Volume 1 – Arco 1
Capitulo 27: No Coração da Maldição - Parte 3
As visões começaram.
Tomando forma ao redor de Tiruli como se a própria realidade estivesse se fragmentando. Mulheres cobertas de preto, rostos ocultos sob chapéus pontudos, arranhavam a própria pele até a carne ceder, o sangue escorrendo em trilhas vermelhas até o chão. Algumas choravam, outras murmuravam palavras ancestrais para algo invisível, suas vozes entrelaçadas em um cântico perturbador.
Além da porta entreaberta, sombras distorcidas se moviam—sete figuras projetadas contra a luz fraca, corpos retorcidos em uma dança profana. Seus lábios estalavam e produziam sons que não eram palavras, apenas ruídos de bocas que pareciam mastigar o vazio, como se estivessem devorando a própria escuridão.
Mas Tiruli não era apenas um observador. Ele sentia. Ele vivia. Cada cena o puxava para dentro, o forçava a habitar corpos que não eram seus. Ele olhava para cima e via a lua, um olho sangrento vigiando o mundo. Baixava o olhar e seus próprios braços estavam cortados, os pulsos abertos, o sangue quente pingando sobre a terra estéril. Ao redor, centenas de pessoas—fileiras e fileiras de corpos nus e imóveis, seus olhos jorrando sangue, suas bocas abertas em um silêncio aterrador.
E então, uma nova visão o afogava. Literalmente. Uma família inteira se debatia, submersa em um oceano rubro, suas expressões congeladas em um misto de horror e êxtase. Eles se afogavam não apenas no sangue, mas na ambição, na vingança, em algo maior e mais antigo do que qualquer compreensão.
Tiruli quis gritar. Abriu a boca, mas nada saiu.
E então, tudo ficou escuro.
Ele acordou, o ar invadindo seus pulmões como se tivesse acabado de emergir de um mar revolto. Seu corpo tremia. O suor escorria de sua testa, suas mãos trêmulas se agarrando aos próprios pulsos, sentindo a pele fria, tentando se convencer de que ainda estava inteiro. De que ainda estava ali. Mas ele sabia. Sabia que aquilo não era um sonho. Não era apenas uma visão.
Era um aviso.
Os outros o olhavam, silenciosos. Trrira se levantou rapidamente e foi buscar um copo d'água, sem dizer uma única palavra. Vanpriks e Glomme trocaram olhares tensos, como se aquilo tivesse sido pior do que esperavam. O silêncio na sala era sufocante.
Vanpriks desviou o olhar, inquieta.
— Vamos dar uma pausa — alguém disse, mas Tiruli não sabia quem.
Ele apenas assentiu, ainda tentando recuperar o fôlego. Mas ele sabia que aquelas imagens não iriam embora. Sabia que aquilo que viu, aquilo que sentiu, estava prestes a se tornar real, ou já havia se tornado.
Na clínica psiquiátrica onde Gumer passava os finais de semana, o ar estava pesado e carregado de uma tensão que Firefy podia sentir em cada fio de seu ser. Ela estava na sala de espera, ansiosa, os dedos apertando a alça de sua bolsa como uma tentativa vã de aliviar o nervosismo crescente que a consumia. Cada segundo parecia arrastado, como se o tempo estivesse brincando com ela, adiando o inevitável. Quando finalmente ouvira seu nome, seu coração deu um salto, e ela se levantou com as pernas bambas, mas com a determinação de quem sabe que algo grande está prestes a acontecer.
A enfermeira a conduziu até o quarto de Gumer, caminhando com passos firmes, mas Firefy sentia seu próprio corpo movendo-se como se fosse um peso. Ela já sabia que algo não estava certo. O pedido de Gumer para que estivessem a sós, sem câmeras, sem médicos, sem olhares curiosos, havia sido claro. Ele queria falar sério com ela. E quando ele queria algo, não havia espaço para dúvidas.
Quando ela entrou no quarto, a cena que a recebeu foi tranquila, quase surreal. Gumer estava guardando alguns brinquedos antigos no armário, como se estivesse em um mundo completamente diferente. No entanto, ao ouvir a porta se abrir, ele se virou abruptamente, e seu rosto se iluminou. Ele abraçou-a. Mas havia algo de diferente no modo como ele a abraçou. Não foi um abraço apenas de saudade, mas de necessidade, como se estivesse tentando se agarrar a algo, ou a alguém, para não se perder por completo.
Firefy se manteve firme, lutando contra as lágrimas que estavam prestes a cair. O abraço de Gumer a envolvia com uma força silenciosa, mas ao mesmo tempo, ela sabia que aquele momento era frágil, como se estivessem andando na linha tênue entre a sanidade e a perda. Gumer a soltou, mas não a deixou ir, segurando seu braço com um pouco mais de força do que o normal. Ele a puxou até a mesa redonda, onde duas cadeiras estavam dispostas, prontas para o confronto silencioso que ambos sabiam que viria.
Sentaram-se. Firefy colocou a bolsa sobre a mesa e, com ambas as mãos, segurou as de Gumer com uma força que ela não sabia que tinha. Ela olhava para ele com a intensidade de quem já sabia que o mundo podia desmoronar a qualquer momento, mas não queria mais esperar. Ele era tudo para ela. Não havia mais espaço para nada, nem para outras preocupações, apenas ele e ela. Ela perguntou sobre os pais dele, mas soube, ao olhar para seus olhos, que havia algo mais, algo grave, escondido sob a superfície.
Gumer, de maneira inquieta, respondeu que seus pais estavam bem, mas que ele estava piorando. Seus olhos, normalmente tão vibrantes, agora estavam turvos, distantes, como se algo o estivesse levando para longe. Ele então levantou uma das mãos e mostrou a Firefy um de seus dedos. O gesto foi simples, mas o impacto foi imediato.
— Olha, Fye... — ele murmurou, erguendo o dedo mindinho bem devagar, como se aquilo significasse mais do que qualquer palavra. Seu rosto estava tenso, os olhos baixos, e havia uma fragilidade inesperada em sua expressão — quase como uma criança tentando segurar o choro. Para ela, doía ver Gumer daquele jeito.
O dedo estava quase cinza, como se estivesse apodrecendo por dentro. Firefy se afastou um pouco, o pânico surgindo em seu peito.
— Gumer... O que isso significa? — ela perguntou, a voz falhando um pouco.
— Satrak... — Gumer sussurrou, sua expressão sombria. — Está me consumindo. Vai acontecer... vou me tornar uma lâmina de sangue, eu vi.
— O quê? — ela arregalou os olhos. — O que é uma lâmina de sangue? O que está acontecendo com você?
Gumer a olhou, o olhar carregado de dor e algo mais. Ele suspirou, tentando encontrar as palavras certas para explicar o que estava acontecendo com ele. Então, ele deu um pequeno sorriso torto, como se fosse difícil manter a leveza em um momento como aquele.
— Eu aprendi a controlar à maldição, Fye. Posso te mostrar — a voz dele estava firme, mas o medo ainda se escondia em suas palavras.
Firefy ficou em choque com o que acabara de ouvir de Gumer. Seu corpo congelou por um instante, e os olhos se fixaram nele com uma mistura de dor e surpresa. Agora não havia mais dúvida: era uma maldição. Estava dentro dele. E ela sentiu o peso disso como se algo tivesse apertado seu peito por dentro.
— Uma... maldição? — Firefy repetiu, confusa. — Gumer, o que está acontecendo? O que você quer dizer com "lamina de sangue"?
Gumer ficou em silêncio por um momento, como se estivesse pesando o que dizer, até que, finalmente, perguntou:
— Você pode me ajudar, Fye! Eu posso te mostrar! — Ele fez uma pausa, então, com uma expressão mais intensa, perguntou: — Você faria isso por mim?
— Sim... — ela respondeu, a voz fraca, mas cheia de convicção. — Eu faria qualquer coisa para te ajudar, Gumer. Qualquer coisa.
O sorriso de Gumer apareceu, mas era um sorriso tenso, cheio de um alívio silencioso. Ele então se levantou e a puxou para mais um abraço, um abraço urgente e desesperado, como se ele precisasse dela para sobreviver àquela dor. Ele precisava do sangue dela. E Firefy estava disposta a dar tudo o que tinha, tudo o que fosse necessário.
— Eu... eu não quero sentir tudo isso sozinho — Gumer disse, a voz baixa, quase falhando. — Eu só queria... estar com você. Mesmo que doa. Mesmo que seja assim.
Depois das explicações. Firefy, com uma resolução renovada, pegou um dos seus brincos e, com um gesto delicado, furou o dedo. A dor foi momentânea, mas ela sabia que era apenas o começo de algo muito maior. Gumer fez o mesmo, e seus dedos se encontraram, a troca do sangue sendo o elo que os unia em um pacto silencioso. O sangue deles, agora misturado, foi esfregado na testa de Firefy e de Gumer, e, com as mãos de ambos nas laterais de seus rostos, eles se aproximaram.
Com os olhos fechados, Gumer começou a pronunciar palavras em Kaldorak, a língua ancestral que parecia fluir de seus lábios com uma facilidade assombrosa. Palavras que seriam impossíveis de serem descobertas. As palavras queimaram no ar e uma sensação indescritível os envolveu, como se a conexão entre eles fosse a única coisa que importasse agora.
Firefy sentiu seu corpo tremer, mas não era medo, era uma sensação estranha de unidade, de algo que a ligava a Gumer de uma maneira que ela nunca imaginara. Os dois estavam conectados, mais do que nunca. E, enquanto as palavras de Gumer ecoavam em seus ouvidos, ela sabia que o destino deles estavam se entrelaçando para sempre, com o sacrifício sendo a única chave para a salvação de Gumer. O futuro era incerto, mas naquele momento, nada mais importava. Eles estavam juntos, compartilhando a dor, a maldição e a possibilidade de redenção.
Enquanto Gumer e Firefy permaneciam conectados, uma onda de visões dominou a mente de Firefy, invadindo seus pensamentos com a força de um turbilhão. Os fragmentos da dor e das experiências de Gumer agora se misturavam com os dela. Ela piscou, e de repente, o ambiente ao seu redor desapareceu. O quarto, o espaço seguro onde estavam, se desfez. Ela se viu sozinha em um lugar vasto e infinito, um cenário desconcertante e sombrio. O quarto de Gumer agora parecia uma prisão de pesadelos. As paredes não tinham fim, o sangue nos tornozelos, o espaço era distorcido, e no centro disso tudo, algo grotesco começou a surgir.
A criatura que apareceu diante de Firefy era um monstro, uma massa de carne humana e membros contorcidos. O medo percorreu cada nervo de Firefy, que deu um passo para trás, mas não conseguia fugir da visão aterradora.
Antes que pudesse reagir mais, um piscar de olhos fez com que tudo mudasse abruptamente. Agora, Firefy estava no salão principal da escola, como se tivesse sido transportada por um portal. Ela virou a cabeça para a direita e, a poucos metros de distância, um monstro similar ao que ela acabara de ver, mas com uma aparência mais alienígena, passava por ela. O silêncio era quase absoluto, a pressão da atmosfera parecia sufocante. A única coisa que quebrava o silêncio era o som dos passos do monstro, como se fosse o som de uma ameaça iminente. Quando ele olhou para ela, seu rosto transformado em uma máscara fantasmagórica, ele deu um grito ensurdecedor. Firefy, assustada, cobriu o rosto com as mãos e gritou, mas quando baixou as mãos devagar, o cenário havia mudado mais uma vez.
Agora, ela estava em um tempo remoto, centenas de anos atrás, antes da escola ser construída. O cenário era um campo de plantações mortas e desoladas, tudo era sombrio. Ela sentiu o peso de algo terrível sob seus pés. Ao olhar para o chão, viu-se pisando em um símbolo satânico, um antigo símbolo chamado "Alma de Satrak", que parecia pulsar com uma energia maligna. O som estranho e distante do fundo se intensificava, e então, a lua no céu se erguia, uma lua de sangue, que iluminava a cena macabra. Firefy estava pasma, observando tudo, o ponto exato onde Satrak estava sendo invocado. A escola, que mais tarde seria construída sobre essas terras, estava ali para apagar o passado, mas a maldição nunca se apagaria.
Ela viu visões das pessoas que haviam morrido, alimentando Satrak ao longo dos séculos, incluindo os antepassados de Rowena, que, há muito tempo, tentaram dominar o poder da lua, mas nunca conseguiram. Firefy observou, horrorizada, enquanto Gumer, agora uma lâmina, uma criatura feita de sangue e dor, servia como oferenda para Satrak. Ele seria o catalisador para alimentar a Lua de Sangue, trazendo consigo o fim do mundo e o começo da era carmesim, uma era de escravidão vermelha. Era o pesadelo, a profecia em que o mundo se afundaria em destruição.
Então, a visão se dissipou.
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