou para fora do seu beliche. “Que tipo de problema?”

“Alguém pisou uma pilha de merda de porco, isso pode não ter nada a ver com você, mas mesmo assim, oh — novecentos, vocês serão transferidos para o Campo de Treinamento Nº 1 em seu Equipamento para Treinamento Físico nível 4, avisem para o resto daqueles imbecis que vocês chamam de pelotão.

“Você só pode estar brincando! Nós vamos para a batalha amanhã e você está nos mandando para o TFM?”

“Isso é uma ordem, cabo.”

“Senhor, reportando para o Campo de Treinamento Nº 1, oh — novecentos em equipamento nível quatro, senhor, mas, uh, uma coisa, Sargento… Fazemos esse lance com a bebida durante anos. Por que se importam com isso agora?”

“Você realmente quer saber?” Ferrell revirou os olhos. Eu engoli em seco.

“Não, eu já sei a resposta.” Yonabaru sorriu. Ele sempre parecia estar sorrindo. “É porque a cadeia de comando por aqui é fodida para caralho.”

“Você vai descobrir por si mesmo.”

“Espere, Sargento!”

Ferrell deu três passos calculados e parou.

“Qual é, nem sequer uma dica?” Yonabaru falou de onde estava se escondendo, atrás da armação de metal.

“O general é o único preocupado com uma desculpa para a segurança podre que temos nesta base, então não olhe para mim e também não olhe para o capitão. Na verdade, você também pode apenas calar a boca e fazer o que te pedem para variar.”

Suspirei. “Ele não vai nos mandar para a batalha sem nada, vai?”

Yonabaru sacudiu a cabeça. “Talvez todos nós possamos dar um abraço de grupo. Arrombado fodido.”

Eu sabia onde isso terminava. Eu também sonhei com tudo isso.

Depois da derrota de um ano e meio atrás na Batalha da Praia de Okinawa, os Japoneses transformaram isso em uma questão de honra, recapturar uma pequena ilha ao longo da costa da Península de Boso, um lugar chamado Kotoiushi. Com um ponto de apoio lá, os Mimics estariam apenas a um passo de Tóquio. O Palácio Imperial e o governo central recuaram e agora governam de Nagano, mas não havia nenhuma maneira de realocar o motor econômico da maior cidade japonesa.

O Ministério da Defesa sabia que o futuro do Japão estava no resultado desta operação, de modo que, além de reunir vinte e cinco mil Jackets, um fluxo interminável de generais estava se juntando nesta pequena base na Flower Line que conduzia à Península de Boso. Eles até haviam decidido permitir que os americanos, Operações Especiais, entrassem no jogo. Os EUA não foram convidados para a festa em Okinawa.

Os americanos provavelmente não se importavam se Tóquio seria ou não reduzida a um deserto fumegante, mas deixar a área industrial que produz a camada de blindagem composta mais leve e resistente para os Mimics estava fora de questão. Setenta por cento das peças que entram em uma Jacket de última geração vem da China, mas a realidade é que não pode ser fabricada sem a tecnologia japonesa. Convencer os americanos a virem não tinha sido difícil.

A questão foi que com tropas estrangeiras veio uma segurança mais rigorosa. De repente, se checava coisas como desaparecimento de álcool que a base deixava passar antigamente. Quando o comando descobriu o que estava acontecendo, eles estavam verdadeiramente putos.

“Como está nossa sorte? Me pergunto quem ferrou a gente.”

“Não somos nós, eu sabia que os americanos estariam vigiando seu precioso batalhão como falcões. Fomos cuidadosos como virgens em baile de formatura.”

Yonabaru soltou um gemido exagerado. “Ungh, meu estômago… Sargento, meu estômago está mal, acho que é o meu apêndice, ou talvez eu peguei tétano de quando me machuquei no treino.”

“Eu duvido que isso vá se esclarecer esta noite, então apenas tenha certeza de se manter hidratado, amanhã isso acaba, entendeu?”

“Ah cara, isso dói.”

“Kiriya, faça ele beber um pouco de água.”

“Sim Senhor.”

Ignorando a atuação de Yonabaru, Ferrell saiu do quartel. Assim que sua presença se foi, Yonabaru se sentou e fez um gesto rude em direção à porta. “Ele realmente é um pau no cu. Não entenderia uma piada nem se ela viesse com um maldito manual. Não vou ficar assim quando eu ficar velho. Certo?”

“Talvez.”

“Foda-se, porra, merda. Hoje está uma porcaria.”

Tudo estava acontecendo como eu me lembrava.

O 17º batalhão passaria as próximas três horas no TFM. Exaustos, ouvíamos um oficial comissionado, o peito cheio de medalhas, nos ensinando por mais meia hora antes de sermos dispensados. Eu ainda podia ouvi-lo ameaçando arrancar os cabelos de nossos traseiros um por um com a Jacket.

Meu sonho estava cada vez menos se parecendo com um.

 

{3} Há um exercício chamado prancha isométrica. Você levanta seu corpo como em uma prancha comum e então mantém essa posição.

É muito mais difícil do que parece. Você pode sentir seus braços e abdominais tremendo, e eventualmente perde seu senso de tempo. Depois de ter contado algo como a milésima ovelha pulando uma cerca, você implorará para fazer prancha comum, qualquer coisa menos isso. Seus braços não são projetados para ser pilares. Músculos e articulações estão lá para flexionar e dobrar. Flexionar e dobrar. Parece bom pensar nisso. Mas você não pode pensar sobre isso, ou você vai se sentir ainda pior. Vocês são pilares, ouviu? Pilares! Bons e fortes pilares.

Músculos não são realmente importantes para um Jacket. Se o peso de uma pessoa é de trinta quilos ou setenta, assim que vestirem aquilo, terão 370 quilos de força na palma da mão. O que um Jacket precisa é de resistência e controle — a capacidade de manter uma posição sem contrair um músculo.

Prancha isométrica é perfeito para isso. Sentar no muro passa longe de ser tão ruim.

Alguns reivindicaram que a prancha isométrica se tornou a forma preferida de disciplina na antiga Força de Autodefesa do Japão depois de proibirem a punição corporal. Eu tive um tempo difícil acreditando que a prática tinha sobrevivido tempo suficiente para ser utilizada pela Divisão de Infantaria — o JSDF tinha se juntado ao UDF antes que eu nascesse. Mas quem quer que tenha inventado isso, espero que tenha morrido de forma lenta e dolorosa.

“Noventa e oito!”

“NOVENTA E OITO!” Todos nós gritamos.

“Noventa e nove!”

“NOVENTA E NOVE!”

Olhando para o chão, nós gritávamos desesperadamente o tempo com o sargento, suor fluindo em nossos olhos.

“Oitocentos!”

“OITOCENTOS!”

Foda-se!

Nossas sombras eram nítidas e claras sob o sol escaldante. A bandeira da companhia estalava e voava alto acima do campo. O vento que soprava nos campos de treinamento cheirava a sal e deixava uma camada salgada de lodo em nossa pele.

Lá, imóvel no meio daquele campo de treinamento gigantesco, 141 homens da 17ª Companhia da Divisão de Infantaria Armada mantiveram a prancha isométrica. Três líderes de pelotão estavam de pé, tão imóveis quanto seus homens, um na frente de cada pelotão. Nosso capitão assistiu à cena com o rosto distorcido da sombra da barraca do barracão. Sentado ao lado dele estava um general de brigada do Gabinete do Estado Maior. O general que abriu a boca e começou esta farsa provavelmente estava bebendo chá verde em um escritório com ar condicionado. Filho da puta.

Um general era um ser dos céus. Um ser empoleirado num trono dourado, mais alto do que eu, mais alto que Yonabaru, mais alto que Ferrell, mais alto que o tenente encarregado de nosso pelotão, o capitão encarregado de nossa companhia, o tenente-coronel encarregado de nosso batalhão; Maior que o coronel encarregado de nosso regimento, maior do que o comandante-base. Os generais eram os deuses de Flower Line e de todos os que treinavam, dormiam e choravam dentro desses muros. Tão distantes que pareciam irreais.

Os generais não roubavam bebidas alcoólicas. Eles dormiam cedo e levantavam cedo, sempre escovando os dentes depois de cada refeição, nunca deixando de se barbear de manhã — malditos messias. Os generais entravam em batalha enfrentando a morte de queixo erguido, sempre tão calmos. Inferno, tudo que faziam eram se sentar recuados em Nagano e traçarem seus planos de batalha. Uma ordem deles e nós, mortais na linha de frente, se moveriam como peões através de um tabuleiro de xadrez para nossos destinos terríveis. Eu gostaria de ver apenas um deles aqui conosco na lama. Nós tínhamos nossas próprias regras aqui embaixo. Provavelmente por isso se mantinham afastados. Ao inferno, se um deles aparecesse, uma bala perdida o colocaria na lista de KIA. Este era o pensamento mais leve que passava pela minha cabeça, qualquer um deles teria sido suficiente para me enviar a um pelotão de fuzilamento.

Os oficiais na tenda não eram os únicos espectadores que assistiam nossa tortura.

Os caras da 4ª Companhia estavam rindo descaradamente. Um tempo atrás, os derrotamos em um jogo de rugby por mais de trinta pontos, acho que eles sentiram que isso era algum tipo de vingança. O álcool que roubamos também era para eles, então essa demonstração de solidariedade era tocante. Que bando de idiotas. Se eles tivessem problemas em Kotoiushi, eu não iria ajudar.

Os U.S. Spec Ops e algum jornalista metido em seu esquadrão se reuniram em torno do campo para nos observar a uma distância segura. Talvez eles não fizessem prancha isométrica de onde vieram, mas seja qual for a razão, eles estavam apontando seus dedos gordos para nós e rindo. A brisa vinda da água despejava suas vozes sobre nós. Mesmo a essa distância, o comentário foi alto e irritante. Irritante como unhas raspando uma parede. Oh cara. É uma câmera? Ele está tirando fotos, sério mesmo? Certo, é isso, filho da puta. Você é o próximo na minha lista de KIA.

Dor e fadiga estragavam meu corpo. Meu sangue bombeado como chumbo.

Isso estava ficando velho. Contando meu sonho, esta foi a segunda vez que eu sofri esta sessão particular de TFM. Não apenas TFM, prancha isométrica. No treinamento, eles nos ensinaram que mesmo quando você está com dor excruciante — especialmente quando você está com dor — a melhor coisa a fazer era encontrar algum tipo de distração, outra coisa para se concentrar, outra coisa além dos músculos queimando e do suor na testa. Tomando cuidado para não mover minha cabeça, olho ao redor pelo canto olho.

O jornalista americano estava tirando fotos, um passe de visitante pendurado em seu pescoço. Diga X! Ele era um homem corajoso. Você poderia alinhá-lo com qualquer um desses caras das Forças Especiais dos EUA e você nunca saberia a diferença. Ele parecia mais em casa em um campo de batalha do que eu.

Eu me pareço tanto com os caras das Forças Especiais quanto me pareço com o Sargento Ferrell. Dor e sofrimento eram velhos amigos de homens como eles. Eles caminharam em frente ao perigo, sorriram e perguntaram porque demorou tanto para chegar lá. Estavam em um nível completamente diferente de um cara como eu.

No meio da exibição de testosterona, a mulher solitária parecia se destacar. Ela era uma coisa pequenina que estava sozinha a uma curta distância do resto da equipe. A vendo dali, ao lado do resto de seu esquadrão, algo parecia fora do lugar.

Anne de Green Gables Vai à Guerra.

Acho que o livro seria um spin-off em torno da Primeira Guerra Mundial. Mongólia está em guerra, e lá está Anne, com uma metralhadora delicadamente sob um braço. Seu cabelo era da cor de aço enferrujado, desbotado a um vermelho maçante. Alguns ruivos conjuravam imagens de sangue, fogo, ações de valor. Não ela. Se não fosse pela camisa de areia que ela estava vestindo, pareceria com uma criança que veio à base em uma viagem de campo e se perdeu.

Os outros se afastavam dessa garota, que mal chegava ao peito, como camponeses medrosos que observavam a nobreza.

De repente percebi. Essa é a Rita!

Tinha que ser. Era a única maneira de explicar como aquela mulher, que não poderia se parecer mais com uma Jacket se estivesse usando um vestido de baile, estava na companhia das operações especiais. A maioria das mulheres que se estavam ali se pareciam uma espécie de cruzamento entre um gorila e um gorila mais feia. Eles eram os únicos que podiam ficar na linha de frente da Infantaria.

Rita Vrataski era a soldada mais famosa do mundo. Quando me inscrevi para a UDF, você não passaria um dia sem ver as notícias contarem seus louvores. Histórias intituladas “Um comando Lendário”, “Valquíria Encarnada”, esse tipo de coisa. Eu tinha ouvido até que Hollywood ia fazer um filme sobre ela, mas eu já estava na UDF quando ele saiu, então nunca vi.

Cerca de metade de todas as mortes de Mimics que a humanidade já havia feito podiam ser atribuídas às batalhas em que sua equipe lutou. Em menos de três anos, mataram tantos Mimics como o UDF inteiro juntos nos vinte anos antes. Rita era uma salvadora que vinha para ajudar a transformar as probabilidades nesta batalha sem fim e perdida.

De qualquer forma, foi isso que eles disseram.

Todos nós achamos que ela fazia parte de algum esquadrão de propaganda que eles estavam usando para fazer invasões em território inimigo. Uma frente para alguma arma secreta ou nova estratégia que realmente merecia o crédito. 60% cento dos soldados eram homens. Isso chegava até 85% quando se tratava de Jackets que sangravam nos campos de batalha. Depois de vinte anos lutando contra um inimigo cuja identidade nem sequer sabíamos, perdendo terreno dia após dia, nós não precisávamos de outro salvador musculoso com cérebro de hambúrguer. Sim, se eu fosse um dos caras do Gabinete do Estado Maior, também teria escolhido uma mulher para isso.

Onde quer que as Spec Ops dos EUA fossem, a moral subia. A UDF foi espancada até a borda do penhasco, mas eles finalmente conseguiram sair da beirada. Depois de terminar a guerra na América do Norte, eles se mudaram para a Europa e depois para o norte da África. Agora vinham ao Japão, onde o inimigo estava batendo na porta da principal ilha de Honshu.

Os americanos chamavam Rita de “Cadela do Campo de Batalha”, ou às vezes apenas “Rainha Cadela”. Quando ninguém estava ouvindo, nós a chamamos de “Mad Wargarita”.

A Jacket de Rita era vermelha como o sol nascente. Ela passou meses no laboratório refinando o polímero da pintura da Jacket para absorver cada onda de radar possível. Seu terno era de vermelho metálico — além disso, brilhava. No escuro, refletiria a luz mais fraca, ardendo em carmesim. Ela estava louca? Provavelmente.

Por suas costas, eles disseram que ela pintou seu Jacket com o sangue de seu esquadrão. Quando você se destaca assim no campo de batalha, tende a atrair muito mais o fogo inimigo. Outros disseram que ela faria qualquer coisa para o seu esquadrão sair por cima, que ela até mesmo se escondeu atrás de um soldado uma vez. Se ela estivesse com dor de cabeça, mataria amigos e inimigos sem distinção. E, no entanto, nem um único inimigo jamais arranhou sua Jacket. Ela poderia entrar em qualquer inferno e voltar ilesa. Tinham um milhão de histórias.

Os soldados tinham muito tempo livre, ouviam esse tipo de conversa, alteravam e passavam adiante — era esse tipo de coisa que eles precisavam para passar o tempo e não falar sobre os camaradas mortos. Rita era uma Jacket que comia e dormia na mesma base que eu, mas nunca tinha visto seu rosto até aquele momento. Poderia reclamar do tratamento especial que ela recebia se tivesse chance de pensar sobre isso.

Eu não conseguia tirar meus olhos do seu cabelo — era curto — como ele balançava no vento. Havia um equilíbrio gracioso em seus traços. Você pode até chamar de bonita. Ela tinha um nariz fino, um queixo afiado. Seu pescoço era comprido e branco quando a maioria dos Jackets nem sequer tinham pescoço. Seu peito, no entanto, era completamente plano, em desacordo com as imagens de mulheres caucasianas que você via rebocadas nas paredes de cada quartel. Não que isso me incomodasse.

Quem quer que tivesse olhado para ela e pensado no nome Cadela do Campo de Batalha precisava examinar a cabeça. Ela estava mais perto de um cachorrinho do que de uma cadela. Suponho que mesmo em uma ninhada de pit bulls há espaço para um mais gentil.

Se, em meu sonho, a Jacket vermelha estivesse aberta e ela tivesse saído, eu teria cagado meu beliche. Eu tinha visto seu rosto e Jacket várias vezes nas notícias, mas isso nunca de dava uma boa ideia de como era a pessoa. Eu sempre imaginei Rita Vrataski como alta e implacável, com um corpo forte e um ar de total autoconfiança.

Então nossos olhos se encontraram.

Desviei o olhar imediatamente, mas já era tarde demais. Ela começou a caminhar em minha direção. Ela se moveu com propósito, um pé plantado firmemente no chão antes que o outro se movesse — uma força implacável, imparável. Mas seus passos eram pequenos, o resultado era um andar agitado, nervoso. Eu não tenho certeza se já vi alguém andar assim antes.

Vamos, não faça isso comigo. Nem consigo me mover. Dê um tempo ao cara e caia fora, ok? Vamos. Vá embora!

Rita parou.

Os músculos dos meus braços começaram a tremer. Então, propositadamente, ela se afastou. De alguma forma ela tinha ouvido minha oração, fazendo um giro de noventa graus à minha frente e indo em direção ao general de brigada onde ele estava sentado debaixo da tenda. Ela estalou uma saudação superficial. Não tão desleixada a ponto de ser insultante, mas também não tão rígida que você poderia ouvir alguma coisa quebrando. Uma saudação para a Cadela do Campo de Batalha.

O general de brigada lançou um olhar duvidoso para Rita. Rita era sargento major. Na hierarquia militar, a diferença entre um general de brigada e um sargento-major era aproximadamente a mesma que a diferença entre uma refeição de quatro pratos em um restaurante esnobe e um buffet com tudo o que você pode comer. Recrutas como eu eram um fast food, completo com uma grande porção de batatas fritas. Mas não era assim tão simples. Nunca foi. Rita era militar dos Estados Unidos, o eixo da próxima operação, e um dos soldados mais importantes na face do planeta. Examinando tudo isso, era difícil dizer qual deles realmente tinha mais poder.

Rita ficou em silêncio. O general de brigada foi o primeiro a falar.

“Sim, sargento?”

“Senhor, seria possível que eu me juntasse ao TFM, senhor.”

A mesma voz alta do meu sonho, falando perfeitamente entoada.

“Você terá uma grande operação amanhã.”

“O meu pelotão nunca participou de um TFM desta forma, senhor, creio que a minha participação poderia ser vital para garantir a coordenação e execução bem-sucedidas da operação conjunta de amanhã.”

O general estava sem palavras. As Forças Especiais dos EUA em torno do campo começaram a gritar e aplaudir.

“Peço permissão para participar do TFM, senhor” ela disse.

“Permissão concedida.”

“Senhor, obrigado, senhor!”

Fez uma rápida saudação. Fazendo uma careta, ela deslizou entre as fileiras de homens olhando fixamente para o chão.

Ela escolheu um lugar ao meu lado e começou a fazer prancha isométrica. Eu podia sentir o calor saindo de seu corpo através do ar frio entre nós.

Eu não me movi. Rita não se moveu. O sol pairava alto no céu, banhando seus raios sobre nós, assando lentamente nossa pele. Uma gota de suor se formou na minha axila, e seguiu seu caminho lentamente até o chão. O suor começara a despontar na pele de Rita também. Porra! Eu me sentia como um frango amontoado no mesmo forno que o peru de Natal.

Os lábios de Rita fizeram o mais sutil dos movimentos. Uma voz baixa que eu podia ouvir.

“Tem alguma coisa no meu rosto?”

“O que?”

“Você está olhando para mim faz um tempo.”

“Eu não.”

“Eu pensei que talvez tivesse um alvo na minha testa.”

“Desculpe, não tinha… não é nada.”

“Oh tudo bem.”

“Merda — foco Kiriya! Você está relaxando!” Gritou o tenente.

Eu rapidamente estendi meu braço de volta em posição. Ao meu lado, Rita Vrataski, com a expressão desinteressada de alguém que nunca teve necessidade de contato humano durante toda a sua vida, continuou sua prancha isométrica.

O TFM terminou menos de uma hora depois. O general, esquecendo o gosto de bile em sua boca, retornou ao quartel sem mais instruções. A 17ª Companhia passou uma produtiva tarde de pré-batalha.

Não aconteceu do jeito que me lembrava. No meu sonho, nunca fiz contato visual com a Rita, e ela não tinha se juntado ao TFM. Talvez eu estivesse pensando demais, mas eu diria que ela fez isso apenas irritar o general. Ela poderia apenas querer saber como era essa tal de prancha isométrica. Talvez estivesse apenas curiosa.

Entretanto, uma coisa é certa. Rita Vrataski não era a vadia que todos diziam ser.

 

{4} “E ontem à noite, hein? Aquela merda foi foda.”

“Você que está dizendo.”

“Com aqueles reflexos, aquela garota deve estar escondendo molas naquele corpo pequeno.”

“Se ela ouvir você falando assim… melhor tomar cuidado.”

“Quem não gosta de um elogio? Estou apenas dizendo que ela era boa.” Enquanto falava, Yonabaru levantou seus quadris. Ver alguém se mover daquela forma em um Jacket era hilário.

Nosso pelotão estava na ponta norte da Ilha Kotoiushi, esperando a hora da emboscada, Jackets em modo de espera. Uma tela de cerca de meio metro de altura estava na nossa frente, projetando uma imagem do terreno. É o que eles chamam de camuflagem ativa. Supostamente nos tornava indetectável mesmo se um inimigo nos encarasse diretamente. Claro, poderíamos simplesmente ter usado uma pintura. O terreno tinha sido bombardeado, não importa em que direção você olhasse, veria apenas o mesmo deserto assolado.

Na maioria das vezes, os Mimics espreitavam em cavernas que se torciam profundamente sob o leito do mar. Antes de um ataque terrestre, disparávamos bombas anti-bunkers¹⁰ que penetravam no solo antes de detonar. Engulam essa. Cada uma dessas belezinhas custou mais do que eu conseguiria juntar em toda a minha vida. Mas os Mimics tinham uma estranha maneira de evitar as bombas. Estranho o suficiente para fazer você se perguntar se eles estavam recebendo uma cópia dos nossos planos de ataque com antecedência. Em teoria, podemos ter superioridade aérea, mas acabamos em uma guerra terrestre prolongada de qualquer forma.

Como o nosso pelotão fazia parte de uma emboscada, não estávamos usando os canhões de alto calibre que eram cada um do tamanho de um carro pequeno totalmente montado. O que tínhamos eram rifles de 20mm, granadas de ar de combustível, pile drivers e bazuca carregadas com três rodadas cada. Uma vez que era o pelotão de Ferrell, estávamos todos nos comunicando com ele. Olhei para o display do Jacket. Estava vinte e oito graus Celsius. A pressão de 1014 milibar. A força de ataque principal estaria em movimento a qualquer instante.

Ontem à noite, depois daquele infindável TFM, eu decidi ir à festa. Não era o que me lembrava de ter feito no sonho, mas eu realmente não estava com vontade de reler o livro. A parte sobre ajudar Yonabaru chegar até o beliche depois de tropeçar trás do quartel continuou igual.

Boatos rondavam o pelotão de que a namorada de Yonabaru também operava um Jacket. Com exceção das Forças Especiais, homens e mulheres lutam em pelotões separados, então nós não a veríamos no campo de batalha de qualquer maneira.

“Se… e eu estou apenas falando… mas se um de nós for morto…” Arrisquei.

“Eu me sentiria uma merda.”

“Mas ainda nos veríamos de qualquer maneira.”

“O paraíso não é um banco suíço, não dá para esconder dinheiro em alguma conta secreta lá em cima e esperar o retorno, você tem que fazer o que puder antes de ir para a batalha, essa é a primeira regra de um soldado.”

“Yeah, eu acho.”

“Mas estou te dizendo, você tem que dar uns pegas em alguém antes de ir. Carpe diem, irmão.”

“Carpe alguma coisa.”

“E quanto a Mad Wargarita?” Vocês estavam conversando durante o TFM, certo? Você daria uns pegas nela, eu sei que daria.”

“Nem chegaria nela.”

“Baixinha como ela é — aposto que ela é selvagem por dentro. Quanto menor melhor elas fodem, você sabe.”

“Mostre algum respeito.”

“Sexo não tem nada a ver com o respeito, desde o peão até o Rei, todo mundo quer se enfiar entre umas pernas. Tudo o que estou dizendo é que é assim que evoluímos —”

“Só cala a porra dessa boca.” Eu disse.

“Isso é maneira de falar comigo na frente do sargento? Estou magoado, sou muito sensível, só estou falando merda para distrair a cabeça, assim como todo mundo.”

“Ele tem razão”, mais alguém entrou no link de comunicação.

“Ei, eu não tenho vez?”

Era como se todos do pelotão estivessem esperando essa deixa. Todo mundo começou a falar de uma vez.

“Eu vou ter que apoiar Yonabaru.”

“Eu coloquei esta coisa para bloquear suas piadas, então pare de gastar sua voz.”

“Parece que Kiriya vai ter que intensificar o treinamento se ele não quer que Yonabaru faça ele ficar puto tão fácil.”

“Senhor, acho que preciso reiniciar meu Jacket, senhor! Não quero que ele caia durante a batalha!”

“Ah cara, eu mataria por um cigarro. Devo ter esquecido em meu outro Jacket.”

“Eu pensei que você parasse de fumar?”

“Ei, falem baixo! Estou tentando dormir um pouco!”

E assim foi. Uma conversa descontrolada no link de comunicação, como se fosse um chat na Internet. Tudo o que Ferrell podia fazer era suspirar e balançar a cabeça.

Quando você está tão nervoso que já não tem mais unhas para roer, pensar em algo que gosta ajuda a aliviar a pressão. Eles também nos ensinaram isso no treinamento. Claro, você tem um bando de animais como estes juntos, praticamente a única coisa que eles conseguem pensar é sexo. Havia apenas uma garota em quem poderia pensar, minha doce e pequena bibliotecária cujo rosto eu mal podia me lembrar. Quem saberia o que ela estava fazendo. Fazia meio ano que estava casada. Ela provavelmente já estaria grávida. Me alistei logo depois que me formei no colégio e ela quebrou meu coração. Eu não acho que as duas coisas estão relacionadas. Quem pode dizer?

Eu me alistei pensando que eu poderia fazer alguma diferença neste mundo fodido, apostando minha vida na batalha e vendo como o destino me tratava. Cara, eu era inocente. Acontece que minha vida nem vale o suficiente para comprar uma dessas bombas caras e as cartas que o destino me entregou nem fazem sentido.

“Que se foda. Se não vamos cavar trincheiras, não podemos pelo menos sentar?”

“Não dá para se esconder cavando trincheiras.”

“Esta camuflagem ativa não vale nada. Quem pode dizer que eles não enxergam melhor do que nós? De qualquer forma, eles não deveriam ser capazes de ver os helicópteros de ataque e mesmo assim os derrubam. Isso é um inferno.”

“Se eu der de cara com o inimigo, certeza que vou fazer um exame de vista nele.”

“Eu ainda acho que a trincheira é a maior invenção da humanidade.”

“Você pode cavar todas as trincheiras que quiser quando a gente voltar. Eu dou as ordens.”

“Não é assim que torturam prisioneiros?”

“Pago uma pensão para o homem que inventar uma forma de apertar o seu — merda, começou! Não deixem eles estourarem suas bolas, senhores!” Gritou Ferrell.

O ruído da batalha preencheu o ar. Eu podia sentir o estremecimento das cascas distantes se explodindo.

Volto minha atenção para Yonabaru. Depois do que aconteceu no TFM, talvez o meu sonho fosse apenas um sonho, mas se Yonabaru morresse ao meu lado no início da batalha, eu nunca me perdoaria. Repassei os acontecimentos do sonho na minha cabeça. O dardo tinha vindo a duas horas¹¹. Ele tinha perfurado a tela de camuflagem, deixando-a em farrapos, tudo cerca de um minuto após a batalha começar, é tudo ou nada.

Enrijeci meu corpo, pronto para ser derrubado a qualquer momento.

Meus braços tremiam. Uma coceira surgiu nas minhas costas. Umas rugas no interior do meu traje me incomodavam.

O que eles estão esperando?

A primeira rodada não atingiu Yonabaru.

O tiro que deveria tê-lo matado me acertou desta vez. Eu não tive tempo de mover um milímetro. Nunca vou esquecer a visão daquele dardo voando direto para mim.

 

{5} O livro que eu estava lendo se encontrava ao lado do travesseiro.

Era um romance de mistério sobre um detetive americano que era algum tipo de especialista no Oriente. Eu estava com meu dedo indicador encaixado em uma cena onde todos os jogadores chaves se encontram para o jantar em um restaurante japonês em New York.

Sem me levantar, olho cuidadosamente ao redor do quartel. Nada tinha mudado. A garota de biquíni ainda tinha a cabeça do primeiro ministro. O rádio ainda tocava do beliche superior. Do túmulo, um cantor nos aconselhou a não chorar por um amor perdido. Depois de esperar para ter certeza de que o DJ leria o relatório do tempo, eu me sentei.

Mudei de apoio quando me sentei na beira da cama.

Apertei meu braço o mais forte que pude. O ponto em que apertei começou a ficar vermelho. Doeu para caralho. As lágrimas borravam minha visão.

“Keiji, assina isso.”

Yonabaru esticou o pescoço do beliche superior.

“…”

“O quê? Ainda está dormindo?”

“Não. Você precisa da minha assinatura?”

Yonabaru desapareceu.

“Se importa se eu perguntar algo um pouco estranho?”

“O quê? Só preciso que você assine na linha pontilhada.” Sua voz veio de cima da cama. “Não precisa escrever mais nada, nenhum desenho engraçado do tenente nas costas nem nada.”

“Porque eu faria isso?”

“Não sei, foi o que eu fiz na primeira vez que assinei.”

“Não comece a comparar — ah, esquece. O que eu queria perguntar era, o ataque é amanhã, certo?”

“Claro, eles não mudam esse tipo de coisa.”

“Você nunca ouviu falar de alguém revivendo o mesmo dia outra vez, já?”

Houve uma pausa antes dele responder. “Você tem certeza de que está acordado? O dia depois de ontem é hoje, depois de hoje é amanhã, se não funcionasse assim, nunca chegariam ao Natal ou o Dia dos Namorados, então estaríamos fodidos, ou não…”

“Okay, certo.”

“Escuta, não tem nada demais na operação de amanhã.”

“…Certo.”

“Pense demais nisso e você vai se sobrecarregar — vai acabar perdendo a cabeça antes mesmo que eles tenham a chance de explodir seu cérebro.”

Olhei fixamente para a tubulação de alumínio da moldura da cama.

Quando eu era criança, a guerra contra os Mimics já tinha começado. Em vez de cowboys e índios ou polícia e ladrão, nós lutamos contra alienígenas usando armas de brinquedo que dispararam balas de plástico com mola. Elas picavam um pouco quando batiam, mas era só isso. Mesmo de perto, elas mal machucavam. Sempre banquei o herói, levando o tiro pela equipe. Eu ia corajosamente na linha de fogo, tomando uma bala atrás da outra. Dava um pequeno salto a cada sucesso, realizando uma dança interpretativa improvisada. Eu era muito bom nisso. Inspirado pela morte do herói, seus companheiros lançariam um contra-ataque ousado. Com seu nobre sacrifício, garantiria a salvação da humanidade. A vitória seria declarada, e as crianças que eram os vilões voltariam para o lado humano e todos iriam comemorar. Não havia nenhum jogo como esse.

Fingir ser um herói morto em batalha era uma coisa. Morrer como herói em uma guerra real era outra. À medida que envelhecia, compreendia a diferença e sabia que não queria morrer. Nem mesmo em um sonho.

Em alguns pesadelos você não pode acordar, não importa quantas vezes tente. Eu, eu estava preso em um pesadelo, e não importa quantas vezes acordasse, ainda estava preso. Saber que estava preso em um loop que não poderia sair foi a pior parte de tudo. Eu lutei contra o pânico.

Mas isso estava realmente acontecendo comigo de novo?

O mesmo dia que eu já vivi duas vezes estava se desdobrando novamente ao meu redor. Ou talvez fosse tudo um pesadelo, afinal. Claro que as coisas estariam acontecendo do jeito que eu me lembrava delas. Estava tudo na minha cabeça, então por que não?

Isso era ridículo. Apertei o colchão.

Eu tinha sonhado com aquele ponto negro voando para mim? O dardo que estilhaçou meu peitoral e me perfurou era coisa da minha cabeça? Se eu tivesse imaginado o sangue e a tosse de pedaços de pulmão?

Deixe-me dizer o que acontece quando seus pulmões são esmagados. Você se afoga, não na água, mas no ar. Respire o quanto quiser, pulmões esmagados não podem passar o oxigênio que seu corpo precisa na corrente sanguínea. Todos ao seu redor, seus amigos estão respirando sem pensar duas vezes, enquanto você se afogar sozinho em um mar de ar. Eu nunca soube disso até que aconteceu comigo. Nunca tinha ouvido falar sobre isso. Definitivamente não inventei isso. Realmente aconteceu.

Não importa se eu nunca contar a ninguém, já que ninguém acreditaria em mim. Ainda assim seria verdade. A sensação que se fixou em minha mente era prova suficiente disso. A dor que dispara através do seu corpo como um raio, pernas tão malditamente pesadas que parece que foram recheadas com sacos de areia, um terror tão forte que esmaga seu coração — que não vem da imaginação e dos sonhos. Eu não tinha certeza sobre como era possível, mas eu tinha sido morto. Duas vezes. Sem dúvida.

Eu não me importava de ouvir Yonabaru contar uma história que já tinha ouvido antes. Inferno, faria isso dez vezes, cem, quanto mais, melhor. Nossas rotinas diárias eram todas preenchidas com a mesma merda repetitiva. Mas voltar para a batalha? Não, obrigado.

Se eu ficasse aqui, seria morto. Se morria antes ou depois de Yonabaru não importava. Não havia jeito de sobreviver ao tiroteio. Tinha que ir embora. Tinha que estar em qualquer lugar, menos aqui.

Até os santos têm limites para sua paciência, e eu não era santo. Nunca fui um para acreditar cegamente em Deus, Buda, qualquer uma dessas merdas, mas se alguém lá em cima me deu uma terceira chance, eu não iria jogar ela no lixo. Se me sentasse aqui olhando para o beliche de cima, o único futuro que eu teria era ir para o saco. Se não quisesse morrer, tinha que me mover. Mover primeiro, pensar depois. Assim como nos ensinaram no treinamento.

Se hoje fosse uma repetição de ontem, Ferrell estaria aqui a qualquer minuto. A primeira vez que ele apareceu eu estava tirando o lixo, na segunda, eu estava conversando com Yonabaru. Depois disso, iríamos para uma ridícula sessão de TFM e voltaríamos exaustos. Isso me fez pensar. Todos no 17º Blindado estariam naquele TFM. Não só isso, todos os outros na base com o tempo em suas mãos seriam reunidos em torno do campo para assistir. Não poderia pedir uma chance melhor para escapar da base. Considerando o quão cansado ficaria após o treino, era a única chance que eu provavelmente teria.

Me machucar provavelmente vai ser o suficiente. Eles não enviariam um soldado ferido para TFM. Eu precisava de uma lesão que parecesse ruim o suficiente para me tirar do TFM, mas nada tão ruim para me incapacitar. Um homem com até mesmo uma ferida rasa na cabeça jorraria sangue como um porco no abate. Foi uma das primeiras coisas que nos ensinaram em Primeiros Socorros. Na época, me perguntava de que merda ia servir os primeiros socorros depois que um dardo Mimic cortar sua cabeça fora, mas acho que você nunca sabe quando um pedaço de conhecimento vai servir para alguma coisa. Tinha que fazer isso logo.

Porra! Eu tinha um dia inteiro para repetir, mas não tinha tempo suficiente quando mais precisava. Aquele sargento estúpido estava a caminho. Rápido! Rápido!

“O que é todo esse barulho aí em baixo?” Yonabaru perguntou casualmente.

“Tenho que sair por um minuto.”

“Espera aí! Ei! Preciso da sua assinatura!”

Eu mergulhei no espaço entre os beliches sem sequer me preocupar em amarrar meus sapatos. Batido de concreto sob meus pés, me virei imediatamente antes de esbarrar no cartaz da moça no maiô. Passei pelo cara com a revista pornô deitado em sua cama.

Eu não estava indo para qualquer lugar em particular. Minha prioridade era me certificar que eu não daria de cara com Ferrell. Tinha que ir para algum lugar fora de vista onde eu poderia me machucar e então aparecer coberto de sangue mais ou menos quando Yonabaru e Ferrell estivessem terminando a conversa. Para um plano que tive que criar na hora, não era muito ruim.

Merda. Devia ter trazido a faca de combate que guardava debaixo do travesseiro. Era inútil contra Mimics, mas para abrir latas ou cortar madeira ou pano, era algo que qualquer soldado que se respeitasse deveria ter. Me cortei com aquela faca mil vezes durante o treino. Não teria tido qualquer dificuldade em cortar a cabeça com ela.

Tinha conseguido sair da entrada do quartel e queria colocar tanto espaço entre mim e o QG quanto fosse possível. Deixei minha velocidade relaxar enquanto dobrava a esquina do prédio.

Havia uma mulher ali. Timing terrível.

Ela grunhiu enquanto empurrava um carrinho empilhado com batatas. Eu a conhecia: Rachel Kisaragi, uma civil da Cafeteria No. 2. Uma bandana branca como a neve, bem dobrada em um triângulo, cobria seu cabelo ondulado preto. Ela tinha pele saudável e bronzeada e seios maiores do que a média. Sua cintura era estreita. Dos três tipos de mulheres que a raça humana vangloriava — a gostosa, a caseira e as gorilas que você não podia fazer nada a não ser enviar para o exército — eu a colocaria na categoria gostosa sem nem piscar.

Em uma guerra que já durava vinte anos, não havia dinheiro suficiente para que todo o pessoal de apoio militar fosse empregado do governo. Mesmo em uma base nas linhas de frente, eles preencheram o maior número possível de papéis não-combatentes com civis. A Dieta¹² já havia debatido a possibilidade de entregar ao setor privado o transporte de armamento de guerra em zonas não-combatentes. As pessoas brincavam que, nesse ritmo, não demoraria muito para que eles terceirizassem a luta para os civis e acabassem logo com tudo isso.

Ouvi dizer que Rachel era mais nutricionista do que cozinheira. A única razão pela qual a reconheci era que Yonabaru estava atrás da sua saia antes de se comprometer com a namorada atual. Aparentemente ela não gostava de caras que eram muito atirados, o que praticamente descartou Yonabaru.

Eu sorri com esse pensamento e uma montanha de batatas bateu em mim. Desesperadamente, coloquei o meu pé direito para retomar o equilíbrio, mas deslizei em uma das batatas e caí de bunda. Uma avalanche de batatas golpeou meu rosto, uma após a outra, como socos ansiosos de um boxeador novato em seu caminho para o campeonato mundial de pesos pesados. O carro de metal entregou o golpe de final, um de direita bem naquele lugar.

Desmoronei no chão com um baque suficientemente forte para se parecer com uma granada de ar. Passou um tempo até eu poder respirar.

“Você está bem?”

Eu gemi. Pelo menos parecia que nenhuma das batatas tinha atingido Rachel.

“Eu… acho que sim.”

“Desculpe por isso, não consigo ver onde estou indo quando estou empurrando essa coisa.”

“Nah, não é culpa sua, eu saltei bem na sua frente.”

“Ei, eu não te conheço?” Rachel, com seus olhos verdes, me olhou com pena.

Um sorriso envergonhado se espalhou pelo meu rosto. “Parece que nos encontramos de novo…”

“Eu sabia, você é o novo recruta do 17º.”

“Sim. Desculpe por todos os problemas”, eu disse. Uma batata rolou da minha barriga.

Com uma mão no quadril, Rachel examinou o dano. Suas delgadas sobrancelhas se afundaram. “Não poderia ter se espalhado mais mesmo que você tentasse.”

“Desculpa.”

“É culpa delas por serem tão redondas.” Ela arqueou as costas um pouco para que seu peito se estendesse. Era difícil de ignorar.

“É… acho que sim.”

“Você já viu batatas tão redondas assim?”

Eu não tinha. Nem entre as espalhadas pelo chão.

“Não deveria levar tanto tempo para juntá-las se você ajudar.”

“Não — quero dizer, sim.”

“Qual dos dois?”

O relógio estava passando. Se eu não saísse daqui agora, estaria morto amanhã. Não tinha tempo para ficar pegando batatas — ou o que quer que fosse. Mas outra coisa estava me atrasando, a atração que eu sentia por esta garota desde a primeira vez que a conheci, logo após minha chegada na base.

Me sentei no chão, parando e fingindo estar com dor.

Eu estava prestes a dar minha resposta quando ouvi o som de passos precisamente medidos se aproximando por trás.

“O que você está fazendo?” Veio um rosnado como um cão das portas do Inferno. Ferrell.

Ele tinha aparecido na esquina do quartel e agora estava examinando as batatas espalhadas pelo concreto com desaprovação.

“Eu-eu estava empurrando meu carrinho, e —”

“Foi você que fez isso, Kiriya?”

“Senhor, sim senhor!” Eu me levantei. Uma onda de vertigem me invadiu. Ele revirou os olhos e fixou seu olhar em mim.

“S-Senhor?”

“Você está ferido, me deixa ver.”

“Não é nada, estou bem.”

Ferrell se aproximou e tocou minha cabeça, bem na borda do cabelo.

Uma dor aguda atravessou meu couro cabeludo. Seus dedos como salsicha abriram a ferida. O sangue quente jorrou da minha testa como a batida de uma banda de rock invisível. O córrego escorreu preguiçosamente pelo lado do meu nariz, tocou o canto da minha boca, em seguida, se pendurou brevemente na ponta do meu queixo até que um gotejamento regular começou. Uma rosa de sangue fresco floresceu no concreto. O cheiro forte de ferro encheu minhas narinas. Rachel ofegou.

“Hrmm, ótimo, uma ferida limpa, em que você bateu?”

Rachel se intrometeu. “Meu carrinho caiu, desculpe.”

“Foi assim que aconteceu?”

“Na verdade, fui eu que esbarrei nela, mas sim, foi isso mesmo.”

“Bem, não é tão ruim quanto parece, você vai ficar bem.” Disse Ferrell, dando uma palmada na parte de trás da minha cabeça. Um spray de sangue voou da minha testa, manchando minha camisa. Me deixando onde estava, ele caminhou até a esquina do quartel e gritou, alto o suficiente para assustar as cigarras das paredes, “Yonabaru! Traga a sua bunda até aqui!”

“Há alguma coisa que um soldado precisa fazer? Estou aqui para… Oh, bom dia Rachel, sargento, outro belo dia de serviço, eu creio? Então, bem, parece nasceram batatas do concreto.”

“Feche essa boca e traga alguns homens aqui para pegar isto.”

“Quem, eu?”

“Bem, ele não vai pegar nada, vai?” Ferrell acenou com a cabeça na minha direção.

Yonabaru ficou boquiaberto. “Cara, o que te bateu? Parece que você foi para o ringue com um irlandês de quinhentos quilos.” Ao sargento: “Espere, isso significa que Keiji foi quem derrubou tudo isso?” Comigo de novo: “Que forma merda de começar o dia e arruinar a manhã de um cara.”

“Qual é o problema, não quer ajudar?”

“Não seja tolo, por você eu pegaria qualquer coisa, batatas, abóboras, minas terrestres —”

“Chega! Há alguém neste resto de pelotão cuja cabeça não está enfiada no cu?

“Isso dói Sargento, você vai ver, trarei os homens mais trabalhadores do 17º.”

“Kiriya, pare de ficar por aí parado como um espantalho e arrasta essa bunda até a enfermaria! Você está dispensado do TFM de hoje.”

“TFM, quem disse alguma coisa sobre o TFM?”

“Eu disse. Alguém se afundou até o joelho em merda de porco no PX ontem à noite. Isso pode não ter nada a ver com você, mas mesmo assim, às onze e nove, você vai se reunir no Campo de Treinamento Nº 1 em seu equipamento de quarta camada para Treinamento Físico.”

“Você tem que estar brincando! Nós vamos para a batalha amanhã, e você está nos mandando para o TFM?”

“Isso é uma ordem, cabo.”

“Senhor, vamos reportar ao Campo de Treinamento Nº 1 com 900 equipamentos, senhor!” Mas uma coisa, Sargento. Nós fizemos aquela invasão de licor por anos. Porque nos pararam agora?”

“Você realmente quer saber?” Ferrell revirou os olhos.

Deixando a conversa que já ouvi antes, fugi para a enfermaria.

 

{6}Eu estava parado no portão que separava a base do mundo exterior. O guarda que verificou minha ID levantou suas sobrancelhas duvidosamente.

Havia uma camada extra de segurança na base graças à visita dos soldados dos EUA. Embora os japoneses supervisionassem a segurança de base, o equilíbrio de poder com os EUA os impedia de interferir em qualquer questão sob a jurisdição americana. Felizmente, a segurança dos EUA não tinha nenhum interesse em alguém que não era um deles.

Sem apresentar um requerimento ao comandante, Keiji Kiriya não poderia deixar a base. Mas os soldados americanos podiam ir e vir como quisessem, e tudo o que tinham de fazer era mostrar um ID. Todo mundo usava o mesmo portão, então se o guarda é americano, ele pode me deixar passar, sem perguntas. Tudo o que se importavam era em manter os indesejáveis longe de seu precioso esquadrão das Forças Especiais. Um recruta tentando desertar não iria chamar a atenção.

O guarda não devia ter visto muitos cartões de identificação japoneses, pois olhou para o meu por um longo tempo. A máquina que verifica IDs apenas registra quem passa pelo portão. Não precisa entrar em pânico. Por que mudariam o sistema no dia anterior a um ataque? Os músculos do meu abdômen ficaram tensos. O guarda estava olhando para trás e para frente, alternando entre eu e o cartão, comparando a imagem borrada com o meu rosto.

O corte queimado na minha têmpora. O cirurgião que cuidou de mim na enfermaria me deu três pontos sem qualquer analgésico. Agora estava mandando pontadas de dor através de meu corpo. Os ossos do meu joelho rangiam.

Eu estava desarmado. Sentia falta de minha faca, quente e confortável sob o meu travesseiro. Se tivesse isso comigo, eu poderia imobilizar esse cara com um half nelson¹³ e — pensar assim não iria me levar a lugar nenhum. Estiquei minhas costas. Tenho que ficar calmo. Se ele olhar para você, olhe de volta.

Reprimindo um bocejo, o guarda apertou o botão para abrir o portão. A porta para a liberdade estava aberta.

Me virei lentamente para olhar para trás quando passei pela barra amarela. Lá, à distância, estava o campo de treinamento. A brisa do mar, pesada com o cheiro do oceano, soprou pelo campo em direção ao portão. No outro lado da cerca, os soldados do tamanho das formigas realizavam agachamentos diminutos e em miniatura. Eram os soldados com quem eu tinha comido e treinado. Eram meus amigos do 17º. Suprimi a nostalgia que se erguia dentro de mim. Caminhei, sem pressa, o vento úmido soprando contra meu corpo. Continue andando até que você esteja fora da vista do guarda. Não corra. Só um pouquinho mais. Dobrei a esquina. Disparei a correr.

Quando comecei a correr, não parei.

Eram quinze klicks¹⁴ da base a Tateyama, um distrito próximo. Mesmo se fizesse uma rota longa, daria no máximo vinte klicks. Uma vez estivesse lá, eu poderia mudar minhas roupas e pegar os suprimentos que eu precisava. Não poderia arriscar trens ou a estrada, mas uma vez que eu chegasse na cidade de Chiba eu estaria livre. Nem o exército nem a polícia revistariam os shoppings subterrâneos e as favelas de lá.

Foram cerca de oito horas até a reunião do Esquadrão 1830. Provavelmente quando descobriram que eu estava desertando. Não sei se eles enviariam carros ou helicópteros atrás de mim, mas ao anoitecer, planejo ser apenas mais um rosto na multidão. Lembro-me do treinamento que fizemos no sopé do Monte Fuji. Sessenta quilômetros em plena marcha. Cruzar a península do Boso em meio dia não seria um problema. No momento em que a batalha começasse amanhã, já estaria longe dos dias que se repetem e das mortes brutais com as quais eles se encerram.

O sol pairava alto no céu, me banhando com uma luz ofuscante. Armas automáticas de cinquenta e sete milímetros cobertas em lonas brancas ao longo do paredão com intervalos de cem metros entre cada. Raias vermelho-marrons de ferrugem manchavam as antigas placas de aço da base. As armas haviam sido instaladas ao longo de todo o litoral quando os Mimics chegaram ao continente.

Na infância, quando pus os olhos nessas armas, pensei que eram as coisas mais legais que já tinha visto. O acabamento preto de seu aço dava uma sensação irracional de confiança para mim. Agora que vi a batalha real, sabia com toda certeza que armas como estas nunca poderiam repelir um ataque dos Mimics. Essas armas se moviam como os dinossauros que eram. Jamais poderiam ter esperança de parar um ataque de Mimic. Que piada.

Eles ainda tinham equipes atribuídas para elas que as inspecionava uma vez por semana. A burocracia ama o desperdício.

Talvez a humanidade fracasse.

O pensamento veio do nada, mas não consegui esquecê-lo.

Quando disse aos meus pais que tinha me alistado, eles quiseram que eu me juntasse à Guarda Costeira. Disseram que eu ainda teria chance de lutar mesmo sem entrar em batalha. Estaria executando a tarefa vital de defender as cidades onde as pessoas trabalhavam e viviam.

Mas não queria lutar contra os Mimics para salvar a humanidade. Já vi o bastante disso nos filmes. Poderia gastar meus dias procurando esse desejo que nunca iria encontra-lo. O que encontrei, em vez disso, foi um quebra-cabeças que não dava para resolver, não importa quantas vezes tentasse. Algo enterrado sob uma pilha de peças que não se encaixavam. Isso me irritou.

Eu era fraco. Não consegui nem fazer com que a mulher que eu amava — a bibliotecária — me olhasse nos olhos. Pensei que a maré da guerra me mudaria, me transformaria em algo que funcionasse. Posso ter me enganado em acreditar que encontraria a última peça do quebra-cabeça que precisava para completar Keiji Kiriya no campo de batalha. Mas nunca quis ser um herói, amado por milhões. Nem por um minuto. Se pudesse convencer os poucos amigos que tenho que eu era alguém que poderia fazer algo neste mundo, que poderia deixar uma marca, não importa quão pequena, já seria o suficiente.

E olhe onde isso me levou.

O que meio ano de treinamento fez comigo? Agora possuo um punhado de habilidades que não eram boas para merda nenhuma em batalha e um abdômen definido. Eu ainda sou fraco e o mundo ainda está fodido. Mãe, pai, desculpa. Demorei tanto tempo para perceber o óbvio. Irônico que fugi do exército antes de perceber isto.

A praia está deserta. A Guarda Costeira deve ter se ocupado evacuando este lugar nos últimos seis meses.

Depois de pouco menos de uma hora de corrida, cheguei na beira do paredão. Corri cerca de oito quilômetros, cobrindo metade do caminho para Tateyama. Minha camisa estava escura de suor. A gaze enrolada ao redor da minha cabeça estava se soltando. Uma brisa suave do mar — refrescante depois do vento quente que varria a base — acariciou a parte de trás do meu pescoço. Se não fosse pelas metralhadoras, objetos roubados de algum anime esquecido há muito tempo, se intrometendo no mundo real, teria sido a própria imagem de um resort tropical.

A praia estava repleta de cascas de fogos de artifício — o tipo bruto que você lança com um tubo de plástico. Ninguém seria louco o suficiente de chegar tão perto de uma base militar para disparar fogos de artifício. Eles devem ter sido deixados por algum bastardo tentando avisar os Mimics sobre o ataque à Península de Boso. Havia ativistas anti guerra por aí que estavam convencidos de que os Mimics eram criaturas inteligentes, e estavam tentando abrir uma linha de comunicação com eles. A democracia não é ótima?

Graças ao aquecimento global, toda esta faixa de praia estaria abaixo do nível do mar quando a maré subisse. Ao anoitecer, esses malditos fogos seriam lavados pelo mar e esquecidos. Ninguém jamais saberia. Chutei um dos tubos o mais forte que pude.

“Ora, o que é isso? Um milita?”

Eu me virei.

Fazia tempo que não ouvia falar japonês. Estava tão perdido em meus pensamentos, não sabia que alguém tinha vindo atrás de mim.

Duas figuras, um homem idoso e uma menininha, estavam em cima do aterro. A pele do homem velho brilhava oleosa. Em sua mão esquerda, agarrava uma lança de metal de três pontas, como a de um conto de fadas. O que ele está fazendo com um tridente? A menina — que tinha idade para estar na escola primária — apertou sua mão direita firmemente. Se escondendo atrás da perna do homem, a menina olhou para mim sem sobressalto sob seu chapéu de palha. O rosto debaixo do chapéu era muito branco para ter passado muito tempo cozinhando sob o sol.

“Lamento num ser um conhecido.”

“Sou da base de Flower Line.” Droga! Minha boca é mais rápida que meu cérebro.

“Ah!”

“O que, eh, traz vocês dois aqui?”

“Os peixe num querem ser pescado, então nóis tá indo pra Tóquio”.

“O que aconteceu com a Guarda Costeira?”

“Dizem que os bicho venceram em Okinawa. Essas corvinas¹⁵ tão em toda parte. Se o exército cuidá deles, a gente vai vivê mais tranquilo.”

“Sim.” Corvina era obviamente uma gíria local para Mimics.

Pessoas comuns nunca tiveram a chance de ver um Mimic com seus próprios olhos. Na melhor das hipóteses, eles vislumbravam um cadáver apodrecido na praia, ou talvez um que foi pego em uma rede de pesca e morreu. Mas tudo o que restaria seria uma casca vazia. É por isso que muitas pessoas pensavam Mimics eram algum tipo de criatura marinha.

Eu só entendi cerca de 70 por cento do que o velho disse, mas ouvi o suficiente para saber que a Guarda Costeira tinha saído da área. Nossa derrota em Okinawa deve ter sido mais séria do que eu pensava. Ruim o suficiente para que eles juntassem nossas forças na linha de Uchibo. Todos tinham sido redistribuídos com foco em grandes cidades e áreas industriais.

O velho sorriu e assentiu. A menina o observava com os olhos arregalados como pires, testemunha de um espetáculo raro. Ele colocou muita esperança nas tropas da UDF estacionadas na Flower Line. Não que eu tivesse me alistado para defendê-lo ou qualquer outra pessoa. Ainda assim, me senti mal.

“Cê num tem um tabaco aí não, filho? Desde que os milita se foram, num vi mais nenhum.”

“Desculpe, não fumo.”

“Então num se preocupa não.” O velho olhou para o mar.

Não havia muitos soldados na Infantaria Armada que sofressem de dependência à nicotina. Provavelmente porque você não pode fumar durante a batalha, quando você mais precisa.

Fiquei em silêncio. Não queria fazer nem dizer nada estúpido. Não podia deixá-lo descobrir que eu era um desertor. Eles matam desertores. Escapar dos Mimics apenas para ser morto pelo exército não fazia muito sentido.

A menina puxou a mão do velho.

“Ela cansa muito fácil, mas tem uns olho bom. Se tivesse nascido menino, ia ser um pescador dos bom.”

“Sim.”

“Só mais uma coisinha antes da gente ir embora… Nunca vi umas coisa assim… corri lá de casa o mais rápido que deu e te achei aqui … O quê que é isso? Tem a ver com as corvina?” Ele levantou o braço.

Meus olhos seguiram seus dedos quando ele apontou. A água ficou verde. Não o verde esmeralda que você veria na costa de alguma ilha no Pacífico Sul, mas um verde espumante e turvo, como se um petroleiro cheio de sorvete de chá verde tivesse encalhado e derramado sua carga para na baía. Um peixe morto flutuava nas ondas, uma mancha prateada brilhante.

Reconheci aquele verde. Vi isso nos monitores durante o treinamento. Os Mimics comiam terra, assim como minhocas. Mas ao contrário das minhocas, o solo que passa através de seus corpos e excretado era tóxico. A terra de que os Mimics se alimentavam morria e se transformava em deserto. Os mares ficavam verdes.

“Num é como as maré vermelha que já vi.”

Um grito agudo encheu o ar. Minha cabeça reagiu a esse som familiar.

Com as sobrancelhas ainda enrugadas, a cabeça do velho traçava um arco enquanto navegava pelo céu. Os pedaços quebrados de sua mandíbula e pescoço pintavam o chapéu de palha da menina de vermelho vívido. Ela não percebeu o que aconteceu. Um dardo sai do corpo de um Mimic a duzentos metros por segundo. O crânio do velho saiu voando antes que o som do dardo chegasse até nós. Ela lentamente olhou para cima.

Uma segunda rajada cortou o ar. Antes que seus grandes e escuros olhos pudessem ver a morte de seu avô, o dardo a rasgou, um ato nem de misericórdia nem de desgosto.

Seu pequeno corpo foi obliterado.

Abalado pela explosão, o corpo sem cabeça do velho balançou. Metade do seu corpo estava manchado de um escarlate profundo. O chapéu de palha girou no vento. Meu corpo retrocedeu. Eu não conseguia me mexer.

Um cadáver inchado de rã estava à beira da água.

Esta costa estava definitivamente dentro do perímetro de defesa da UDF. Não ouvi relatos de barcos da patrulha sendo afundados. A base adiante estava viva e bem. Não poderia haver Mimic aqui. Uma afirmação de que os dois cadáveres deitados ao meu lado certamente teriam contestado, se pudessem. Mas eles estavam mortos, bem diante dos meus olhos. E eu, sua única esperança para a defesa, acabei de abandonar a única unidade militar na área capaz de impedir essa invasão.

Estava desarmado. Minha faca, minha arma, minha Jacket — tudo estava na base. Quando atravessei aquele portão há uma hora, deixei minha única esperança de defesa para trás. Trinta metros para a arma mais próxima de 57mm. Dentro da distância de funcionamento. Eu sabia como atirar uma dessas, mas ainda tinha a lona para tirar. Nunca daria tempo. Insiro meu cartão de identificação na plataforma, digito meu código de acesso, alimento um cinto de munição, solto a alavanca de bloqueio de rotação ou não se moveria para eu mirar, subo no assento, o punho da manivela está enferrujado — Foda-se. Atira, filho da puta! Atira!

Eu conhecia o poder de um Mimic. Eles pesam várias vezes mais do que uma Jacket. Estruturalmente tinham muito em comum com uma estrela-do-mar. Havia um endoesqueleto apenas abaixo da pele, e precisa de munição de 50mm ou mais para perfura-los. Eles não se contêm apenas porque um homem está desarmado. Eles te perfuram sem hesitar.

“Foda-se.”

O primeiro dardo atravessou minha coxa.

O segundo abriu uma ferida nas minhas costas.

Eu estava muito ocupado tentando manter os órgãos que caíam para notar o terceiro.

Eu apaguei.

 

{7} O livro que eu estava lendo se encontrava ao lado do travesseiro. Yonabaru estava contando o pacote de confissões no beliche superior.

“Keiji, assina isso.”

“Cabo, você tem uma arma reserva, não tem?”

“Tenho.”

“Posso ver?”

“Desde quando você é um viciado em armas?”

“Não é isso.”

Sua mão desapareceu no beliche superior. Quando voltou, segurava um reluzente pedaço de metal preto.

“Está carregada, então presta atenção para onde você aponta.”

“Ah, certo.”

“Se você se tornar cabo, pode trazer seus brinquedos para a cama e ninguém vai poder dizer nada. Uma arma dessas não é boa contra um Mimic de qualquer modo. As únicas coisas que um soldado precisa são seus 20mm e o lançador de foguetes, três tiros de cada. A banana do lanche não conta. Agora dá para você assinar isso?”

Eu estava muito ocupado removendo a trava de segurança para responder.

Pus minha boca em torno do cano, imaginando os 9mm prontos para explodir no aço duro e frio.

Puxei o gatilho.

 

{8} O livro que eu estava lendo se encontrava ao lado do travesseiro. Suspirei.

“Keiji, assina isso.” Yonabaru esticou o pescoço do beliche superior.

“Sim senhor.”

“Escute, não tem nada demais na operação de amanhã, não se preocupe. Pense demais nisso e você vai se sobrecarregar — vai acabar perdendo a cabeça antes mesmo que eles tenham a chance de explodir seu cérebro.”

“Eu não estou me preocupando.”

“Ei cara, não precisa se envergonhar, todos ficam nervosos pela primeira vez, é como transar. Até que tenha feito, você não consegue tirar isso da cabeça. Tudo que você pode fazer é passar o tempo se masturbando.”

“Discordo.”

“Ei, você está falando com um homem que conhece o jogo.”

“E se — apenas hipoteticamente — você continuasse repetindo sua primeira vez várias vezes?”

“De onde você tirou esta merda?”

“Só estou falando hipoteticamente, como reiniciar todas as peças em um tabuleiro de xadrez. Você faz sua jogada e então tudo volta para onde começou.”

“Depende.” Ainda pendurado no beliche superior, seu rosto se iluminou. “Você está falando sobre foder ou lutar?”

“Esquece o sexo.”

“Bem, se me pedissem para voltar e lutar em Okinawa de novo, eu os mandaria ir tomar no cu. Eles poderiam me mandar para um pelotão no inferno que u não voltaria para lá.”

E se você não tivesse escolha? E tivesse que reviver sua morte várias vezes?

No final do dia, todo homem tem que limpar sua própria merda. Não tem ninguém para fazer as decisões por você. E em qualquer situação que esteja, isso é apenas outro fator em sua decisão. O que não quer dizer que todo mundo tem a mesma gama de opções dos outros. Se há um cara lá fora com um ás na manga, é certeza que tem outro que está na merda. Às vezes você corre para um beco sem saída. Mas você andou cada passo que te levou até lá por conta própria. Mesmo quando te colocam na forca, você tem a opção de enfrentar sua morte com dignidade ou chutar e implorar por piedade.

Mas não tive essa escolha. Podia ter uma cachoeira gigantesca logo após Tateyama, a borda do mundo, e eu nunca saberia. Dia após dia vou para a frente e para trás entre a base e o campo de batalha, onde sou esmagado como um inseto rastejando no chão. Enquanto o vento soprar, vou nascer e morrer de novo. Não posso levar nada comigo para a minha próxima vida. As únicas coisas que consigo manter são a minha solidão, um medo que ninguém pode entender, e a sensação do gatilho no meu dedo.

É um mundo fodido, com regras fodidas. Então foda-se.

Peguei uma caneta ao lado do meu travesseiro e escrevi o número “5” na parte de trás da minha mão esquerda. Minha batalha começa com este número.

Vamos ver quantos consigo levar comigo. E daí que o mundo me deu um monte de merda? Vou dar a volta nele. Vou me esquivar dos dardos por um triz. Vou matar Mimics com um único golpe. Se Rita Vrataski é uma deusa no campo de batalha, vou observar e aprender até chegar no seu nível de matança. Tenho todo o tempo do mundo.

Nada melhor para fazer.

Quem sabe? Talvez algo mude. Ou talvez eu encontre uma maneira de mijar na cara desse mundo maldito.

Isso já seria bom o bastante.


Notas:

1 A arma recebe o mesmo nome do equipamento de construção que finca estacas no solo para fazer fundações.

2 Tipo de radar que usa o como princípio o Efeito Doppler para detectar objetos entre outras coisas.

3 Força de Defesa Unida.

4 Post Exchange: um tipo de loja de varejo encontrada em instalações militares dos Estados Unidos.

5 Um dentre os muitos apelidos da Rita. Wargarita louca. Junção das palavras war: guerra e margarita: bebida alcoólica.

6 Treinamento Físio Militar.

7 Estrada ao sul da península de Boso cercada por flores.

8 Killed in Action: morto em combate.

9 Livro infantil que conta a história de uma menina órfã enviada por engano para a fazenda de um príncipe.

10 Anti-bunkers são um tipo de bomba projetado para penetrar alvos endurecidos ou enterrados no subsolo, como bunkers militares.

11 Isso é uma forma de orientação por horas e não uma indicação do tempo. Essa forma de orientação é bastante no decorrer do livro.

12 Poder legislativo japonês.

13 Golpe de luta livre que imobiliza o adversário através de uma chave de braço.

14 Klick é normalmente utilizado como abreviação para quilômetros pelos militares para facilitar a comunicação.

15 Tipo de peixe.



Comentários