Volume 1 – Arco 1
Capitulo 17: Três Mentes - Parte 1
A biblioteca sempre fora um dos refúgios de Tiruli. Ali, entre as prateleiras altas e os livros empoeirados, ele se sentia em paz. O cheiro de papel envelhecido e o silêncio, quebrado apenas pelo soprar das páginas, eram como um abraço acolhedor. Era um dos poucos lugares onde ninguém o interrompia, onde podia se perder nas palavras e imaginar futuros possíveis.
Naquela tarde, caminhava entre as estantes, os dedos deslizando suavemente pelas lombadas gastas. Seus olhos percorriam os títulos com carinho, como quem buscava algo que ainda não sabia nomear. Magia natural. A conexão com o mundo, com as raízes, os ciclos, os seres ocultos nos cantos do tempo.
Ele sonhava em ser escritor. Queria descrever paisagens que fizessem o leitor respirar fundo, pintar com palavras o retrato da elfa que talvez um dia amasse, capturar em texto e imagem a dança silenciosa de animais místicos sob a névoa da manhã. Um dia, visitaria Sonark, no continente de Zhorá — onde dizia-se que a brisa tinha aroma de flores esquecidas e criaturas mágicas caminhavam ao lado dos vivos.
Foi então que um ruído baixo, mas distinto, o tirou de seu devaneio.
Vozes vindas do outro lado da estante, na seção de mistérios antigos. Ele parou por um momento, os olhos estreitando-se enquanto ouvia a discussão. A primeira voz era feminina, e soava irritada, quase incomodada.
— Levanta daí, garoto! — disse ela, a frustração clara na sua entonação.
— Não quero — respondeu a segunda voz, mais calma, quase arrastada, mas cheia de uma resistência que Tiruli não pôde deixar de perceber.
Tiruli inclinou a cabeça, reconhecendo os donos das vozes. Naala, a Empata e Glomme, o Bambi Verde, sempre tão despreocupado.
Com passos silenciosos, ele se aproximou do canto da estante e espiou o outro lado dela. Naala estava de pé, braços cruzados, seu corpo tenso, e o rosto estampado com uma expressão impaciente. Glomme, por sua vez, estava sentado no chão, cercado por livros espalhados por toda parte. Sua postura desleixada parecia não condizer com a intensidade do momento.
— Glomme, sério... já falei mil vezes! Você tá aqui há horas! — Naala estourou, o pé batendo no chão pela décima vez.
— Já disse, tô numa missão — ele repetiu, seco, sem nem desviar o olhar do livro, como se aquilo bastasse desde o começo.
Tiruli arqueou uma sobrancelha, curioso. Ele avançou a frente e entrou na seção, aparecendo de repente diante dos dois.
— Que missão? — perguntou, a voz curiosa, mas com um toque de ironia.
Naala e Glomme se entreolharam por um instante, e o silêncio que se seguiu foi desconfortável. Tiruli sentiu uma leve pressão no peito, uma sensação de estar invadindo algo íntimo, algo que não deveria ser ouvido.
Foi Naala quem quebrou o silêncio primeiro.
— Eu estou tentando tirar esse lunático daqui, mas ele se recusa a sair! — ela resmungou, apontando para Glomme, que apenas a ignorava, os olhos fixos no livros em suas mãos.
— Já disse que estou numa missão... — Glomme repetiu, sua voz calma, mas com uma firmeza que desafiava qualquer tentativa de convencê-lo a se mover.
Tiruli franziu o cenho, sem entender o que estava acontecendo. Ele olhou para Naala, depois para Glomme, antes de cruzar os braços e dar sua opinião.
— Se ele está numa missão, devia deixá-lo em paz — disse, de forma simples, mas carregada de uma leve provocação.
Naala se virou para ele, os olhos arregalados de incredulidade.
— O quê?! Você só está defendendo ele porque ele é homem! Porque eu sou mulher, eu sou sempre a errada, não é?! — ela gritou, jogando os braços ao alto, seu rosto agora marcado pela frustração, e suas palavras cortantes como lâminas.
Tiruli piscou, confuso, tentando entender o que acabara de acontecer.
— Não foi isso que eu...—
Mas Naala já tinha girado nos calcanhares e saído pisando duro, o som de seus passos ressoando pelo corredor silencioso.
Ele suspirou profundamente, passando uma mão pelos cabelos com um gesto cansado. Quando seus olhos voltaram a Glomme, ele percebeu algo. O cheiro que emanava de Glomme não era apenas de livro velho — havia algo mais, algo desconfortante. O cheiro de mofo misturado com poeira, um leve toque de comida esquecida. Como se ele realmente estivesse ali há dias, sem se importar com mais nada além dos livros ao seu redor.
— Você fede a livro mofado — Tiruli comentou, franzindo o nariz e se afastando um pouco, como se aquele cheiro pudesse se transferir para ele.
Glomme riu baixinho, seu riso tímido e nervoso, como se estivesse constrangido pela própria condição.
— Desculpa... tô aqui há dias... Dormindo... — murmurou, sem fazer nenhum esforço para se levantar.
Tiruli fez uma careta, como se a própria menção do cheiro tivesse algo de irritante. Ajustou sua roupa, tentando não pensar no desconforto.
— Você precisa tomar um banho.
Glomme desviou o olhar, visivelmente sem jeito.
— Talvez depois — murmurou, sem grande convicção.
Tiruli se abaixou, observando os livros espalhados ao redor de Glomme. Cada um parecia estar em desordem, mas talvez fosse exatamente isso que Glomme queria. Uma desordem controlada, uma forma de se esconder nos volumes e escapar da realidade.
— Então... o que você tá procurando? — perguntou, tentando entender o que o mantinha ali.
O semblante de Glomme mudou instantaneamente. Ele ficou tenso, os ombros rígidos, e seus dedos apertaram o chão como se quisessem se cravar nele. Por um momento, parecia que ele estava lutando com algo interno.
— Não posso contar — disse, finalmente, a voz baixa, como se fosse um segredo pesado demais para ser compartilhado.
Tiruli arqueou uma sobrancelha, mais intrigado do que nunca.
— Ah, qual é, pode confiar em mim — insistiu, com um sorriso amigável, mas a dúvida ainda pairava no ar.
Glomme não respondeu imediatamente. Ele conhecia Tiruli, sabia que ele era um caçador, que era inteligente, perspicaz e... bem, extremamente másculo. E ele não gostava de pessoas assim. Sempre achou que homens como Tiruli queriam apenas se aproximar para zombar dele, para fazer graça.
— Me deixa sozinho... — pediu, a voz quase inaudível, mas com uma súplica clara.
Tiruli sentiu uma leve pontada no peito, uma sensação estranha. Queria insistir. Queria dizer que não era como os outros. Mas as palavras simplesmente ficaram presas, uma mistura de frustração e compreensão.
No fim, ele apenas se levantou e se afastou em silêncio, sem olhar para trás.
E enquanto caminhava para fora daquele local, não pôde evitar pensar que, talvez, Glomme estivesse certo em não confiar nele.
No centro da biblioteca, seus passos suaves ecoando no chão polido. O ambiente era vasto, com altas prateleiras que se estendiam até o teto abobadado, cujas vigas de madeira escura estavam adornadas por velas encantadas, que flutuavam preguiçosamente no ar, lançando uma luz amarelada e quente sobre as estantes cheias de livros. O aroma de páginas antigas e poeira pairava, criando uma atmosfera única, como se os segredos daquelas paredes soubessem mais do que qualquer pessoa.
Ele avistou Naala encostada em uma das grandes mesas de leitura, de costas para ele. Seus cabelos escuros, soltos, caíam sobre seus ombros, e ela mexia nas pilhas de livros com um olhar visivelmente frustrado. A forma como ela resmungava baixinho enquanto organizava os volumes revelava claramente seu desagrado. O ritmo de seus movimentos era apressado, mas, ao mesmo tempo, delicado, como se tentasse manter o controle da situação, mas não conseguisse.
Tiruli se aproximou com cautela, sem querer interromper de repente. Ele pigarreou para chamar sua atenção, o som da sua garganta quebrando o silêncio.
— Ele não quis conversar comigo — anunciou com um suspiro profundo, aproximando-se mais.
Naala ergueu os olhos para ele, cruzando os braços, e seus lábios se curvaram em uma expressão cética.
— Claro que não quis — bufou, balançando a cabeça com um leve sorriso irritado. — Glomme está aqui há dias, lendo e procurando algo que não faz o menor sentido. Ele está convencido de que vai resolver um mistério, como se isso fosse a chave para derrotar alguma coisa. Eu não aguento mais ver aquele lugar sendo destruído pelo... por aquele porco! E sabe o que é pior? A moça da recepção não liga mais. Ela até tentou impedir no começo, mas depois que ele começou a ler, não parou mais.
Tiruli, encostado em uma das mesas centrais da biblioteca, observando Naala. Se afastou da mesa devagar, como quem respeita o território alheio, e se aproximou com um leve sorriso enviesado, típico de quem sabe mais do que deixa transparecer. Disse para ela, com uma voz baixa e controlada, que achava tudo aquilo fascinante. A fixação de Glomme, a maneira como ele parecia mergulhado em alguma missão pessoal, como se fosse movido por algo maior do que todos ali. Tiruli confessou, com uma honestidade rarefeita, que não apenas queria entender o mistério — ele queria se aproximar de Glomme. Queria ser seu amigo dele. Havia uma melancolia no garoto verde, uma dor velada, que ecoava nele de um jeito incômodo.
Naala não disfarçou a descrença. Respondeu de forma seca, quase cínica. Para ela, não era sobre empatia ou amizade. Era sobre rotina. Sobre ter seu território invadido por uma obsessão que espalhava desorganização como praga. Ela cuidava daquela biblioteca como se fosse uma extensão de sua mente — e Glomme, com seus cadernos rasgados, anotações enigmáticas e livros largados em qualquer canto, era a desordem em forma humana. Se dependesse dela, ele já teria sido arrastado dali há muito tempo. Não por desprezo, mas por pura sobrevivência.
Tiruli riu, uma risada discreta, mas genuína. Achava o pragmatismo de Naala quase divertido. Admirava o modo direto com que ela falava, como se cada palavra fosse calculada para não desperdiçar tempo. Disse que gostava disso nela — da clareza, da firmeza, da mente afiada. Comentou que talvez, juntos, pudessem resolver aquilo. Se ela o ajudasse a decifrar os padrões de Glomme — as horas em que ele mergulhava nas leituras, os tipos de livros que escolhia, os rabiscos nos papéis — talvez pudessem descobrir o que ele tanto procurava. E talvez, assim, ajudá-lo a sair daquele estado de clausura voluntária.
Naala o fitou com olhos semicerrados, avaliando a proposta. Havia algo em Tiruli que desarmava sua impaciência — talvez fosse a serenidade, ou talvez fosse o fato de que ele parecia genuinamente disposto a entender, e não apenas resolver. Ela cruzou os braços, num gesto automático, e perguntou o que ganhava com isso. Sua voz tinha o tom de quem lida com contratos, não com amizades.
Ele foi direto. Disse que, se tivessem sucesso, Glomme deixaria a biblioteca. O espaço voltaria ao normal. A harmonia voltaria às estantes. Não havia promessas vazias, nem bajulações — só lógica. E, curiosamente, isso a convenceu.
Naala estendeu a mão. O aperto foi firme, mas não tenso. Ao soltá-lo, algo havia se estabelecido: não um pacto emocional, mas uma aliança de mentes que sabiam o valor da estratégia.
A conversa não parou ali. Tiruli comentou, meio casual, que notara como ela conhecia cada canto da biblioteca. Naala respondeu com um sorriso de canto, dizendo que lia todos os volumes — até os menos populares. Ele mencionou que sempre quis debater as versões traduzidas e não traduzidas da Enciclopédia dos Planos Mágicos, e ela arqueou uma sobrancelha, surpresa. Aquilo não era conversa comum. Era código entre dois nerds que sabiam reconhecer um igual. Ela fez questão de comentar que, apesar do jeito distraído de Tiruli, ele era surpreendentemente brilhante. Ele rebateu dizendo que a inteligência dela era quase irritante, mas que jamais teria pensado numa aliada melhor.
O tempo passou sem que percebessem. Durante mais de meia hora, Tiruli e Naala caminharam pelos corredores da biblioteca debatendo como dois nerds encantados, trocando ideias sobre a estrutura mágica do tempo, a lógica escondida nas constelações e teorias antigas que tratavam emoções como fórmulas. Discutiram tratados esquecidos, povos extintos que calculavam sentimentos e a possibilidade do amor ser apenas uma constante no caos arcano. Cada pensamento lançava outro, como peças em um xadrez místico, e naquela dança de ideias, descobriram afinidade. Quando chegaram ao final de um corredor, Tiruli com uma mudança sutil no tom, mais sério agora, sugeriu que fossem até Glomme. Disse que era a hora certa. Se deixassem para depois, ele se fecharia ainda mais. Naala hesitou, mas concordou com um movimento lento da cabeça.
Antes de começarem a andar, ela o olhou de lado e disse, quase em tom de confissão, que não esperava que ele fosse tão interessante. Tiruli, pego de surpresa, riu baixo, e respondeu que ela era, sem dúvida, a nerd mais perigosa que ele já conhecera.
E então, lado a lado, os dois seguiram pelas fileiras da biblioteca — um duo improvável, unidos não por emoção, mas por lógica, curiosidade e uma conexão sutil que só mentes realmente inteligentes são capazes de perceber e valorizar.
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