Volume 2

Capítulo 24: Contra o vento

Marcelo

 

[Sábado 10 de Setembro de 2412, 15:24 da tarde]

A atmosfera tinha mais do que apenas ar, pequenas flutuações de energia enchiam a sala abaixo da casa. Olhei ao redor para ver a elevação que dividia o chão com dois degraus, na parte alta, a mesa de reuniões estava logo na porta de entrada e atrás da mesa havia as estantes para acomodar a enorme quantidade de livros que Goro tem, olhei à minha direita para ver o estande de armas e atrás dele o resto das estantes para armazenamento. A luz derivada das lâmpadas de teto amarelas como velas enchia o lugar em uma atmosfera antiga. 

 

Quanto mais é o bastante?

 

Olhei para o chão do recanto de treino com as mãos no joelho enquanto ofegava, junto ao ar que eu respirava, a energia Fie criava uma atmosfera perfeita para treinar o controle de energia. Quanto tempo por dia nos últimos anos eu passo aqui? Essas palavras tem me assombrado desde ontem a noite, Glória tem razão em estar frustrada, mas a capacidade que ela tem de fazer com que eu pense nisso me irrita. Por que eu quero isso? Por que eu… preciso disso? Chega… pensar nisso me cansa.

 

Foquei a atenção no meu fluxo interno, refazendo os movimentos que estou realizando a mais de dois meses para alcançar a Terceira Irmã. Eu aprendi a manipular Sine quando ainda era adolescente, o Primeiro Irmão, e aprendi sobre como manipular Fie na mesma idade e já era bom em fazer isso, a Segunda Irmã, mas a terceira energia insiste em ser complexa. Os Três Irmãos são as três energias mais conhecidas e a maioria preferem se manter no primeiro e segundo irmãos, mas eu quero ir além. 

 

Se continuar a repetir o mesmo processo está te levando ao mesmo resultado, onde está o erro? — A voz de Meyrine invadiu meus pensamentos como uma bigorna caindo dos céus.

 

Mantive a concentração mesmo com suas palavras atingindo meu cérebro como um tapa. Nos ensinamentos de como manipular energia, em primeiro de tudo é aprendido os princípios do fluxo, uma lista que mostra o básico a se alcançar para controlar o fluxo interno e demais energias. Primeiro princípio é a saída, focando minha mente no fluxo de energia em meu peito, posso aumentar ou diminuir a quantidade de energia que vem para meu corpo.

 

Depois vem o fluxo interno, movimentar essa energia recém saída pelo meu corpo em seu estado puro ou em Fie diluída. O problema vem do fato de que a terceira energia não existe em um lugar para ser extraída e manipulada como é com Fie, ela é formada pela união de Sine e Fie em uma única forma… o resto do que me foi explicado parece tão irreal quanto é real. Observei a presença de Meyrine em minha mente, observando cada esforço e tentativa.

 

Mulherzinha espontânea…

 

Ter sido acolhido pela Família Áurea tem suas vantagens como o conhecimento que eles carregam e suas desvantagens sendo um possível espírito que pode ou não querer se ligar a você como Espíritos Guias. A espírito guia do Samuel e dita como equilibrada e gentil, a minha tem problemas de temperamento e um senso de proteção que só rivaliza com o da Glória. Pude sentir o equivalente a revirar de olhos vindo da presença de Meyrine, mas ela se absteve de comentários. 

 

Ajeitei minhas costas e postura para reconstruir minha concentração, memórias dos oito anos passados vieram junto a demais pensamentos. Goro disse que ficou surpreso por eu ter sido escolhido por um espírito guia já que ele é mais comum para as crianças áureas como Samuel, ensinando a eles os princípios do fluxo e histórias do passado, por algum motivo Meyrine saiu daquela árvore para vir cuidar de mim. Sinceramente tem momentos em que preferiria enfrentar certas dúvidas sozinho… e pensar que antes ela era gentil. 

 

Minha gentileza se esgotou com sua teimosia, atribua essa culpa a si próprio. — Em sua voz calma havia um veneno sutil. 

 

— Você disse que me ensinaria a formar a terceira energia, mas o passo a passo está dando em um absoluto nada, o que adianta formá-la por instantes?! — Me dividi em reclamar e manter a concentração.

 

Sua presença se agitou como se estivesse tremendo.

 

Limpe sua mente, foque em uma forma, entenda a ligação das energias em seu íntimo e replique isso até que a compreensão te atinja… Você está falhando porque sua mente nunca está limpa, seu desejo mais profundo vai te impedir de fazer isso… novamente, atribua… a… culpa… a SI próprio — Sua voz saiu como um assobio de vento agudo em minha cabeça e logo depois sua presença se foi para as profundezas do meu fluxo.

 

Minha consciência pesou à medida que eu lembrei das milhares de conversas que tivemos sobre o mesmo assunto e as inúmeras tentativas que ela fez de me fazer esquecer. A culpa parecia um pilar em minha consciência sendo construído a cada discussão que tenho sobre minha vingança, todas as conversas terminam em um bloco a mais sendo adicionado ao pilar… e sim, a culpa é unicamente minha. Saber disso deveria tornar mais fácil com que eu superasse, mas sempre me lembro daquele olhar… 

 

A imagem mental se montou com uma velocidade incalculável, o dia que vi a entidade que queimou um quarteirão inteiro e matou centenas, mas Vincent ele se deu o trabalho de matar e torturar por conta própria. Minha respiração tremeu quanto mais o ódio que eu fermento aumentava dentro de mim, mas eu apenas engoli a emoção, como o que tenho feito desde de o princípio. Mantive minha expressão e emoções sob controle enquanto me aprofundava no fluxo em busca de Meyrine… mas fui incapaz de encontrá-la.

 

— Meyrine… desculpa. 

 

Sua presença reapareceu, mas em silêncio, essa era a forma favorita que ela tinha de me punir. 

 

— Eu vou conseguir limpar minha mente, só é complicado…

 

Marce. 

 

Minha boca se fechou tão rápido que fez um pook.

 

— Eu apenas quero que você possa viver como alguém que merece estar vivo e não por um objetivo final… limpe sua mente, chegue a zona de lucidez, eu tenho certeza que você consegue. — Sua voz retornou para o canto da minha consciência, estava limpa de raiva ou irritação, apenas preocupação. 

 

Destilei energia vinda do fluxo para o fluxo interno Fie para ir para o próximo dos princípios e foquei nisso para ocupar meus pensamentos. O princípio da formação é dar a forma a energia através de uma ideia ou vontade bem elaborada, Sine é quem carrega isso por ser os vestígios de energia vinda da alma e ter consciência disso permitiu que eu melhorasse a qualidade da minha energia Sine, esse é núcleo da Sine. Fie foi mais difícil de entender, cada partícula possui uma fagulha que as conecta a um todo e esse é núcleo dela.

 

Formei em minha mente momentaneamente vazia um objetivo simples para ver a fusão ocorrendo, quando Sine diluída em Fie em meu interior se moldou, eu vi através dessa união. Veritas era parte da essência de uma criação, uma massa de energia escura que nascia das outras duas energias como sendo parte do que molda a contrução daquilo. Depois de dois meses ou talvez três, finalmente eu entendi! O sorriso que se formou em meu rosto logo começou a se deteriorar. 

 

Passei vários minutos tentando botar a fusão em prática de forma consciente, mas eu só consegui formar ela da maneira inconsciente que era juntando as duas energia em um objetivo e ela nascia por meio disso. Suor escorria da minha testa e descia até a barba enquanto eu tentava formar ela de maneira consciente, limpando minha mente várias vezes até meu cérebro doer de exaustão. O fato que me rodeava era como um soco no estômago, eu não vou conseguir fazê-la de modo consciente enquanto meu objetivo for matar. 

 

O cansaço me venceu a ponto que apenas sentei no chão para pensar. Veritas também é conhecida como Boa Energia por ninguém que se conecta a obscuridade conseguir usar, pensei que essa era a condição, mas a verdade parece ser mais profunda do que isso, é diferente das outras energia que é preciso saber o que quer para acontecer e as limitações estão e nosso controle e compreensão… talvez por isso poucos se interessam por ela. Muitas hipóteses caíram sobre mim, mas essa era a restrição que me impedia de usá-la de forma consciente, a mais provável ao menos.

 

Você está mais perto agora do que muitos! Continua, Marcelo, falta pouco! — A voz de Meyrine saiu das profundezas da minha consciência como uma luz dourada em um céu chuvoso. 

 

— Eu tô cansado… 

 

Houve um curto silêncio antes dela reaparecer.

 

Você errou apenas uma parte do entendimento… mas tudo bem, pode desistir. 

 

Que?!

 

Passos vieram do lado antes que eu pudesse questionar Meyrine, olhei de canto para ver Hana descendo os dois degraus da divisão. Quando ela chegou aqui… O cabelo ondulado cortado na altura dos ombros envolviam seu rosto com traços asiáticos, mesmo sua descendência asiática óbvia não escondia a segunda, seus lábios grossos em um tom entre rosa e vermelho pareciam ter vindo direto da boca de um anjo e seus olhos castanhos tinham o tom de âmbar. Ela se sentou no último degrau e parecia esperar que eu a olhasse.

 

Virando minha cabeça para ela, dei uma cheirada forte e discreta em mim próprio para ver se o cheiro estava muito ruim. Ela estava vestida de forma casual ao invés do terno cinzento que normalmente usa, sua camisa cor vinho de manga comprida tinha cortes em suas mangas que complementava um estilo mais livre, a calça preta marcava sua cintura com a camisa dentro dela, seus pés estavam amostra com uma sandália aberta. Meu coração pulou uma batida ao ver aqueles olhos se fixando nos meus. 

 

Aí papai.

 

— Você parece ocupado, volto depois? — Sua voz passeou por meus ouvidos como seda, carregando um toque de provocação. 

 

— Tudo bem, tô apenas praticando… Eai, como você está? 

 

Ela soltou uma risada curta, um sorriso brincalhão apareceu em seus lábios enquanto me olhava. 

 

— Você é péssimo nisso, acho que é por isso que gosto mais da sua presença do que conversar com você… devemos saber nossas limitações, né? — Seus olhos e sorriso fizeram eu me sentir um adolescente novamente, pequeno e envergonhado. 

 

Hana e eu… bom, tá certo que a culpa é minha também por nunca ter oficializado pros demais, mas ao menos Glória disse que Samuel já suspeita. Eu a conheci desde a época que ainda era um Mensageiro de classe dois, mais nos últimos oito anos descobri que ela é uma membra de uma das Cinco Famílias Astrais e temos nós conhecido melhor… Pensei que essa pressão no meu peito ao falar com ela sumiria com o tempo, até me rebaixei para pedir conselhos a Glória, mas simplesmente travo. 

 

— É feio limitar alguém apenas por preferir o silêncio… eu sou um ótimo massagista e bom cozinheiro — retruquei. 

 

— E um cabeça oca nas horas vagas… Você está tentando de novo? — Seu sorriso diminuiu ao final da fala. 

 

Glória e sua grande boca.

 

— Sim, eu consigo ver como a criar agora, mas sou incapaz de formar quando bem quiser… — Deixei minha frustração sair com as palavras.

 

Sua feição ficou simpática enquanto me encarava. 

 

— Você não sabe o que quer, talvez por isso tenha recusado meu pedido para sairmos… sua falta de finalidade ter impede de avançar. — Seus olhos desceram para o chão e com a descida deles subiu um nó em minha garganta. 

 

Oficializar algo é se comprometer, dar tudo de si por aquilo e grau maior de importância. Eu sei o que sinto por Hana, sei o quão grande é isso e quão longe quero que isso vá… mas também quero fazer minha justiça, alcançar essa meta antes de me sentir pronto para ela. As palavras de Glória começaram a se debater no cofre onde as coloco e o nó apertou ainda mais ao ponto de coçar em minha garganta. Eu quero… puta merda, que raiva. 

 

Isso vai me libertar?

 

O que me tirou da espiral de perguntas foi ver Hana se levantando, ela sorriu fracamente para mim e começou a se virar para a saída. Algo dentro de mim se mexia enquanto meus olhos acompanhavam seus passos, Sine em meu corpo se excitou quando meu desejo de alcançá-la criou garras e força, senti esse desejo se movendo por mim, por cada músculo antes que eu pudesse pensar sobre o que fazer. Como se tivesse saído de um transe para entrar em outro, uma voz que se assemelhava à minha gritou em minha mente. 

 

Aja!

 

Como uma sequência de eventos, meu corpo se levantou e disparou em direção a Hana antes mesmo que meu consciente compreendesse as coisas. Eu tinha coberto mais de quatro metros, que foi para igual a três passos largos e nem mesmo me senti ficar de pé, minha mão segurava a de Hana e levantei minha cabeça para encontrar seus olhos surpresos com minha presença. Além de tudo isso, vi em minha que segurava a mão de Hana algo que pensei ser incapaz a poucos minutos, a energia Veritas desaparecia do meu fluxo interno lentamente na minha mão.

 

— Eu… quero sair com você. — Acordado do transe, tentei absorver as informações, mas mesmo o choque das coisas foram incapazes de me fazerem ficar calado.

 

Hana levou a minha mão ao seu rosto, sua feição antes triste parecia revitalizada.

 

— Você é Marcelo aquele que vive pelo sonho de vingança ou Marcelo aquele que vive para se vingar? De qualquer forma, nunca vai conseguir alcançar o que quer ou viver plenamente enquanto seu objetivo for tão limitado. Se você vive para matar aquela entidade, então você vive unicamente por aquela entidade, Samuel, Glória, Goro, Eu e os outros somos apenas pessoas no caminho do seu objetivo principal… Liberte-se, Marcelo, e quando eu ver o mesmo desejo de agora concretizado no seu rosto, eu aceitarei o pedido. — Ela beijou as costas da minha mão antes de se virar para sair, mas parou momentaneamente logo na porta.

 

— Os áureos são conhecidos como eruditos, mas pelo que sei suas maiores descobertas pessoais nunca foram feitas em um subsolo… sinta o sol, hoje em dia sua aparição é um evento e tanto. — Eu a assisti se virar e subir as escadas para cima, suas palavras se enraizando em minha mente.

 

Apenas o silêncio me restou, tão absoluto que eu podia escutar a eletricidade das lâmpadas. Puxei a cadeira e deixei que seus pés arrastassem para criar algum barulho que logo se dissolveu também, sentar ou ficar de pé? Até mesmo isso era confuso em minha cabeça agora. Os conceitos do que eu quero e preciso se misturavam e a barreira mental que criei para seguir em frente começou a trincar. Meus esforços normalmente eram para suturar as rachaduras me lembrando daquele momento, mas dessa vez, deixei a rachadura onde estava junto às demais.

 

O que… eu realmente quero?

 

Essa pergunta se rebatia dentro de mim, batendo contra a barreira e o pilar, contra meus desejos e todo resto. De alguma forma, entre a barreira e o pilar e todo o resto eu consegui encontrar um momento de paz mental, aproveitei cada milésimo de segundo de uma sensação semelhante a flutuar sem peso algum. Memórias do passado vieram a minha mente, quando comecei a cuidar de Vincent ainda na adolescência porque a situação dos nossos pais pioraram.

 

Quando eles se foram, ser um mensageiro dava dinheiro mais do que o suficiente para nos sustentar, eu vi ele superar a morte dos nossos pais, crescer e construir a própria família. Em meio a isso, o sentimento de saudade superava todo o ódio dentro de mim… É por isso que eu quero tanto matar aquela coisa, ele tirou meu irmãozinho, alguém que criou uma obra inata do zero apenas para ser um médico e ajudar as pessoas se passando como um médico comum… a realização mais linda que eu já fui capaz de fazer até agora. Aquela entidade não só tirou ele de mim, mas quase levou o que ele considerava mais importante. 

 

Eu tenho que matar aquela coisa.

 

Suspirei cansado me apoiando na cadeira enquanto retinha lágrimas prestes a se formar. Tudo leva ao mesmo lugar, a mesma sensação e a mesma conclusão, eu ainda não sei equilibrar esse ódio com minha vida atual e separar esse objetivo daquilo que amo… Eu não consigo esquecer aquele olhar de desprezo enquanto seus olhos estavam no meu irmão caído e agonizando no chão… me perdoe Samuel, Glória, Goro… Meyrine, mas eu realmente tento todos os dias. 

 

A presença de Meyrine se manifestou na minha consciência como um consolo, seu silêncio transparecia mais empatia do que palavras conseguiam. Recobrei o controle das minhas emoções após deixar algumas lágrimas caírem, enquanto estiver aqui, só posso ser o tio que Samuel precisa ao invés de aprender e conseguir ser o tio que ele merece ter. O peso de uma ideia começou a se formar a medida que as emoções se misturavam, a exaustão começou a se diluir.

 

Eu quero que essa dor acabe… mas você tem certeza que quer fazer isso com Sammy e a Glória? Que quer fazer isso agora? — Meyrine se esforçou para esconder a desaprovação de sua voz, mas eu a senti.

 

— Eu preciso acabar com isso… sem mais tormento ou pesadelos, eu quero ter paz — falei pegando o sobretudo em cima da mesa e me virando para a saída enquanto limpava as lágrimas fugitivas. 

 

Subi as escadas ignorando as inscrições auritas gravadas nas paredes e indo direto para porta, abri sem me preocupar em fechá-la manualmente. Olhei para o lado e vi Armando conversando com Emma, suavizei minha expressão tentando passar despercebido, o garoto é esperto e se grudou em mim mesmo depois que sai de Cedro a oito anos, vai demorar muito pouco pra ele conectar as coisas. Ao mesmo tempo em que tentei passar despercebido, me senti feliz o vendo com Emma, ambos já tinham uma conexão especial a muito tempo.

 

Por sorte ou por minha desatenção, passei despercebido por ele e segui em direção ao hall de entrada. Senti os pelos em minha nuca se arrepiarem, como se estivesse esperando por mim, Glória estava parada como uma estátua olhando um dos murais de história nas paredes escuras, ela nem mesmo moveu sua cabeça para mim, mas sabia que sua atenção era toda minha… infelizmente. Desde de Cedro, chamar Glória de boa é apenas o começo, seu entendimento de energias e seu controle está além do meu ou até mesmo do Goro.

 

E sua capacidade de sentir qualquer energia também é um incomodo.

 

Mesmo no princípio da omissão onde se fecha a saída de energia e retira a energia do corpo para o fluxo, ela consegue nos sentir de alguma forma. Me aproximei devagar do seu lado esquerdo mais perto da porta, tentei criar coragem para olhar em seus olhos, mas o sentimento de estar falhando com uma irmã mais nova ancorou minha cabeça para baixo. Ela ficou em silêncio e isso era o que me perturbava, seu silêncio era mais afiado do que o de Meyrine.

 

— Se você quer ir, vá… mas quando voltar, não serei eu que vai arranjar uma desculpa para Sammy. — Em seus olhos caramelos um brilho rodeou sua pupila, com a iris ao redor brilhando em dourado, isso é sinal que meu erro era profundo.

 

— Eu… vou consertar isso… eu prometo, Glória. 

 

A tensão do seu olhar mudou de raiva para preocupação, mas ainda continuava afiado.

 

— Volte vivo… é muito cedo para Samuel passar por outro velório.

 

Suas últimas palavras antes de eu me virar me atingiram de uma forma que nunca senti, tão forte que senti a dor se manifestar em meu peito. Mantendo o nó em minha garganta como foco da minha atenção para que o peso em meu peito fosse diminuido, eu saí da casa para encontrar um céu azul e cinza, o sol lançava seus raios entre as árvores que rodeavam a propriedade e as folhas balançavam com o vento gelado. Vesti meu casaco e segui em direção a garagem, três carros estavam estacionados antes de chegar a minha moto.

 

O penúltimo carro era de Hana, pronto para lidar com uma versão de seu humor totalmente furiosa, fiz algo que com certeza irei me arrepender. Depois de furar os quatro pneus do carro da Hana, isso deveria ser o suficiente para manter ela e Armando a distância, mesmo que por pouco tempo até eles encontrarem um jeito… como sempre. Manobrei minha moto em direção ao portão e desci a pequena ladeira com o motor desligado para evitar atenção, a pessoa que queria encontrar já me esperava lá.

 

Leonardo se desencostou do muro para ficar ao lado da moto trazendo consigo um pasta, seus olhos tinham desconfiança sob uma camada de culpa que já me acostumei de ver nele. Depois do incêndio de Cedro, notei a culpa em seus olhos sempre que olhava para mim ou Glória, a pior de todas era quando ele via Samuel. Ele ganhou a cicatriz quando começou a caça pelos Guiles, especificamente como ele a ganhou ele nunca disse, mas provavelmente o patriarca dos Guiles também saiu com uma cicatriz. 

 

— Você tem certeza que quer ir sozinho? — Além da preocupação em sua voz, também havia clara repreensão enquanto ele tirava um envelope da pasta que trouxe consigo.

 

— Apenas fale, Léo. — Peguei o envelope e o folheei, esperando sua fala.

 

Houve um suspiro antes de tudo.

 

— Uma cidade a sessenta quilômetros daqui, Cairiti, os mesmo padrões de desaparecimentos que aconteceu em Cedro a oito anos tem acontecido lá e também… — ele hesitou por um momento — um mensageiro de classe dois reportou ter visto um humanoide pálido entre um grupo de três Cruciros numa missão de reconhecimento… ele descreveu esse humanoide como indefinido a origem dele pois foi incapaz de sentir seu fluxo ou presença.

 

Folheei entre os relatórios e discrição da cidade até chegar aonde queria, uma mistura de satisfação e raiva brotaram quando encontrei a folha que procurava. Criaturas que vem do obscuros com o intelecto como de um animal são catalogados no bestiário como Obscuriais, seres que se ligam ao obscuro por livre vontade são chamados de Anfitriões e nisso cabe quase todos os seres com consciência o suficiente para fazer isso. Quando um ser é dado como indefinido, é feito um retrato falado extremamente detalhado, já que câmeras podem chamar a atenção. 

 

É você…

 

O desenho era de um humanoide como qualquer outro humano alto, cabelo curto e vestes largas com aparência de estilos antigos. Esses olhos… eles foram o motivo da maioria dos meus pesadelos até hoje, mesmo no papel branco com rabisco preto eu conseguia visualizar duas esferas laranjas escurecidas com o contorno dos olhos cheios do que pareciam rachaduras em sua carne. Eu te achei… finalmente. Fiquei entre sorrir de desgosto ou satisfação, mas no final o desgosto venceu.

 

— Obrigado… Léo, obrigado.

 

Paguei a folha com o retrato e o dobrei para caber no meu bolso interno do casaco e coloquei o envelope no bagageiro da moto já pegando meu capacete também. Tentei empurrar a moto em direção ao portão, mas Leonardo segurou o guidão e colocou o pé no freio de trás, o capacete em minha cabeça o impedia de ver algo além do meus olhos com a viseira aberta, mas eu podia ver sua expressão se aprofundando em culpa e preocupação. Sua boca tremeu quando começou a falar.

 

— Eu nunca tinha mandado meus agentes a emboscadas até aquele dia e apenas os divinos sabem o quanto eu me arrependo de autorizar aquela missão, mas dessa eu sei o que você vai encontrar e sei o quanto você vai estar em perigo… apenas não morra, eu já me culpo o suficiente apenas de estar fazendo isso. — Seus olhos ficaram marejados, mas o resto de seu rosto estava duro como pedra.

 

Mordi meu lábio interno o suficiente para sentir o equivalente da minha culpa.

 

— Se isso te faz se sentir melhor… eu nunca te culpei por aquilo, Léo. — Sua expressão se aliviou junto a uma lágrima que desceu, eu podia ver seus pensamentos através da feição endurecida começando a rachar.

 

Ele tirou o pé do freio e soltou o guidão, fechei a viseira enquanto empurrava a moto longe o suficiente para o som ser abafado. Ligar a moto fez as palavras de leu surgir em minha mente ao invés do som do escapamento, seu olhar de derrota e medo misturado à culpa tinham tudo para ser meu novo pesadelo. A estrada de terra terminou em uma entrada da cidade, do lado esquerdo era onde havia um ponto de ônibus e um bosque público e do esquerdo um pasto que dava na floresta que Samuel amava ir.

 

Eu vou voltar, garoto, só preciso fazer algo antes.

 

Virei a moto para direita e segui a estrada pavimentada que me levava em direção às nuvens escuras, pude sentir o vento frio que vinha em minha direção como um alerta. Meyrine se manifestou em minha mente, era um consolo apenas saber que eu a tinha do meu lado, mesmo que eu estivesse indo contra o que ela dizia. Eu teria que me esforçar para consertar as coisas, mas antes de tudo eu preciso tirar esses pensamentos da minha mente… então preciso entender com a fonte deles… matar o mal pela raiz. 

 

Vamos dar um início ao fim disso. 

 



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