Poucos minutos depois, o som do sinal ecoou por todo o internato escolar, vibrando nas paredes grossas da biblioteca como se o tempo ali dentro precisasse, à força, ser puxado de volta à rotina. Tiruli se levantou de forma rápida, instintiva, o corpo leve como quem já estava acostumado a obedecer àquele tipo de som. Ele então estendeu a mão direita para Glomme, que aceitou com um olhar hesitante e um sorriso quase escondido. Juntos, lado a lado, andaram até o centro da biblioteca, e o barulho dos passos ficou abafado pelo carpete antigo enquanto atravessavam o salão, onde o ar parecia mais frio e silencioso, preenchido apenas por mesas desocupadas, alguns computadores e carrinhos com pilhas de livros deixados pelos monitores.
A moça da recepção já estava de pé, sua postura rígida e impaciente enquanto espantava os alunos como um cão pastor treinado, balançando o braço com rigidez e soltando comandos curtos, empurrando os atrasados para fora com uma pressa que parecia maior do que o necessário.
— Todos para suas salas! Agora! — bradou, ajeitando os óculos no rosto.
Dentre as enormes estantes, surgiu Naala, também ofegante, com dois livros grossos e empoeirados nas mãos, os olhos brilhando como se tivesse acabado de encontrar algo valioso demais para ser deixado para depois. Os três se encontraram naquele centro movimentado da biblioteca. Naala olhou rapidamente para os lados e falou de forma direta, como quem não queria perder tempo com despedidas prolongadas, que havia encontrado os livros que procurava e que eles deveriam encontrá-la ali mesmo, na biblioteca, no próximo intervalo.
— Eu espero vocês aqui — disse ela, com firmeza nos olhos. — E quero que venham mesmo, porque isso aqui pode ser maior do que parece, e eu não vou descobrir sozinha.
Glomme e Tiruli assentiram ao mesmo tempo, quase sincronizados. Naala hesitou por um segundo antes de partir. Virou-se e olhou para Tiruli — um olhar firme, silencioso, com um carinho disfarçado, mas impossível de ignorar. Como se dissesse algo que só ele poderia entender. Tiruli captou o recado de imediato e sorriu de canto levemente, calmo, íntimo. Era o tipo de troca que dispensava palavras.
Glomme, parado ao lado, percebeu o olhar, mas não o entendeu. Sentiu que algo passara entre os dois, algo que o deixava de fora. Então olhou para Tiruli — o sorriso ainda pairando nos lábios dele — e também não o entendeu. Aquilo o fez franzir um pouco a testa, confuso, e, sem saber por quê, apertou os próprios braços num gesto automático. Era algo discreto. Um incômodo. Como se a certeza que ele tentava montar sobre Tiruli estivesse, de novo, escorregando pelas bordas.
Tiruli percebeu o desconforto — sempre percebia. E, sem dizer nada, estendeu a mão e deu um tapinha leve no ombro de Glomme, com aquele jeito de quem traz alguém de volta para perto sem precisar de palavras.
— Glomme... Toma um banho, passa alguma coisa e aparece cheiroso, tá? A vida é agora, ouviu?
Glomme assentiu, sem conseguir conter o sorriso, mesmo que contido, e por um breve segundo quis segurar a mão de Tiruli, puxar ele de volta, dizer que aquela distância curta parecia grande demais. Mas Tiruli não percebeu, já tinha se afastado naturalmente, com os pensamentos em outro lugar, deixando Glomme com a mão pela metade, parada no ar.
Por um instante que pareceu mais longo do que deveria, Glomme olhou em volta, desconfiado, o rosto corando sutilmente, como quem queria se certificar de que ninguém tinha visto aquele pequeno vácuo emocional se formar. Então, ajeitou a alça da mochila, respirou fundo e se apressou para sair da biblioteca, tentando alcançar a próxima aula antes que os corredores voltassem a se encher.
Alguns minutos se passaram no internato escolar. Glomme entrou na sala de aula com a mente ainda presa às últimas horas. Havia algo reconfortante — quase bom demais — em estar ao lado de Tiruli. Ele nunca se sentira parte de algo assim antes. Os símbolos, a frase estranha, o mistério que os cercava… tudo parecia mais suportável, mais empolgante, quando vivido ao lado de alguém como Tiruli. Mesmo com todas as dúvidas que ainda habitavam seu peito, Glomme não podia negar: estar com ele trazia uma sensação estranha de pertencimento. E isso, para alguém como ele, já era muito. Ele sentou-se ao lado de Firefy, mas sequer conseguiu esboçar um cumprimento. Não que ele não quisesse. Pelo contrário, sentia que devia dizer algo, mas as palavras não saíam. E Firefy, por sua vez, não parecia exatamente receptiva.
Ela estava com os braços cruzados sobre a mesa, o rosto apoiado neles, e um leve suspiro de cansaço escapava de seus lábios. Seu olhar estava distante, como se estivesse presa em pensamentos muito mais densos do que qualquer coisa que pudesse acontecer naquela aula. Seu corpo parecia tenso, os ombros ligeiramente encolhidos, e Glomme percebeu o cansaço estampado no rosto dela. Ele hesitou. Talvez fosse apenas uma TPM, talvez estivesse menstruada e desconfortável. Ele nunca entendia direito como lidar com isso, então simplesmente preferiu não falar nada. Era mais fácil deixá-la quieta.
Mas o silêncio pesava entre eles.
Desde que Gumer não estava por perto para puxar conversa, tudo ficava mais difícil. Gumer era a ponte entre os dois, aquele que sempre fazia piadas, que mantinha a energia fluindo. Sem ele, Glomme e Firefy ficavam travados, presos na própria timidez, trocando olhares rápidos e desviando no instante seguinte, como se qualquer tentativa de diálogo fosse um desafio enorme. Ele queria perguntar se ela estava bem. Queria contar sobre os livros que encontrou com seus outros amigos. Mas ao invés disso, apenas mexeu no material sobre a mesa e fingiu estar ocupado.
A professora Marla entrou, dando início à aula, e os alunos aos poucos começaram a se concentrar. Mas Glomme ainda sentia a presença de Firefy ao lado, sentia o desconforto dela, e também o próprio. O que deveria ser uma simples conversa entre amigos parecia agora uma barreira invencível .
O tempo passou rapidamente, o sinal ecoou como sempre pelos longos corredores do internato. Depois que a aula terminou, Glomme saiu apressado. Foi direto para o vestiário, tomou um banho rápido e caprichou no perfume — exatamente como Tiruli havia pedido. Queria estar cheiroso para ele, mesmo que não soubesse bem por quê. Sentiu um leve sorriso no rosto enquanto se preparava, uma mistura de nervosismo e expectativa crescendo no peito.
Ele correu para a biblioteca, os passos largos e desajeitados ecoando pelo corredor. Algumas risadas baixas e comentários maldosos o seguiram enquanto ele corria—zombavam do jeito que ele se movia, dos braços um pouco soltos demais, da forma como seu corpo parecia deslocado no próprio espaço. Ele fingiu não ouvir, tentando manter o foco, mas aos poucos foi diminuindo o ritmo. Respirando fundo, passou a andar calmamente, os olhos fixos no chão até alcançar a entrada da biblioteca. Sem Gumer por perto, não havia ninguém para protegê-lo, ninguém para afastar as vozes que o perseguiam.
Dentro da biblioteca, o ambiente era silencioso e acolhedor. No centro da biblioteca, Naala e Tiruli estavam próximos demais, quase sussurrando um para o outro. Glomme hesitou ao vê-los assim, tão à vontade juntos, os rostos próximos, a respiração se misturando entre palavras trocadas num tom baixo e íntimo. Algo dentro dele se retesou. O modo como Naala inclinava a cabeça levemente e como Tiruli sorria para ela faziam parecer que estavam prestes a se beijar.
Glomme engoliu em seco e desviou o olhar, sentindo-se um intruso. Pensou em simplesmente dar meia-volta, mas antes que pudesse decidir, Naala percebeu sua presença e a voz dela o chamou. Firme e inesperadamente próxima.
— Glomme!
Ele travou. Por um momento, seu corpo congelou no lugar como se cada passo em direção aos dois fosse perigoso demais. Quando levantou os olhos, viu Naala o olhando com aquele sorriso natural, tranquilo, sem pressa. Ao lado de Tiruli que parecia estar exatamente onde queria estar. Havia uma conexão entre eles, clara como o dia, como se fossem pedaços de uma história antiga. Algo que Glomme não sabia explicar, mas que incomodava mesmo assim.
Ainda assim, avançou. Um passo. Depois outro. A insegurança ardia sob a pele, mas ele a empurrou para dentro do peito e seguiu em frente — mesmo que tudo ali parecesse mais íntimo do que ele gostaria.
Naala, Glomme e Tiruli se sentaram no chão do fundo da biblioteca novamente. Espalharam dois livros antigos entre eles. Glomme dividia um com Tiruli, enquanto Naala lia o outro. A luz amarelada iluminava o ambiente e suas expressões sérias — três jovens geniais em plena caçada por respostas.
Durante quase quarenta minutos, folhearam páginas amareladas, anotando padrões, tentando decifrar relações entre a frase enigmática do caderno de Glomme e os símbolos desconhecidos. Foi Glomme quem percebeu primeiro: os nomes dos animais extintos, citados nos livros de curiosidades do Norte, tinham uma estrutura muito parecida com a frase do caderno. Tiruli examinou os nomes e também notou — eram palavras simétricas mas em ordens incomuns, como se formassem parte de uma linguagem perdida.
Naala levantou o olhar, os olhos estreitos. Ela reconheceu um dos nomes. Aqueles animais, lembrou, haviam sido nomeados ainda antes da extinção dos elfos, há quase três mil anos atrás — um tempo de lendas, onde a magia era selvagem e os registros se confundiam com mitos. Mas desde então, ninguém mais mencionava tais criaturas, nem em estudos científicos nem em registros culturais. E a tal frase? Nunca havia aparecido em lugar nenhum. Era como se tudo tivesse sido varrido da história.
Foi então que Naala desviou os olhos do livro e fixou-os em Glomme. Sua voz saiu baixa, porém firme, carregada de um instinto que beirava o desconforto: ela queria saber onde ele tinha encontrado aquela frase.
Glomme hesitou. Seu corpo ficou levemente tenso, os dedos fecharam o livro com mais força do que o necessário. Não era por medo — era receio de quebrar algo frágil. Ainda não sabia se podia dividir tudo com eles.
Naala notou. Sem dizer nada, estendeu a mão e tocou o ombro de Glomme com leveza, como se o incentivasse silenciosamente. Tiruli ao lado, virou-se para Glomme, encarou o amigo por um momento, e em um gesto inesperado, segurou sua mão com firmeza, apertando-a. O gesto não era banal. Era uma promessa silenciosa de confiança. Ele disse, com a voz calma, que não havia mais volta. Que ele e Naala já estavam envolvidos, que não estavam ali apenas por curiosidade, mas porque se importavam — com Glomme, com o que estava acontecendo, com tudo.
Glomme não respondeu de imediato. Respirou fundo e apertou de volta a mão de Tiruli. Seus olhos, antes sempre evasivos, se firmaram nos dois. E então, começou a contar. Disse que Gumer não havia enlouquecido. Que ele fora possuído — tomado por algo sombrio e silencioso. Contou também sobre Marry, a garota que havia convulsionado em seu quarto semanas atrás. Ela também fora afetada, mas ao contrário de Gumer, não feriu ninguém. Estava estranhamente conectada a ele, como se compartilhassem o mesmo tipo de maldição.
Revelou, então, que Marry foi quem escreveu a frase — aquela que ninguém conseguia entender. Os símbolos também vieram dela, desenhados em papeis durante uma conversa com Ártemis. Glomme tinha procurado por tudo na internet, em arquivos mágicos, e nada — nenhum símbolo igual, nenhuma frase parecida. Era como se aquilo fosse uma linguagem esquecida por todos… ou escondida de propósito.
Naala permaneceu em silêncio, seu rosto estava inexpressivo. Tiruli parecia dividido entre o medo e o fascínio. A frase, os nomes dos animais extintos, a conexão de Gumer e Marry… tudo começava a se conectar de uma forma que nenhum deles ainda compreendia completamente. O ar ao redor deles estava pesado, carregado por uma tensão silenciosa. O que haviam descoberto não era apenas uma curiosidade esquecida — tratava-se de um possível feitiço antigo, com símbolos e frases tão velhos quanto a própria cidade de Michilli. Os alunos desaparecidos, os surtos inexplicáveis, a ligação entre Gumer e Marry… tudo parecia conectado a algo muito mais antigo e perigoso do que imaginavam.
Glomme ainda respirava com dificuldade, tentando organizar os pensamentos. Ele finalmente não estava mais sozinho naquela busca incansável. Naala, com a expressão concentrada, pediu para tirar fotos das páginas. Queria analisar tudo depois com calma, montar um mapa mental, seguir o fio até o fim. Glomme assentiu, entregando os papéis e deixando que ela registrasse tudo. Ela estava decidida a descobrir.
Tiruli, deitado de costas, olhava para o teto, atordoado. Uma língua ancestral, anterior até à extinção dos elfos… era inacreditável. Passaram os minutos seguintes discutindo em sussurros, conectando pistas, levantando teorias. O tempo parecia distorcido naquele canto esquecido da biblioteca.
Quando o sinal finalmente tocou, voltaram ao presente. Naala guardou o celular e garantiu que continuaria a busca. Eles se entreolharam uma última vez, em silêncio. Por ora, deixariam nas mãos dela. O mistério só estava começando.
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