Volume 1

Capítulo 3: Pode dar certo.

[Sexta-Feira 09 de fevereiro de 2404, 23:19 da noite]

 

Os farois dos demais carros na rodovia eram hipnotizantes. O interior do carro do Marcelo era surpreendentemente limpo, os bancos confortáveis faziam o cansaço dentro de mim pesar ainda mais. Espero que Leo esteja de bom humor, mas é melhor estar preparada caso seja o contrário.

 

A base para a qual estávamos indo era gerenciada por Leonardo. Bases da ordem estão pelo país inteiro, trocaram quantidade por qualidade e isso tenho que reconhecer que foi uma boa ideia. Mas deixar bases como essa a mercê de famílias ricas foi má ideia. Por sorte, Leo também desapreciava os "nobres" assim como eu. 

 

Para meu azar, sou descendente de uma dessas famílias. Isso é algo que deixa um gosto amargo na boca, mas nem tudo é tão ruim… foi o que disseram. Esse assunto apenas me trás infelicidades passadas. Ao menos, pelo que sei, minha mãe era diferente da maioria; isso já é alguma coisa. 

 

A garoa aumentou para chuva quando chegamos em outra estrada baldia. O para-brisa molhado tinha apenas os faróis como luz visível, árvores imensas cobriam o céu e seus galhos tinham silhuetas parecidas com mãos na escuridão. Às vezes acho que essas árvores vão nos atacar algum dia.

 

Para qual das muitas entidades celestes Milo se vendeu? Pólios, nunca ouvi falar em algum celeste com esse nome. Talvez seja um fora dos registros, um Escurial talvez. O mais estranho foi a fala do Milo a respeito da situação, ele parecia estar feliz com o estado em que estava! Isso é loucura.

 

Olhando para Marcelo, seu olhar concentrado na estrada era algo raro. Ainda preciso inventar uma desculpa para o carro, já usei duas vezes invenção do roubo. Aquela criatura que fugiu foi esperta o suficiente para explodir o carro e usar isso como distração. Sem falar em como ele conseguiu explodir meu carro tão rápido!

 

Era algo mais forte do que Milo.

 

— Você acha que vamos ser colocados nessa investigação? — Afundei no assento.

 

— Depende do Leonardo e seu humor — Seu suspiro cansado ecoou pelo carro.

 

— Esse é um caso totalmente contrário aos desaparecidos, sem chance de sermos colocados nessa! — Por favor, que eu esteja certa.

 

Fechando os olhos, deixei minha consciência mergulhar em pensamentos. O som das gotas da chuva caindo na lataria era satisfatório. Entidades… tinha me esforçado muito para fugir desse tipo de investigação e uma foi arremessada para mim. Que merda, devia ter ido para casa.

 

Abrindo os olhos, um ponto de luz distante surgiu na estrada. Muros feitos com pedras eram cobertos pela vegetação da floresta, a estrada se alargava em ponto circular para englobar um portão de aço verde e o muro ao seu redor. Na extensão das paredes, guaritas estavam montadas e dentro delas era possível ver silhuetas.

 

Marcelo parou o carro na frente do portão. Com um som metálico, o portão mergulhava no chão para abrir passagem para nós. Eu gosto de ver isso, é estranho e satisfatório. Avançando para o primeiro portão, entre ele e o segundo, um posto de checagem estava montado.

 

Guardas uniformizados tinham suas armas nas mãos observando o carro. Uma soldado saiu da formação e se aproximou da porta do motorista enquanto o portão se fechava atrás de nós. A soldado deu toques no vidro e Marcelo o abaixou despreocupado.

 

— Glória Bellagio Merial e Marcelo Merial Dias, o que… — Os olhos da soldado se moveram entre nós. — Qual o motivo da visita surpresa para a casamata Bravo?

 

Marcelo olhou para mim e logo depois a soldado também. Sempre sobra pra mim, agh!

 

— Tenho uma atualização de emergência para o supervisor, avise Leonardo. — É apenas isso, faça rápido!

 

A soldado nos encarou por mais alguns segundos antes de bater continência e liberar nossa passagem. O interior da casamata era semelhante a um pátio, quatro prédios nas pontas do quadrado e um pequeno prédio no meio. Entre eles, uma estrada de pedras conectava os lugares e postes de luz iluminavam fracamente o lugar.

 

No estacionamento do prédio central, um suspiro cansado escapou enquanto saía do carro. O céu acima de nós era tempestuoso, as copas das árvores sacudiam e formavam um cone para que a visão fosse possível. Gotas caiam sobre meu rosto enquanto puxava o ar gélido e reconfortante para dentro.

 

Força, apenas acabe com isso.

 

O edifício central era do mesmo tamanho que uma casa grande. Andando até uma porta de vidro negro, ela bipou antes de se abrir automaticamente. O interior do lugar tinha a cor verde e branca nas paredes e o piso desbotado em amarelo, as portas da mesma cor negra impossibilitaram espiar dentro das salas.

 

O corredor terminava em uma sala quadrada. Duas portas se destacavam no lugar, olhando ao redor, cadeiras dispostas pelo local deixava a sala semelhante a uma recepção. Avançando para as portas, abriram sem necessidade da nossa interação e se fecharam atrás de nós. Tudo isso para um elevador.

 

O elevador desceu ao invés de subir. Chegando ao subsolo, saímos em um salão que tinha uma porta com uma mensagem holográfica dizendo que esperava visitas. Entrando na sala, havia poltronas nos cantos e duas poltronas à frente da mesa no meio da sala onde Leonardo nos esperava. 

 

Seu físico corpulento junto a seu olhar carrancudo o fazia parecer sempre estar de mau humor. O terno simples e acabado que sempre usava o dava uma certa elegância. Nos sentamos à sua frente enquanto ele observava em silêncio. Parece que está com um humor relativamente bom hoje. 

 

— Está feliz em nos ver? — Quebrei o silêncio.

 

Seu suspiro produziu um som semelhante a um assobio. Pelo visto… 

 

— Por que está aqui, Glória? — Virou sua cabeça. — E você também, Marcelo? 

 

Direto ao ponto, entendi.

 

— Milo está morto e tem uma provável entidade celeste fora do registro à solta. — Colocando assim fica bem mais convidativo.

 

O olhar cansado de Leo afundou ainda mais enquanto se recostava em sua cadeira. Marcelo e eu nos entreolhamos enquanto Leonardo parecia ponderar as coisas. Por favor, me deixe fora dessa! Ele se reergueu da posição meditativa, mas seu olhar continuava cansado.

 

— Supondo que está fora do registro e matou ou fez parte da morte de um humano, precisa ser catalogada — Sua voz se arrastou pela sala.

 

— Vou mandar um relatório para o investigador dizendo o que vi. — Consegui!

 

— Você vai ter que investigar — disse com seu olhar encontrando o meu.

 

An?

 

Nos encaramos por alguns segundos antes dele focar em outra coisa. Eu já estou em outra investigação, minha última! Isso é injusto, só fui ajudar aquele idiota como um favor! Celestes chamam muita atenção e com certeza o risco é completamente em vão para mim.

 

— Sem chances. — Nenhuma chance!

 

— É isso ou os desaparecidos — respondeu enquanto mexia em envelopes.

 

— Prefiro os desaparecidos! 

 

Com um suspiro cansado largou os envelopes e se jogou na cadeira, seus olhar se fixou em mim enquanto esfregava a testa.

 

— Os desaparecidos iriam demorar um ano ou mais para se concluir, você sabe disso — se ajeitou e disse — tenho algo não confirmado de uma entidade fora dos registros e se for a mesma isso vai acabar em no mínimo um mês.  

 

O silêncio do lugar foi desconfortável. Ele está certo, mas isso se trata muito mais do risco do que o tempo. Para catalogar uma entidade, basta provar que ela existe com uma prova das suas ações. Se ela for do tipo que dá pra coexistir conosco é boa, caso contrário… 

 

— O que você ganha quando essa entidade for catalogada, Leo? 

 

Sua expressão cansada se suavizou para um sorriso com minha pergunta.

 

— Com isso, vou poder ficar em paz até minha aposentadoria, sem aqueles idiotas dando pitaco na minha base — respondeu contente.

 

Olhei para Marcelo e seu olhar pensativo encontrou o meu. O que deveria fazer? Posso me aposentar mais cedo ou ficar investigando corpos atrás de corpos até chegar em uma criatura insignificante… Um mês é muito tentador, muito mesmo. Está longe de ser a melhor opção, mas com certeza é viável.

 

— Quais são as pistas? — Virei-me para Leo.

 

Seu sorriso aumentou um pouco, mas se manteve discreto.

 

— Uma sequência de mortes, um contato de confiança disse que parecem ser um ritual e agora com sua suspeita — entrelaçou os dedos enquanto falava — tenho algo concreto para iniciar uma investigação com a intenção da catalogação.

 

— Como você tem certeza que possa ser um ritual? — perguntou Marcelo.

 

— As mortes seguem um padrão específico e todos têm uma marca registrada. — Leonardo estendeu um envelope para Marcelo.

 

Entidades celestes que fazem o contrário de ignorar nossa existência, geralmente gostam de ser tratadas como deuses. A forma mais comum de se comunicarem com seus "fiéis" é por meio de sacrifícios ou coisas nesse gênero. Uma entidade sempre deixa uma marca distinta, pode ser desde uma coisa extravagante até… sangue de cor laranja.

 

— Qual é a marca registrada desses rituais? 

 

— A mesma coisa que Milo tinha — respondeu Marcelo por Leo.

 

Virando a cabeça, Marcelo olhava inexpressivo para os papéis em suas mãos. 

 

— Todos tinham um líquido laranja em seus corpos e estavam mutilados, mas a segunda parte você sabe que é comum — explicou Leonardo.

 

Fechando meus olhos, inspirei o máximo que puder antes de liberar. Eu tenho todos os ingredientes para fazer uma boa comida, mas a cozinha que vou ser obrigada a trabalhar é mais perigosa. Um mês ou menos, isso era música para meus ouvidos. Mas vale o risco? 

 

Posso tentar. 

 

Em um contexto geral, a resposta seria negativa. Mas catalogar esse celeste será mais útil do que perseguir uma criatura ou um lunático que eu estava caçando antes. Mesmo que cada instinto me diga para fugir disso, tudo que vou precisar fazer é provar que é realmente uma entidade celeste. Só preciso ter mais cuidado que o normal.

 

Só preciso usar o cérebro.

 

— Eu quero me manter anônima e vou precisar do seu contato de confiança — Espero que essa seja a escolha certa.

 

Leo soltou outro suspiro agudo enquanto ajeitava na cadeira.

 

— Vou fazer meu melhor na primeira parte, mas já aviso antes que o segredo irá se manter por pouco tempo. 

 

— Quanto? — questionou Marcelo.

 

— O bastante ou muito menos que isso. 

 

Levantando-me da cadeira, Marcelo me seguiu até a porta. O bastante ou muito menos? Então tenho no mínimo três dias antes da notícia cair nos ouvidos dos magistrados.

 

— Glória — chamou Leo. — Sei que já deve saber, mas tome cuidado. 

 

Acenando com a cabeça, saímos da sala e fizemos o trajeto de volta para fora. No carro do Marcelo, um soldado nos aguardava com a caixa dos arquivos. Enquanto Marcelo abria o porta-malas para o homem, sentei na frente do carro para aproveitar a garoa fria que caia. 

 

Marcelo sentou ao meu lado e tirou um cigarro do casaco. O cheiro da fumaça estragou momentaneamente a brisa fria, mas logo se perdeu no cheiro da chuva. Filas de guardas marchavam pela estrada de pedras à nossa frente com fuzis em mãos. Leonardo realmente sabe administrar o lugar.

 

Agora estou no caso de uma entidade celeste. É irônico pensar que muitos matariam para ter um caso desses em mãos. Fama, prestígio e bla bla bla… viver em uma família que tinha isso quase estragou minha vida. Por sorte meu velho apareceu a tempo junto com Vincent e Marcelo.

 

— O que você acha que vai acontecer? — Marcelo me cutucou.

 

— Espero que o melhor cenário possível.

 

Sua risada carregada de fumaça se tornou uma tosse. Levantando-me do capô, andei até o carona enquanto se levantava. Olhando uma última vez o lugar, as luzes dos postes ficaram borradas pela garoa, os demais prédios eram apenas silhuetas na neblina da noite. Espero um dia nunca mais ter que vir aqui. 

 

Dentro do carro, o calor do ar-condicionado lutava contra o frio. Marcelo entrou e deu a partida enquanto ainda tossia. Colocando uma música na rádio, me ajeitei no banco e fechei meus olhos. Vou ter que usar a mesma desculpa para o carro, agh! Espero que eles evitem fazer perguntas… 

 

Infelizmente isso será impossível, agh!

 

— Já está sonhando com Vincent? — A voz de Marcelo interrompeu meu sono. — Espero que você esteja pensando em coisas boas com meu irmãozinho.

 

Um calor surgiu em minhas bochechas e se espalhou para meu rosto. Erguendo-me do meu descanso, encarei Marcelo brevemente antes de atingi-lo na barriga. Ele parou o carro em meio a estrada baldia enquanto se contorcia com as mãos no estômago. 

 

Voltando para minha posição do sono, deixei meus pensamentos livres. Vincent e meu Samuel, depois desse trabalho vou poder passar mais tempo com vocês. Que tudo dê certo e seja simples! O carro voltou a andar e Marcelo ainda gemia fracamente.

 

Eu juro que vou dar o meu melhor por vocês.



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