Volume 1

Capítulo 1: Uma mãozinha.

[ Sexta-feira 09 de Fevereiro de 2404,  22:30 da noite]

O bosque iluminado pelo luar tinha seu chão coberto pela folhagem caídas dos carvalhos ao meu redor. A trilha que dividia o bosque em duas partes iguais com carvalhos negros desaparecia para longe de minha visão com a pouca luz. Um belo lugar para se viver, mas a escuridão dava um certo medo.

 

Queria estar em outro lugar, mas tenho que servir de babá para um velho amigo, Milo. Receber uma ligação estranha de sua pessoa enquanto está bêbado, às vezes é um mal sinal. Só vou precisar arrastá-lo para sua casa e esse passeio noturno estará acabado. Espero que sim.

 

Mais fundo na mata, a luz da lua se tornou mais fraca, deixando os carvalhos mais distantes apenas como silhuetas no breu do bosque. Existem tantos locais para cair bêbado, tinha que escolher esse! Tenho que dar um ultimato nesse homem, estou cansada de ser sua anjo da guarda.

 

O som de água ecoou pela floresta, um riacho sinuoso seguia a trilha com seu contorno coberto por vagalumes que voavam ao seu redor. Ao menos essa será uma noite simples de certo modo, talvez até boa, na cidade só há vagalumes em poucas semanas do ano. Gostaria de vir morar em um lugar assim, mas esse trabalho torna difícil uma vida feliz.

 

Mensageiros… poderia ser tão simples como aparenta, mas infelizmente o nome era apenas para não chamar atenção. Trabalhar como um “policial” para acontecimentos paranormais era algo muito longe de um sonho. Já me arrependi disso e estou a caminho da aposentadoria, só preciso fechar uma investigação e tudo vai estar acabado!

 

Depois disso é só focar em minha família. 

 

O riacho passava sob uma ponte feita por pedras cobertas com musgo. Vagalumes se aglomeravam abaixo da ponte, criando um lindo lençol feito pontos luminosos acima da água. O que… nossa, quantos sapos! Os pequenos anfíbios pulavam loucamente para alcançar seu jantar brilhante, era engraçado ver eles se trombando.

 

A trilha se abria para englobar a margem do riacho enquanto se conectava com a ponte. Gotas luminosas no chão formavam um rastro pela trilha até a ponte. Que diabos… Frio se colocou em minha barriga, as partes escuras da floresta pareciam estar me observando enquanto seguia o rastro até a ponte.

 

Porra… 

 

O frio correu por minha nuca como um suspiro gélido. Gotas luminosas se transformaram em gotas de sangue, essas levavam até o meio da ponte onde um braço decepado estava cercado por uma poça de sangue. De quem é… espera. Uma mancha preta no braço tinha um formato familiar, essa mancha é uma tatuagem?    

 

Parece com a que Milo tinha! Merda, é igual! No que voce se meteu seu idiota! Preciso controlar minha respiração, se acalma e pensa. Sons de passos vieram por trás, saquei minha arma e virei para atirar. 

 

— Não atira idiota! Sou eu! — reclamou a figura enquanto saia da escuridão.

 

Um homem alto com cabelos negros indo abaixo das orelhas saiu do breu das arvores para ficar sobre a luz da minha lanterna. Suas sobrancelhas franzidas junto a seus olhos azuis realçavam seu estilo desleixado. Cacete, deveria ter atirado! Agh! Abaixei a arma e deixei ele se aproximar.

 

— O que você está fazendo aqui, Marcelo?! — Apontei a lanterna no seu rosto.

 

Ele ligou a dele e apontou no meu rosto. Idiota!

 

— Você parece evitar atender as ligações e recebi uma mensagem estranha dizendo que você precisava de ajuda.

 

An?

 

— De quem era essa mensagem?

 

— Daquele amigo do seu pai, o que você teve que arrastar bêbado para casa uma vez — disse cruzando os braços. 

 

O que está acontecendo aqui? 

 

Deixei Marcelo na entrada da ponte. Andando até o braço decepado, sendo seguida, ele soltou um assobio quando viu o braço e parecia pronto para fazer uma piada, mas seu sorriso se desfez ao ver minha expressão. Por esse motivo e outros gostaria de ter atirado. 

 

Evitando a poça de sangue para ver melhor o braço, Marcelo foi indelicado e o pegou do chão para estudá-lo. Que nojo. Olhando ao redor, no outro lado do riacho, a mata estava mais densa bloqueando a luz da lua e até mesmo da minha lanterna. Essa floresta está escondendo alguma coisa, parece que Milo descobriu o que é. 

 

E foi uma descoberta bem… ruim.

 

Marcelo colocou o braço sobre o muro da ponte e tirou uma lata do casaco. Esse cheiro, isso é acetona? Por que ele tá carregando isso? Riscando seu isqueiro, o braço se inflamou iluminando um pouco mais a noite. Eu prefiro o cheiro da acetona, coloquei um lenço sobre o nariz. 

 

— O que descobriu? — murmurei. — E você poderia ter feito isso em outro lugar, né?

 

Se virou lentamente, limpando o sangue das mãos. 

  

— O braço foi arrancado por uma força bruta e ta relativamente fresco, foi no mínimo a horas.

 

Arrancado…

 

— Vamos em frente ou quer passar o serviço? — Olhou-me de canto.

 

Ignorando sua provocação, sai de perto do cheiro da carne queimada. Prefiro a escuridão da outra parte da trilha. Avançando nela, a única luz vinha de nossas lanternas. Os ruídos pareciam uma ameaça e galhos retorcidos se assemelhavam a demônios até iluminarmos. Teria sido melhor esperar até amanhã, merda que ideia burra.

 

Após alguns minutos na floresta, as árvores começaram a se abrir e a luz do luar era uma benção para essa escuridão. Na trilha, agora vendo melhor, um rastro feito de gotas luminosas se destacava levemente das vegetações. Apontei para o chão e Marcelo deu um joia como resposta. 

 

Seguindo o rastro, chegamos em um ponto com poucas árvores, o chão estava coberto por grama na altura das canelas. A vegetação tinha pontos luminosos que navegavam por sua imensidão. Aqui tem muitos vagalumes, que legal. Havia construções um pouco longe, provavelmente a cidade abandonada que tem por essa região.

 

É isso mesmo.

 

A cidade tinha seus asfalto em pedaços enquanto a grama verde crescia entre as rachaduras. As pequenas casas perderam suas pinturas e algumas partes das construções. Uma cidade pequena que parece ter sido feita para comércios simples de agricultura e coisas do gênero. Olhando para o céu limpo da copa das árvores, a lua cheia brilhava forte enquanto as nuvens tentavam cobri-la. 

 

O que houve com você, Milo?

 

— Você acha que ele vai estar vivo? — Marcelo cutucou meu ombro.

 

— Eu prefiro pensar que sim. — Mesmo esperando o contrário.

 

Recomeçando a caminhada, seu questionamento chama minha atenção. Estou aqui porque Milo me ligou bêbado e logo isso é ruim, mas Marcelo está aqui porque Milo disse que estou em perigo. Como isso pode fazer sentido? Milo já demonstrou muitas vezes depreciar a presença de Marcelo, por que o chamou? Por que estou em perigo? Hm.

 

O rastro nos levou para um ponto afastado da cidade. A única construção era um antigo armazém que estava sendo engolido pela vegetação, o caminho até ele era feito unicamente de grama recém molhada pela garoa da noite. Um arrepio correu minha espinha enquanto olhava o local, era como estar sendo observada. Girei a cabeça muitas vezes para olhar os arredores e Marcelo percebeu meu incômodo.

 

Esqueça isso e se concentre.

 

Fechando os olhos, o som do meu coração encheu minha mente. A sensação da minha consciência se afastando do meu corpo era estranhamente confortável. Um novo mundo se formou quando abri meus olhos, era mais escuro e borrado, como uma pintura de um quadro antigo, mas também era bonito. Pequenas partículas de luz vagavam sem rumo pelo lugar.

 

No armazém, partículas vermelhas cercavam o lugar em todos os lados e ângulos. A sensação de estar sendo observada se tornou mais presente, quase como se alguém respirasse em minha nuca. Fiz uma pequena busca, mas nada se destacou. Deixando o fluxo, o peso de meu corpo voltou para meus sentidos. Navegar é realmente muito bom. 

 

— Tem alguma coisa lá. — E a alguma coisa está nos observando.

 

— Então vamos descobrir o que é.

 

A porta do armazém estava destruída e um cheiro pútrido violava meu nariz. Acho que vou vomitar, seja o que for, fede muito. Entrando no lugar, braseiros iluminavam o interior fechado do armazém vazio. Linhas vermelhas estavam desenhadas no chão em padrões variados entre as colunas que sustentavam o teto. Um ritual? 

 

Aquilo parece uma pessoa. Uma figura humanoide estava agachada onde todas as linhas se encontravam. Essas roupas, puta merda… Milo? Olhei para Marcelo incerta, mas sua confirmação com a cabeça tirou minhas dúvidas. A figura se levantou e se virou para nós, seus olhos inteiramente negros dava calafrios. 

 

Suas roupas rasgadas mostravam lacerações com um fluido laranja em seu corpo. Focando no braço direito, havia uma massa negra que se contorcia no lugar de um braço. É realmente, Milo. Mas o que aconteceu aqui? Isso é obra da obscuridade, esse ritual é uma obra da obscuridade!

 

Milo sorriu satisfeito e deu passos em nossa direção. Colocando a mão em minha arma, ele parou sua caminhada e ergueu as mãos ainda sorrindo. Os chiados dos braseiros junto a um cheiro de incenso que emitiam contrastava com o odor pútrido no ar. Milo suspirou fundo, colocando as mão atrás das costas. 

 

— Esta é uma bela noite, Glória. Estou feliz em vê-la aqui — Sua voz distorcida fez o calafrio aumentar.

 

Franzi as sobrancelhas enquanto procurava por qualquer outro movimento pelo lugar.

 

— Marcelo, sempre… leal e obediente, um bom cão — zombou. 

 

— O que está acontecendo aqui, Milo?! — Você está mais feio que o normal. 

 

— Eu… — parou brevemente.

 

Ele colocou a mão no queixo como se pensasse e tirou seu boné. Que merda é essa?! Vômito subiu pela minha garganta, mas consegui impedir que saísse. O gosto é melhor que essa visão, que nojo. Marcelo foi incapaz de conter e vomitou ao meu lado, se estivéssemos em outra situação eu zombaria disso.

 

O topo da cabeça de Milo tinha inúmeros furos com pequenos tentáculos balançando. Ao ver Marcelo vomitando, Milo começou a rir descontroladamente. Sua risada distorcida rebatia nas paredes do lugar e o deixava ainda pior para se estar. Ve-lo rir fazia o frio na minha barriga se intensificar e um vento gélido soprava na minha nuca.

 

Isso é insano!

 

— O que você planeja nos trazendo aqui, Milo?! 

 

Seu riso cessava vagarosamente enquanto olhava para mim. 

 

— Eu estou te convidando, assim como eu fui convidado para fazer parte de algo maior, algo melhor!

 

— Quem te convidou? E como você acabou assim?! — Endureci meu olhar.

 

— O nome dele é Pólios, ele destruiu minha dor e fraqueza por um preço muito pequeno. 

 

Um pequeno preço? Essa é sua definição para isso? Milo fechou seus olhos e sua expressão se suavizou, como se estivesse meditando ou feliz com as coisas. Pensar em como sair dessa situação com ele vivo será difícil, as lesões são profundas demais e provavelmente ele realmente parece querer estar nessa situação. Tudo aponta que ele está feliz assim.

 

— Você trocou sua humanidade por isso? Qual a lógica disso para você?!

 

— Voce é igual a aquele velho idiota do seu pai! Eu posso ter o que perdi de volta, com meu benfeitor a morte é apenas um piscar de olhos insignificante! Ele poderá estender sua bondade para você, Vincent e seu filho Samuel, mas você tem que querer! 

 

O frio em minha barriga se desfez com uma velocidade incrível. Meus olhos representavam o ódio ascendente que corria por meu corpo, aquecendo e relaxando os músculos. É uma pena que ele tenha acabado assim, mas dá pra ver que Milo está longe da sanidade. Puxando a espada da bainha lentamente, estou certa do que devo fazer.

 

No fluxo, emoções se tornaram irrelevantes à medida que cada sentido se amplificava. O sorriso do Milo se tornou amargurado à medida que sacamos nossas armas. Nas sombras do lugar, silhuetas humanoides começaram a se mover como cães e o cheiro de podridão se intensificou no ar. Então realmente tinha uma armadilha. 

 

Quase previsível, mas outra coisa me preocupa agora. Milo olhava com decepção para mim enquanto balançava a cabeça.

 

— Pensei que fosse mais esperta, Glória — disse colocando o boné. 

 

— Eu achava que você fosse menos burro — zombou Marcelo.

 

Seu olhar de decepção se tornou uma carranca.

 

— Vamos testar sua coragem e a de seu cão, Glória — rosnou. 

 

— Vamos então, Milo. 



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