Volume 2

Capítulo 31: Sob o fio da guilhotina

Eithor Guile

 

[Domingo 11 de Setembro de 2412, 11:12 da manhã]

 

Minha atenção foi para a garrafa de bebida de cor mais forte que tinha à minha frente, a qualidade escura e o cheiro me deixava mais atraído pela ideia de bebe-la. A balancei no copo perto do nariz para degustar o cheiro amadeirado da bebida envelhecida em carvalho, mantive meu copo sempre cheio enquanto aguardava minha companhia chegar, estar apenas algumas porcentagens bêbado deve facilitar o processamento de algumas informações. Me escorei em um dos armários da sala fechada para avaliar uma informação.

 

O arrependimento tem muitas formas, acho que já conheci uma grande parte delas… puta merda.

 

A sala fechada, sem nenhuma janela e apenas uma porta para entrar e sair ficava no subsolo de um dos esconderijos de Penélope. A parte alta da sala tinha inúmeros armários com utensílios de cirurgia, remédios de todos os tipos e ferramentas estranhas que me arrepiaram apenas de olhar, tudo isso em uma atmosfera iluminada por uma lâmpada branca no meio da sala e no meio da sala também havia algo mais. Quatro degraus de escadas levava a um altar que servia como cama para a cobaia escolhida por Penélope.

 

O homem devia estar na casa dos trinta anos e estava completamente nu, inconsciente e amarrado enquanto esperávamos pela nossa anfitriã. Acho que terei que beber algo mais forte para suportar isso… de novo. Apesar da atmosfera macabra do lugar, tudo era surpreendentemente limpo e de alguma forma isso deixava muito pior do que se fosse tudo sujo de sangue e vísceras ou tivesse membros jogados pela sala. Essa é a quinta cobaia, nas três primeiras eu vomitei, na quarta eu tinha vomitado tudo que era possível para vomitar de novo. 

 

Vamos logo, vamos logo.

 

O procedimento deveria ser relativamente simples, de acordo com Penélope, seria mais fácil fazer isso em uma cobaia vampírica. Para infiltrar alguém na pequena cidade onde o garoto está é um desafio por si só, a comunidade Lunari são muito sensitivos e a barreira de sua entidade complica ainda mais as coisas, isso sem falar que Goro já matou três dos meus agentes que tinham feito o milagre de entrar lá. A pessoa colocada lá precisa ser normal, sem nenhum tipo de conexão e de forma simples de falar: um comum. 

 

Mas o maldito parasita explodiu a cabeça dos quatro comuns em que foi colocado até agora. 

 

Meu copo vazio clamava por minha atenção e meu fígado mandou um recado ao cérebro dizendo que aguentava mais alguns copos. Caminhei novamente até o armário de bebidas, desta vez olhando mais atentamente a grande coleção, garrafas que pareciam ter sido feitas por artistas de tão elegantes que eram, dava mais vontade de admirar a garrafa do que beber o que havia dentro delas. Meu olhos foram atraídos para a maior garrafa da coleção, seu vidro vermelho e formas esculpidas me cativaram para pegá-la. 

 

— Esta era a garrafa preferida de meu pai, tive o prazer de roubá-la junto a alguns outros artigos de sua estimada coleção antes de fugir de sua casa. — A voz de Penélope veio logo atrás de mim. 

 

Me virando, vi apenas sua subordinada com os olhos fantasmagóricos me encarando segurando um esfregão e um balde manchados com sangue. A boca da empregada se abriu apenas um pouco, ao invés de seus dentes ou língua, ou até mesmo sua voz, duas pequenas pinças saíram da frente de sua boca junto a duas antenas de um inseto, do canto de sua boca escorria uma linha de sangue que desceu para seu pescoço. Com um arrepio, me virei novamente para o armário de bebidas e mordi minha língua para ter certeza que era apenas uma língua.

 

— Conte mais sobre sua fuga — disse pegando a garrafa trabalhada para encher meu copo. 

 

Houve um completo silêncio antes de uma resposta. 

 

— Como qualquer fuga, planeja e aperfeiçoada antes de realmente efetuada… O velho Leproso estava muito ocupado agradando seu novo mestre para se preocupar com minha coleira, mas sei que não é isso que quer ouvir e te conhecendo um pouco, sei que deve ter pesquisado sobre os príncipes vermelhos que sumiram nesses anos.

 

— Bingo. — Degustei o cheiro da bebida antes de realmente bebe-la.

 

Os Príncipes Vermelhos são oriundos da França e Inglaterra, mas quando a caça aos vampiros se tornou popular até mesmo entre os comuns na idade média,  então tiveram que debandar. Os Estados Unidos, ou Novos Estados Unidos agora, tanto faz, eles são quem tem um grande problema com os vampiros e esses Príncipes são mais conhecidos por lá, mas houveram quatro bem conhecidos no Brasil… O único problema é que a data de quando eles foram caçados não bate nem um pouco com agora, o último foi morto por um Vampiro da estrela de sangue em 2321, e estamos em 2412. A conta nunca iria bater e ela sabia que eu descobriria. 

 

— Vamos supor que seu príncipe vermelho hipotético tenha sobrevivido por mais de meio século escondido, porque ele te transformaria? 

 

Me virei de costas para o armário para ver a assistente injetando algo na cobaia, uma curiosidade mórbida de saber como ela conseguia controlar um ser naturalmente forte como vampiros apenas com um inseto surgiu. Desde que a conheci ela era uma comum, isso só impede as pessoas de origens normais das grandes massas de aprender a usar as energias, mas uma pessoa comum com tanta afinidade é algo difícil de ver. A maldição vampírica tem muitas limitações e consequências, mas quando um comum é transformado ele deixa de ser tão limitado pela natureza humana. 

 

— Quem sabe? Talvez ele estivesse tentando se reerguer e viu uma bela mulher de uma família poderosa e pensou que poderia usá-la, ou talvez ele estivesse sendo mantido em um cativeiro… são tantas possibilidades, até chegou a me impressionar ver como o acaso é uma ferramenta poderosa. 

 

É como falar com uma parede. 

 

Observei mais atentamente o que a assistente estava fazendo, após injetar o conteúdo de uma seringa, ela pegou outra para fazer o mesmo. Contra meu maiores instintos de repúdio, prestei mais atenção na coisa que havia em sua boca, as pinças e antenas se moviam de um lado a outro por seus lábios, minha mente se encheu de visões agonizantes de uma criatura vivendo na boca dela e isso me fazia querer nunca abrir a boca perto dela. Enchi meu copo mais uma vez, já percebendo como o álcool estava subindo para meus pensamentos. 

 

Por que estão tão interessados na criança?

 

No dia em que Penélope foi a minha casa a quatro dias atrás, também recebi uma visita de um dos membros do círculo de confiança da entidade. A entidade Residente era como a maioria dos seres que cercam o Celeste, eu havia trabalhado com ele no passado na emboscada contra a Glória e a família dela, o plano na época foi planejado por mim e era perfeito. Glória ia ser capturada e seu parceiro e o aprendiz dele mortos, o Marido e filho também seriam capturados por esse Residente e colocaríamos Goro em uma coleira feita pela vida da filha, genro e neto. 

 

Mas os idiotas têm problemas para seguir planos.

 

A criatura ridícula matou o marido da Glória e colocou fogo na casa que se espalhou causando um grande incêndio na cidade, o retardado recrutado por Vanilo não levou Glória a serio e morreu mesmo tendo a vantagem. E no final a batata quente sobrou para mim, o Residente passou um tempo no outro lado antes de construir um novo corpo e pelo que ouvi o outro idiota recebeu uma segunda chance. Porra… se eu tivesse uma equipe melhor, tivesse recebido pessoas que me obedececem, tudo estaria perfeito. 

 

Estúpidos… todos eles.

 

Me prometeram que eu estaria a serviço de um deus com D maiúsculo, mas a entidade só favoreceu quem falhou em fazer o planejado. Aquela mulher e a família esquisita dela também tem culpa nisso, Vincent devia ser apenas a merda de um pai que deixou de ser um Arcanista, mas conseguiu prender o Residente dentro da própria casa impedido ela de sair, ao invés de pensar em como desfazer a barreira de modo discreto, ele QUEIMOU quatro quarteirões… idiota, idiota, idiota. Me vi dando risada e meu aperto sobre o copo em minha mão aumentava a cada memória.



E depois disso? Os mensageiros batem à minha porta com aquele desgraçado mentiroso do Leonardo gritando meu nome em frente a minha casa. A própria cúpula que comanda os mensageiros ordenou que a elite me caçasse e seus Sem Rostos representam uma ameaça a minha vida, não tão grande quanto essa entidade e no fim ainda são humanos e podem ser despistados…  o que passei a me tornar? De um Magistrado respeitado e temido a um rato que passa de um abrigo a outro, torcendo para que nunca me peguem.

 

Eu deveria ser um Anfitrião, me alimentando do obscuro e tendo meu nome temido e respeitado… mas isso me foi roubado por idiotas e… por minhas escolhas impulsivas.

 

Em meio a meus devaneios, nem mesmo percebi que o copo em minha mão estava em pedaços e seus cacos alojados em minha carne. Acho que já bebi o suficiente para continuar. Tirando os cacos maiores, removi minha gravata para tentar impedir o sangue que saía das feridas frescas, buscamos tanto uma fonte de poder para suprir nossas fraquezas, as disciplinas, os três elementos e os Éditos, mas nossos corpos continuam tão frágeis. Terminei o curativo improvisado com minha gravata.

 

Para ser o mais forte é necessário sacrificar o bom senso e a ética, para ser respeitado de verdade, é preciso ser temido. 

 

A porta de metal se abriu para revelar Penélope em um vestido negro menos pomposo do que ela usava ao ir a minha casa, em suas mãos um jarro com mais um parasita a ser testado. Seu cabelo cabelo loiro pálido e pele de cadáver pareciam absorver a luz de forma desesperada, seus olhos negros com um tom vermelho sangue passou por mim me dando arrepios, ela desceu os quatro degraus para ficar ao lado da cobaia. Ela olhou ao redor levianamente antes de abrir o jarro e pegar um dos parasitas enrolados em si próprio parecendo a concha de um caracol.

 

Treco nojento.

 

— Você sabia que apenas 5% do outro lado foi explorado pelos humanos em milênios? Acredita-se que algum dia essa porcentagem já foi maior, mas muito dos conhecimentos dos antigos foram perdidos para o tempo, roubados ou destruídos, e isso também foi feito pelos próprios humanos — ela disse ao nada com seus olhos no parasita. 

 

O larva do tamanho de um dedo começou a se remexer presa entre seus dedos.

 

— Nós causamos nossa própria ruína mais vezes do que a história pode mostrar, as pessoas se apegam aos seus deuses e ideais em busca de conforto, ao invés de aceitar a realidade — respondi. 

 

Ela abriu a boca do homem inconsciente e colocou a larva lá dentro antes de fechá-la manualmente, sua assistente tinha linha e uma agulha de costura nas mãos. A assistente tentou aproximar a mão para começar a costurar a boca do homem, mas Penélope segurou sua mão e ambas se encararam, eu quase podia ver uma tensão se formando entre o olhar de âmbar e Penélope parecia um predador analisando a presa. O lábio da assistente começou a tremer, eu consegui ouvir o som de algo se quebrando e onde a mão de Penélope apertava estava ficando roxo na pele morena. 

 

— Os humanos, vampiros, lobisomens, cruciros ou qualquer outro ser consciente no plano terreno sempre buscam algo no que acreditar, dedicar suas vidas, imortais ou não, longas ou curtas… a realidade é que estamos todos sozinhos e quem ou o que nos cerca nem sempre quer o nosso bem, certo, Olivia? — O olhar que Penélope deu à assistente fez meu estômago ficar gélido. 

 

Num piscar de olhos ouvi o som de algo se rasgando e o cheiro metálico de sangue inundou o meu nariz, o braço arrancado da assistente estava nas mãos de Penélope. A carne estava rasgada e com um grande fluxo de sangue caído no chão ou esguichando, a assistente se virou na direção em que eu estava, cambaleando desajeitadamente enquanto o que restou de seu braço sangrava livremente. Quando o apoio do altar lhe faltou, ela caiu no chão, tentando subir os degraus e rastejando com Penélope logo atrás dela.

 

Os cabelos pálidos de Penélope e seu rosto estavam manchados com sangue, ela pisou na perna da assistente fazendo o osso se fragmentar em uma ponta afiada e rasgar a carne para sair. Ela virou a assistente para encará-la, seus olhos sem amor ou pena, nem mesmo raiva ou qualquer sinal de incômodo, Penélope enfiou a mão na boca da assistente e puxou lentamente a criatura que estava lá. A pequena criatura em sua mão gritava guinchos finos como um rato, dezenas de tentáculos sacudindo de um lado para outro. 

 

Penélope levou a criatura até a cobaia e a colocou em sua boca, assisti às dezenas de tentáculos sacudindo para fora da boca do homem antes que a vampira fechasse ela e começasse a costura-la. Alguns tentáculos perfuravam as bochechas da cobaia ou começavam a sair pelo nariz e olhos, mas Penélope simplesmente os cortava com uma tesoura e voltava a costurar a boca do homem com uma feição tranquila. Meus olhos foram atraídos pelos gorgolejos da assistente a um metro ao meu lado, sua única mão restante tentando se virar para rastejar.

 

Ela tá viva?!

 

É um senso comum que os vampiros tem uma resistência louvável, mas o tanto de sangue que saiu dele poderia encher um balde. Penélope, após terminar de costurar a boca do homem e cortar os tentáculos que tentavam sair, ela começou a caminhar lentamente em direção a sua assistente ou empregada, sei lá, seu olhar ainda tranquilo dava mais medo do que se simplesmente ela fizesse uma careta. Pude ver as feridas que deixava a carne e ossos da assistente visíveis, lentamente, começando a se fechar, seus ossos crescendo e carne se reconectando.

 

— Eu sabia que um dia você conseguiria subjugar o parasita e o meu controle, mas ao menos eu pensei que você fingiria estar sob meu controle até achar o momento certo para escapar… estou decepcionada com você, Olivia, tentar costurar a boca da cobaia Cinco sem que eu tenha mandado? Você devia estar tão confiante que acabou esquecendo os detalhes. 

 

Penélope estava seguindo o rastro do sangue de Olivia até estar sobre ela a centímetros da porta, eu queria mover meus olhos para outro lugar, mas simplesmente meu desejo de ver o final disso era maior. Penélope virou Olivia para encará-la e colocou suas mãos ao redor de sua cabeça e começou a apertar, o som de seu crânio começando a rachar e a carne sendo esmagada penetrou em meu ouvido junto a um grito bestial de desespero. O grito chegou ao fim quando um som molhado de seu crânio se quebrando por inteiro adentrou meu ouvido e ecoou pela minha cabeça e pela sala. 

 

É de… perder… porra.

 

O gosto do álcool subiu novamente pela minha garganta até sair na forma de uma bile amarela, me apoiando em uma das quatro pilastras do centro da sala vomitei tudo que havia bebido. A imagem e som da carne parecendo um mingau vermelho começou a me assombrar, junto ao grito que estava registrado em minha mente e me arrepiou até o último pelo em meu corpo… isso é brutal, havia me esquecido dessa parte das negociações nesses últimos anos. Limpei a boca e cuspi a saliva com gosto amargo represado na boca, erguendo minha cabeça para ver o resto da desgraça.

 

Penélope começou a mexer a carne e ossos esmagados pelo seu aperto que restou em sua mão, ela se levantou e jogou esses vestígios no chão ao lado. Observei o desastre vermelho que se tornou a cabeça da outra mulher… vampira, sua carne se tornou mingau, seus ossos se tornaram pequenos fragmentos brancos misturado ao sangue, o corpo da vampira começou a liberar pequenas cinzas e a se desfazer lentamente como sempre acontece quando um vampiro morre. Ela conseguiu se livrar do controle dela… e por isso, né? Eu estou seguro… né? 

 

Se prender com uma vampira em uma sala com apenas uma saída e entrada… um novo arrependimento. 

 

— Que isso fique registrado para você, vampiros tem uma regeneração ótima, mas sem a cabeça ou coração morremos como a maioria das demais criaturas vivas, ou meio vivas para alguns vampiros… muito das superstições também são apenas superstições, como os crucifixo ou a permissão para entrar em casas, está anotando isso? — Penélope perguntou com uma feição tranquila estando mais próxima a mim.

 

— Por que eu deveria? O plano tem tudo para dar certo.

 

Seu rosto estando coberto por sangue e pedaços de carne se distorceu em um sorriso, um sorriso de diversão sincera enquanto me encarava. 

 

— Você acha mesmo que pode entrar na terra protegida por uma entidade sem outra entidade? Acha mesmo que vai conseguir sentir ao menos o cheiro do garoto? É melhor que você esteja pronto, Tolinho, porque você se tornará um vampiro no final disso. Seus planos mirabolantes são um nada, assim como você e mesmo quando se tornar um vampiro você ainda será um nada existencial sem importância ou relevância já que a única coisa que você tinha de importante está comigo agora… você não é nada, Eithor, apenas um homem fraco que será esquecido. 

 

Seu sorriso se tornou uma gargalhada satisfeita que ficava mais alta a cada segundo, lágrimas deixaram seus olhos e se misturaram ao sangue em meio a sua loucura. Meu coração começou a bater mais rápido à medida que a raiva represada começava a borbulhar em meu meu peito e a se espalhar por meu corpo, minhas unhas começaram a entrar em minha carne e meu desejo de apenas silencia-la tomou forma como um soco em seu rosto. Ao realizar o golpe a raiva se dissipou quase instantâneamente e foi substituída por um frio paralisante em minha barriga.

 

Essa… nãugh!

 

Sua mão agarrou o meu pescoço com uma força de arrancar o fôlego, as suas unhas pareciam estar crescendo para dentro da minha pele à medida que a força de seu aperto aumentava. Em seu rosto, tudo que meu soco havia feito foi borrar o sangue de suas bochechas e nem mesmo uma marca havia deixado, em uma momento meus pés perderam o contato com o chão enquanto eu tentava me livrar do aperto de sua mão. Encarei seu rosto, a diversão havia deixado seus olhos e agora tudo que restava era uma frieza palpável.

 

Eu vou morrer… pensa! PENSA EITHOR!

 

— Eu… sei… o seu… segredo… — usei minhas últimas reservas de ar para formar as palavras.

 

A frieza de seus olhos se afiou mais e se misturou com uma desconfiança, minha visão estava ficando embaçada e meus sentidos estavam me deixando quando ela me liberou de seu aperto e cai de costas no chão. Como um bebê se agarra ao seis de sua mãe, puxei oxigênio como se eu fosse uma criança tomando leite materno, os meus sentidos aos poucos retornando para mim junto a uma dor lacerante em meu pescoço. Penélope estava me encarando com um olhar afiado, pensei em cada palavra com cuidado antes de realmente falar. 

 

— Havia um… espião… da Cúpula que relatava tudo que seu pai fazia, o espião sumiu cinco meses depois que você foi dada como desaparecida a seis anos… esperto, isso deixaria uma imagem de que o espião ainda estava lá mesmo depois que você sumiu e tiraria a suspeita de que poderia ser você… mas eu te conheço, Penélope.

 

Me levantei com cuidado e seu olhar começou a ficar mais afiado, mantive minhas mãos para baixo e sempre na linha de visão dela. 

 

— E nesses seis anos que você sumiu, muitas das seitas ligada ao culto ou aos anfitriões também começaram a cair por causa da união da estrela de sangue e os mensageiros, mas havia alguém que se destacava e conseguia destruir muito dessas seitas por dentro… Morgana, a nova observadora da Cúpula e…

 

Sua mão agarrou meu pescoço novamente, mas dessa vez ela me colocou contra uma das pilastras e observei o sangue que estava em seu rosto começar a se mover anormalmente. O sangue da outra vampira que estava em seu rosto começou a levitar e acumular, se moldado em uma forma afiada que parecia uma agulha vermelha oscilante, em minha mente uma coisa ficou muito clara: uma palavra errada e ela seria minha última. De frente para um predador, você deve mostrar que não está querendo incomodar e nem prejudicar ele. 

 

— O que você quer, Tolinho? — Suas palavras eram quase tão afiadas quanto os seus caninos.

 

— O acordo permanece… você faz essa criatura artificial e manda pra dentro da barreira, eu sei que dará errado mesmo se você realmente tentasse fazer dar certo, mas eu só quero que você faça uma parte do combinado até o final, entrega minha filha pra Glória… por favor. 

 

A agulha de sangue oscilante era menos afiada que o olhar que ela estava me dando. 

 

— Por que essa obsessão em deixar sua filha com a Glória? O que você quer com ela? — Seu tom era frio, mas vi a emoção em seus olhos.

 

— Você mesma disse, o que pode enfrentar uma entidade senão outra entidade? Que lugar mais seguro do que na guarda de outra entidade? E sendo franco, essas entidades que ela está próxima são umas das poucas que eu conheço que não transformam seus seguidores em cultistas retardados ou religiosos esquisitos…

 

Seu aperto ficou mais forte um pouco quando tentei rir da minha própria piada.

 

— E quanto ao outro? Conheço bem o favoritismo de um pai, mas gosto de ouvir as explicações que eles dão para tentar justificar isso. 

 

Pensando dessa forma, Alefe e Thereza são os dois lados de uma moeda, completamente diferentes um do outro que até duvido que tenham saído da mesma mulher e homem. Quando penso em Alefe, tudo que vejo é um garoto sem vontade e que segue aquele que está no topo sem fazer perguntas, é só uma questão de tempo até ele decidir que eu sou menos qualificado para ele seguir do que os demais cultistas. Thereza, ela é como a mãe, isso com certeza a faz melhor, mais esperta, temperamentos difícil e sempre rosnam pra qualquer um que tentar mandar nelas… minha Leoazinha. 

 

— Alefe se parece demais comigo… acho que isso responde bem a sua pergunta. 

 

Ela me liberou de seu aperto após mais alguns minutos me encarando, me deixando escorregar até cair de bunda no chão ainda com minhas costas na pilastra. Acariciei meu pescoço, um peso saindo do meu peito ao perceber que ainda estava vivo e com todas as partes do corpo, isso é uma vitória de certa forma, me permiti sentir orgulho de minhas investigações, mas de certa forma um sentimento de impotência também me rodeava. Desde o começo tudo daria errado, o que fiz foi garantir uma pequena grande vitória nos detalhes desse acordo. 

 

Penélope deixou o sangue na forma de uma agulha cair no chão antes dela começar a caminhar em direção a cobaia e me deixar para trás. Me levantei do chão e caminhei devagar para observar Penélope, ela estava retirando os pontos de costura da boca do recém falecido cobaia Cinco e começou a entoar um cântico, as feridas sangrentas nas bochechas com dezenas de furos começou a se fechar e desaparecer de sua pele, restando apenas pequenas marcas como cicatrizes no cadáver. Algo estava se mexendo na barriga do cadáver, mas quando a mão de Penélope se colocou acima o que se mexia lá dentro parou. 

 

— Você tem sorte que a uma vida a ser preservada, que tolice a sua esquecer de incluir a parte de que não posso te matar quando você me irritar… mas recomendo que evite abusar da sorte, Eithor. — Suas palavras eram tão claras em sentido quanto possível. — Em uma ou duas semanas o parasita atingirá a fusão, nossos objetivos irão se alinham quanto a uma distração, mas a algo que você deixou passar…

 

— O que? — Engoli em seco.

 

Ela se virou para mim, fixando seus olhos nos meus, mesmo que ela estivesse na parte baixa da sala, seu semblante de superioridade era indiscutível.

 

— Como já deve saber eu tenho olhos e ouvidos em muitos lugares e você será descartado em breve, e como também já deve saber; alguém de dentro da sua casa irá assumir seu lugar…  mas você já sabe quem? 

 

Alefe…

 

Um riso me escapou, era lindo ver uma lagarta asquerosa se transformando em uma traça maldita. Ela é mais parecido comigo do que pensei, eu sabia que a minha relação com o culto estava piorando a cada mês, mas realmente tinha minhas dúvidas se Alefe pularia do barco ou tentaria tirar vantagem da situação… ele encontrou um novo alguém para lamber as botas. Ajeitei minhas postura e pensamentos, deixando a autopiedade e arrependimento sumirem para que minhas ideias fluíssem.

 

— Quanto tempo eu tenho antes do golpe final? 

 

Seu olhar ficou curioso, eu arriscaria dizer que ela estava se divertindo.

 

— Menos de uma semana talvez, o Residente que foi te visitar é quem será seu carrasco, mas pense comigo… ele está em uma missão e possivelmente só vai se livrar de você quando sua missão terminar, e se houvesse um jeito de atrasá-lo? Talvez fazer com que o caminho de um certo alguém e ele se cruzem. 

 

Ciro está aqui em Cairiti, fazendo uma tarefa de importância alta para o culto e essa mesma cidade está a menos de cem quilômetros da pequena cidade onde está o garoto. Essa entidade é uma alma humano de um tempo passado que se fortaleceu no outro lado até se tornar o que é hoje, eu nem mesmo precisei perguntar sobre ele para descobrir quem ou que ele fazia antes, mas ele ficou diferente após ter sido banido para o outro lado pelo irmão mais velho de Vincent. Sempre que seu banimento é mencionado ele fica silencioso e com uma feição azeda… hm. 

 

Antes mesmo que eu pudesse abrir a boca, Penélope falou:

 

— Eu já estou alguns passos à frente de você, usei meu contatos para atrair Marcelo até a cidade, mas o resto eu deixo para você, é a sua vida que está em uma corda bamba e não a minha… recomendo que você consiga fazer esses dois se encontrarem, um busca vingança e outro você já deve saber. Se você tiver sorte, Marcelo irá entreter o Residente por tempo o suficiente para a fusão ocorrer e eu te transformar… Boa sorte, Tolinho. 

 

O que deveria ser meu orgulho ofendido pelo modo que ela me chamou, na verdade atiçou minha curiosidade. Ela nem mesmo tem fé que a criatura que está criando seja uma ameaça para o garoto, mas isso é mais do que reconhecer que ele está bem protegido… ela mencionou uma distração, mas para que? As engrenagens em minha cabeça começaram a girar, as peças de uma quebra cabeça se encaixando para formar a imagem que se esconde em cada peça. 

 

Ela é uma vampira, a cúpula que comanda os mensageiros sempre foram um mistério, mas sempre agem pelo bem do continente a qualquer custo. Antes uma espiã, a cúpula nunca recusaria uma espiã para um alvo como os Marvolos e o próprio Vanilo em pessoa, mas agora é uma vampira e com isso a possibilidade mais provável é que algum vampiro da estrela de sangue a transformou, ninguém trocaria o apoio e segurança da Cúpula e a estrela de sangue serve a Cúpula. Os mensageiros recrutam de forma única, mas o principal fator é a vontade de ajudar, afinal poucos vão se expor a demônios e espíritos apenas por um bom salário.  

 

Puta merda…

 

— Você… você é… — As palavras se prendiam a minha garganta a cada passo para trás que eu dava.

 

Penélope voltou sua atenção de volta para mim, se divertindo claramente.

 

— A Cúpula cedo ou tarde sempre descobre, com isso dito, acho que já está na hora de você ir… agora. Boa sorte de novo, Homenzinho Tolo. 

 

Me virei para a porta e ignorei o cadáver se desfazendo em cinzas lentamente, a abrindo subi a escada cercada por duas paredes que levava a porta de um alçapão. Saindo do subterrâneo a primeira coisa que vi foi um laboratório organizado, dava pra ver das janelas que a tarde estava cinzenta como era normal e nenhuma alma viva estava presente, fiz meu caminho pela sala até o corredor que levava a saída no pátio. Os demais prédios e casas ao redor eram visíveis do muro e portão de grades, uma parte menos movimentada da cidade.

 

Que merda, merda, merda, merda!

 

Caminhei até meu carro que estava virado em direção a saída, os fatos me atingiram mesmo enquanto entrava para sentar no banco de trás do carro. O motorista saiu ao meu sinal e tentei me acalmar, diminuir o nível acelerado dos meus batimentos e tranquilizar minhas emoções… eu fui descuidado, deveria ter juntado todas as informações antes de contatar ela apenas com metade de um todo. Mesmo me esforçando, minha cabeça estava muito agitada para focar nos erros. 

 

Se ainda estou vivo significa que a algo mais acontecendo. 

 

Se eu quiser continuar com vida vou precisar de mais do que apenas fugir, Penélope demonstrou interesse na distração que a criatura criaria, ela tem seu próprio motivo e isso me dá uma certa segurança. O carro se movimentando abria a porta para que minhas ideias começassem a se movimentar também, farei o que me foi dito, preciso de tempo e prefiro apostar nas palavras dela do que possivelmente adiantar a descida da lâmina que está acima do meu pescoço. Marcelo, preciso investigar mais sobre ele e descobrir onde ele está dentro dessa cidade. 

 

Suspirei observando minha mão tremer, a gravata que me servia como um curativo estava banhada em sangue e tinha certeza que havia outro misturado. No final, a transformação vai ocorrer, o acordo obriga Penélope a fazer isso, mas quanto tempo eu vou ter? Assim que a transformação for finalizada, tenho certeza que ela tentará minha morte e se isso acontecer… eu tenho apenas chances de fugir. Eu preciso planejar, estudar mais pra quando a hora chegar, estar ao menos pronto pra morrer de forma digna. 

 

Maldito inferno que eu criei… desgraça. 

 



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