Bom Demônio Brasileira

Autor(a): Trajano


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 30: Capoeira.

Após terminar de treinar seu corpo, Sea vestiu seu casaco, que estava guardado para não machucar, e junto de seu mestre, foi até a próxima sala.

De acordo com o que foi dito, agora iria treinar um pouco de arte marcial.

Após sair do aquário, Ase levou seu pupilo para uma sala mais apropriada para se movimentar. Encontravam-se pelos corredores ditos como infinitos.

Na verdade, eles andavam já há bons minutos pela penumbra, passando por diversas portas, calados. Normalmente estaria mais movimentado, porém, Bianca havia se retirado para a floresta, saiu com um “tédio.”, por isso estavam apenas os homens.

Cada porta por onde passavam possuía caracteres diferentes, que se recombinavam entre si. Uma linguagem ainda não conhecida por Sea, contudo, ele faria seu melhor para aprendê-la ao fim de tudo isso.

—Certo, é aqui—Disse o Vassalo apontando pra uma porta aleatória.

—Ah... o local de treino?

—Não, arsenal.

Como de costume, bastou o girar da maçaneta para a abertura da entrada. Essa sala era consideravelmente diferentes das anteriores. Era um pouco menor, compacta, na verdade. As paredes estavam repletas por prateleiras de metal, cada uma comportando algumas dezenas de caixas de madeira.

A aparência do quarto parecia bastante antiga, ao ponto de ser iluminada por algumas tochas no teto. Era complicado se adaptar a isso, afinal, todas os cômodos pareciam completamente diferentes.

O encasacado foi até uma das divisões da segunda coluna. A todo momento olhava para um pequeno papel em sua mão e para uma prancheta na outra.

—Aqui.

Ele parou e pegou uma das caixas, em seguida, pôs no chão e a abriu por cima. Tirou alguns objetos postos para proteger o produto e, por fim, tirou uma caixa de calçados.

—...—Ase encarou Sea, deixando claro que era para pegar.

—Um... par de sapatos?

—Bem arejado, macio para pisar, adapta-se bem a vários solos, com a parte do calcanhar e bico duras, o melhor que tenho para capoeira.

Meio desentendido, o invocado pegou a caixa e deu uma chacoalhada. Depois abriu, para então encontrar um par de sapatos verde-escuros, e uma base de cor marrom. Não tinha cadarços, e cumpria tudo dito pelo Vassalo.

Mas esse não era o problema.

—Quando eu...

—Tava na ficha que me mandaram.

Parando para pensar, Sea tinha feito uma apresentação anteriormente, no castelo... “Deve ser isso...” ele poderia perguntar para ter certeza, mas como fora decidido, não ia perguntar nada que não fosse relacionado ao treino.

—Bem, obrigado...—Sem pestanejar, ele calçou os sapatos. Não pôde deixar de pensar que era um design maneiro.

Virou a cabeça, analisando os arredores.

Talvez alguns estranhassem o local se chamar “arsenal”, mas ter dentro um par de calçados. Mas, Sea entendia bem isso. Afinal, capoeira era, antes de tudo, uma arte marcial escondida por dança.

Tudo depende do ponto de vista. Um sapato pode tanto ter o uso para simplesmente vestir, quanto para proteção.

Por óbvio, todas as caixas possuíam um tipo de arma diferente. De acordo com o que foi dito anteriormente, os Vassalos não podem ajudar ao extremo um invocado, ou seja, informações confidenciais estavam fora dos limites.

Seguindo a lógica, entregar-lhes armas incrivelmente poderosas também estava fora de questão. Então, por essa linha de raciocínio, as outras caixas continham itens básicos para cada forma de arte marcial ou equipamento, mas apenas o básico.

Foi a essa conclusão que Sea chegou.

Sea quase perguntou o porque de não lhe ser entregue uma arma, mas quando percebeu que não sabia manejar nenhuma... compreendeu. Era melhor aprimorar algo que já sabia a se arriscar em algo completamente novo.

Com a preparação finalizada, Ase guardou a caixa, levantou-se e saiu, sendo seguido por Sea.

Enquanto se direcionavam para a sala para aperfeiçoar a capoeira, Sea recordou de como começou a praticar...

...

—Arte marcial?

—...

Sea Scalding, 11, Morada das Moscas.

Pouco depois de sua alucinação.

—Sempre achei que fosse do tipo que deixava de lado. Afinal, você nem se machuca. Permanentemente.

—...

Na sua frente, ninguém mais ninguém menos senão seu avô. Claro, praticamente o único que se arriscaria a falar com ele dessa forma, descompromissado.

—Finalmente vai dar o troco neles!?

—...—O jovem negou com a cabeça.

—Então... para quê quer isso?

Ele não iria revidar. Não iria bater em ninguém, recusava-se a retrucar um único golpe. Na verdade, o sentimento de revidar era inexistente.

—...Proteção?—Isso veio dos lábios do velho.

A única lógica era auto defesa. Contudo, isso não passava por seus olhos, ou mente. Sea Scalding, a pessoa Sea Scalding, não tinha tal desejo. Na verdade, se tivesse de escolher entre um ou outro, diria que prefere apanhar...

Em suma, era como se não fosse um impulso próprio, algo vindo de dentro si próprio. De fora? Não, ninguém nunca lhe havia dito algo sobre treinar artes marciais para se defender.

Ele não sabia o que fazia, nem o porque fazia, ou se ele mesmo escolhia o que fazia.

Ele só... fez.

...

No fim, ele tinha uma grande variedade de artes marciais para escolher, mas seu avô sempre dizia “tem de respeitar sua pátria!”, e o obrigou a escolher capoeira.

Ao recordar-se desse momento em específico, uma alegria mínima percorreu o corpo de Sea, como se a de uma meta alcançada.

Por fim, chegaram na próxima sala.

Era uuma sala vasta e de terreno irregular. As paredes ficavam a uma distância bastante considerável uma da outra, e do teto escorria algo parecido com água, pingando de pouco em pouco.

Devido a umidade e ambiente fechado, parecia crescer musgos pelo chão e extremidades da sala, dando um tom de “masmorra.”

O maior diferencial, de qualquer forma, era o solo. Parecia ser separado em vários ambientes; desde o deserto árido, cheio de areia; grama fofa e macia, como de um campo; um terreno irregular de lama, como um pantanal. E por aí variava.

No entanto, bem perto da porta era uma região comum, como se fosse o corredor. Ao lado tinha um saco de bater, e agora que Sea foi notar que em cada região havia um parecido.

—... Enfim.

Ase falou brevemente para voltar a atenção.  Deu algumas tossidas, também, e se aproximou do saco. Do bolso tirou uma folha, com a imagem de uma pessoa de cabelos e olhos brancos. Obviamente, colou contra o alvo.

Sea não se lembrava de tê-lo visto, e nem se propôs a perguntar quem era. Na verdade, tinha quase certeza de que seria uma foto dele. Felizmente, para ele, a relação entre os dois não parecia ter chegado a esse ponto...

Normalmente, era um ato contra a pessoa que mais odiava... Sea não queria ser o cara da foto.

Após deixar tudo preparado, o Vassalo levou as mãos ao bolso, e só com as pernas, começou a se movimentar contra o saco de pancada, fazendo o normal.

Após alguns minutos, ele simplesmente parou. Como se o saco não existisse, distanciou-se um pouco e chamou seu pupilo para mais perto.

—Certo, agora vou te ensinar como melhorar seus movimentos.

—E qual a relação com o saco de pancada?

Ase olhou por alguns instantes para o saco, e sem se importar, respondeu:

—Nada. Eu só quis bater nele.

—A-ah...

Sea realmente não queria ser o cara da foto.

—Enfim...—Então, ele começou, ilustrando tudo que falava por meio de seus próprios movimentos.— Não há muito a se dizer além de um pouco de orientação e muita prática. Primeiramente, você fez bastante treino físico, mas capoeira vai bem além. Flexibilidade e alcance são um dos pontos mais importantes. Trate de saber bem seu alcance máximo ao fim de tudo, certo? Também, aperfeiçoe o máximo possível sua flexibilidade dinâmica, o tempo do seu membro flexionar e retrair. Você deve saber como fazer o primeiro, afinal, querendo ou não, já praticou. Quanto ao segundo é treino intenso contra um objeto.

Ainda não havia acabado, mas ele quis melhorar a explicação, então mostrou algumas técnicas para Sea, focando principalmente na coluna e pernas. Posteriormente, ele foi até um dos terrenos diferentes,  um lamacento, e confirmou os movimentos que Sea sabia fazer. Mesmo que ele não fosse um bom praticante, havia decorado todos os movimentos, apenas não sabia reproduzí-los.

—Os movimentos têm de ser fluídos.—Ase lançou um golpe contra o saco.—Pense sempre no seu objetivo, não no movimento. Assim que sua carne decorá-lo, isso não será mais necessário. Tente deixá-los leves, isso se dá pela prática, você sequer vai sentir quando estiver acostumado.—Ele parou de golpear e segurou o topo do saco.—Bem, parece simples, mas não é exatamente algo complicado. Tenha um objetivo em mente. A mente influencia o corpo mais do que parece. Por fim, é bom focar em suas pernas, já que é o que mais se utiliza nesse estilo de luta. Deixe os braços e mãos como acessório, mobilidade, por assim dizer. Um suporte.

Completando o bruto de sua explicação, ele deu a volta e passou por Sea, soltando um suspiro longo no processo. Dando um “Ah.”, ele voltou e pôs uma imagem de Sea no saco.

—A-ah... Não é melhor de alguém mais como... meu oponente?

—Você está lutando contra si mesmo para ficar mais forte, não contra Elias. Supere-se antes de superar outra pessoa.

Isso parecia ter um tom filosófico, mas Sea apenas sentia que Ase queria vê-lo batendo em um falso si mesmo.

Com um “eu vou voltar.”, Ase saiu pela porta. O último aviso que ele deu era para treinar no terreno onde estavam, pois como a luta seria na vila, um terreno irregular e lamacento seria o melhor.

Ficando sozinho, Sea olhou para o saco.

Sua imagem.

“Lutando contra si...”

Ele não podia deixar de pensar que era uma baboseira.

Ele lançou um chute com seu máximo de poder contra o saco. Sua perna de suporte tremulou, assim como a atacante, levando-o a um movimento nem perto de bom.

Sua imagem sorridente continuava.

Lançou um outro golpe, mas trocando as pernas. O movimento dos braços não estavam conectando ao resto do corpo, levando a um ataque mais fraco do que poderia ser.

Sua imagem sorridente continuava.

Afastou-se um pouco, e, rapidamente, voltou com algumas cambalhotas. Usando o braço para ficar equilibrado, tirou os dois pés do chão e lançou toda sua força contra o saco. Infelizmente, o terreno lamacento o fez escorregar, então, ele sequer chegou a concluir o movimento.

Sua imagem sorridente continuava.

Ele não parou, estranhamente, haviam outros motivos para ele querer continuar. Algo tão impregnado em si quanto seu DNA.

Esse “algo” só seria descoberto por si, além de trazê-lo diversos problemas mais à frente...

...

Ele continuou até o fim do dia. Só foi perceber ao estar cansado, mas podia beber a água do teto para recuperar o fôlego. Gotas não eram o suficiente, mas em alguns pontos havia algo mais concentrado, então dava para recuperar as forças enquanto fazia uma pausa extremamente breve.

—Voltei.

—Hã?

Chegando pela porta estava Ase com uma cadeira, a qual foi posicionada a alguns metros de Sea.

—Seu movimento está errado.—Puxou a perna de Sea.—Está muito rígido. Você não golpeia na trajetória, apenas no fim. Durante o movimento deixe leve para ganhar velocidade, não contraia tanto, e quando estiver mais perto do alvo, dê o seu máximo.

—A-ah...?

—Não entendeu algo?

—Não é isso, é que...

Não era muito comum. Claro, era aquele que deveria lhe instruir, mas quem mais aparecia para o auxiliar era Bianca, que vez ou outra ia vê-lo. Também, tinha a questão de não serem chegados...

—Você é o ser que mais repugno. A concentração perfeita de tudo aquilo que odeio em uma pessoa.—Só de ver como ele reagir, dava para responder a pergunta.

—A-ah...—De certa forma, ele esperava isso.

—No entanto, sua existência não se tornou negativa.

Claro, fazer as pazes com Ase, isso quase lhe havia escapado pela mente. Ainda não tinha certeza sobre todas as circunstâncias para a forma dele agir dessa forma, mas, com certeza, ele estava lhe ajudando por enquanto.

—Você vai lutar contra um saco de areia ou um ser humano consciente? Óbvio que vou ajudar a treinar.

—Então você... Aah!

Ase disparou um golpe sem aviso.

“por isso...?”

Um pensamento passou pela mente de Sea. E se sua foto não houvesse sido colocada anteriormente no saco de Ase não por não odiá-lo a tal ponto, mas porquê depois teria algo melhor, com a coisa real...?

Antes que pudesse pensar melhor, recebeu uma direta no estômago, sendo jogado contra o saco de pancadas.

Na verdade... De agora em diante, saco de pancada seria sinônimo de Sea Scalding.

—C-calma! A senhorita Bianca! Onde ela tá?

—Ainda brincando.

—Chama ela aqui!

—Pra quê? Plateia te diverte?

—N-na verdade...

Sea se segurou no saco, estava relutante contra dizer, mas acabou por falar:

—Se for para ser chutado, que seja por uma moça bonita!

—...

O rosto de Ase não se moveu. Mesmo inexpressivo, sua expressão deixava bem claro “Agora não preciso ter pena.”

Sea sentiu um dano de dentro de si, também.

E assim se passaram as semanas.

...

—Arf... Arf... Arf... Arf...

O fim do treinamento.

Mesmo que pudesse recuperar o fôlego a todo momento, ainda era bom forçar o corpo de vez em quando, e era assim que Sea estava.

Para tal, estava deitado contra o chão, de olhos fechados. As gotas de suor escorriam pelo seu corpo. Ele sequer sabia quantas vezes havia passado por essa sensação durante os últimos dias...

—Ei, levanta.—As palavras foram soltas junto de um copo sendo deixado ao lado da cabeça de Sea.

Ele virou seu corpo, ficando de barriga para baixo. Sem mover a cabeça, subiu os olhos para se encontrar com a garota loira de olhos azuis, trajando o seu vestuário normal, mas com um café na mão.

Ela tomou um gole.

—Olá.

“Não venha como se fosse tão inocente assim!”

Durante os dias treinando com Ase, Bianca não havia aparecido uma vez sequer. Era de certa forma incomum, já que ela era quem mais vinha cuidar e encorajar Sea. Também quem mediava a forma que o Vassalo o tratava.

Por isso, ele ficou bastante tempo sob as mãos de Ase... indefeso...

Como se não estivesse preocupada com isso, sequer ciente, assoprou algumas vezes a fumaça que saía do copo e tomou outro gole.

Com os pés ela empurrou um pouco mais o copo que deixara no chão para Sea. Ele, em contrapartida, apenas conseguia pensar em onde ela tinha se metido esse tempo todo!

—Hey!

—!

Um golpe inesperado.

Impaciente, ela soltou um gritinho enquanto forçava os dedos do pé contra a cabeça de Sea, dizendo coisas como “vai logo...”, parecendo uma criança impaciente.

Sea estava paralisado com isso.

Como ele não se movia, ela começou a dar-lhe alguns chutes com o calcanhar, claro, não colocando muita força.

O garoto estava.... conflitante sobre isso. Ao mesmo tempo que estava sentindo fortes dores vindo de dentro de si, um prazer inexplicável vinha, também.

*Crec*

A porta estava se abrindo.

Tanto a dor quanto o prazer, nada se comparava ao medo que seu corpo adquiriu de Ase. Instintivamente, ele pulou do chão, distanciando-se vários metros.

Ase havia chego. “Ufa....”, Sea pensou. Ele não deve ter visto. Como pensado, as coisas correram bem. Ele foi para perto de Bianca, querendo saber o porque da demora, mas...

—Ase...—Os olhos da garota se encontravam cheios de lágrimas.—O-onde eu errei?

Ao chão estava o copo de café derramado, devido a movimentação súbita de Sea.

Por mais que não tenha sido o que aconteceu, Ase ligou os pontos.

—Eu... só tava fazendo o que você gostava... você não tava mentindo, né?—Ela estava se referindo a outra coisa, mas Ase só relacionava ao café.

—Parabéns, garoto, você conseguiu ter uma existência abaixo de negativa.

Enquanto Bianca chorava de joelhos, Sea foi jogado aos lobos.

...

—V-verdade...?

Antes que Sea morresse, Bianca parou o choro e conseguiu parar Ase. Ele não estava brincando quando disse que o invocado morreria.

Com isso, Sea explicou o acontecido, fazendo seu melhor para não dar outra justificativa para ser morto.

—Sim, ele não tem problema algum com você, certo?

—Hm...

Como um animalzinho, Bianca se encolhia atrás de Ase. “Cara...”, a capacidade de mudar as emoções tão rápido assustava Sea... chegava ao ponto de ser inacreditável.

A Vassala só queria chamá-lo para o próximo e último passo do treinamento, a magia de reforço. Ela disse que Ase era melhor em capoeira, então deixou para ele, não queria atrapalhar. O coração de Sea não podia estar mais quebrado ouvindo isso.

Era um tormento tê-la ouvido se desculpar depois.... Sea sentiu raiva de si mesmo. Não faria esse erro de novo.

Nesse momento, um raio passou pelo seu cérebro.

“...?”

Ele sentiu que algo importante havia passado por sua cabeça, mas assim como foi, se fora.

Era uma sensação péssima.

—Ei, vamos, agora é hora de aprender reforço.

Não queria fazer mais burradas com a garota, então aceitou ir à outra sala, mas com a estranha sensação em si....



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