Bom Demônio Brasileira

Autor(a): Trajano


Volume 1 – Arco 2

Epílogo

Minha existência era suave como o vento da noite serena. Murmurando sentimentos unilaterais que mais pareciam poemas. Escritos nos poucos pedaços que sobravam de mim.

Algo que sempre permeou minha estadia nesse plano... realmente existo? Como o dilema de uma árvore tombada no meio de uma floresta sem ninguém a escutar. Alguém podia confirmar minha presença fora eu mesma?

Eu sentia que... estava incompleta, insatisfeita com o mundo atual.

Claro, isso foi o início.

Estava envolta de toda aquela realidade no meu entorno. Mesmo não possuindo memórias, entendia que não era normal. Que não devia estar ali.

... O que confirmava que eu fosse continuar ali para sempre? Nada. No mundo material você tem experiência com o mundo. Sente dor, é machucado, ajudado.... mas e aqui, nesse universo repleto de escuridão? Por que não pensar que a qualquer momento minha consciência poderia se desfazer completamente? E então, cheguei a uma resposta... o que já está vazio não se desfaz.

Se ninguém pode me tocar, me entender, falar comigo... me confirmar, o que me separa de um nada? Sabe o sentimento de viver sua vida podendo simplesmente sumir a qualquer segundo...?

Meus passos... me levaram a um destino que eu sequer sabia. E quanto mais eu caminhava... mais eu confirmava...

Estava só.

Só comigo mesma.

Tentava me encontrar, ao menos era o que sobrara.

Mesmo nesse pequeno lugar escasso.

Com o tempo, numa forma de mentir para mim mesma, comecei a pensar que essa solidão... solitude era algo bom. Por que ser igual a todos os outros?

Foi então que...

Eu vi.

Lá fora, um belo dia.

Pássaros cantavam e flores desabrochavam em perfeita harmonia.

Parecia uma região de florestas... árvores se alongando ao céu, arbustos e pequenas vegetações se estendendo pelo solo... mas não importava. Ao menos era algo diferente dessa monotonia de universo.  

Uma visão não minha, mas podia ver.

Minha outrora vida sem sentido pareceu ter ganho um significado.

Não existia mais o eu sem respostas andando em círculos, chegando a lugar nenhum.

Bem, olhando de uma perspectiva do presente... talvez após nossa separação eu tenha ficado confusa. Aquele tempo unidos perdido voltou em migalhas.

Continuando.

 

Porém, tudo mudou com o tempo.

Com o tempo fui descobrindo mais sobre mim, minhas capacidades... e sobre a pessoa em quem estava.

Seu dia-a-dia, emoções, pensamentos, reações... basicamente vivia a mesma vida que ele, só que com um olhar diferente.

Então, comecei a perceber que... a tristeza da pessoa acompanhava a minha. Pouco a pouco eu conseguia influencia-lo, por mais que numa escala mínima...

Não havia mais volta.

Foi quando percebi.

O meu vazio estava preenchido dele.

Era a única forma de me reafirmar, provar que existo, que sou um ser pensante.

Eu podia mudar sua existência, assim como ele interferia na minha.

Não podia falar.

Tudo que fazia era observar seu olhar... o mundo refletido em seus olhos.

Não sabia o porque, mas me sentia dessa forma... Ele havia me salvado.

Meus braços não o alcançavam, não podia lhe dar um abraço, agradecer por fazer parte da minha vida... só meu olhar chegava.

E foi aí que percebi.

Não estava pronta para lhe ver partir.

Hora ou outra, tudo tem um fim.

Mas não estava pronta para isso, não agora.

Aquele sentimento quente crescendo no peito... algo corrosível, inimaginável, repleto de trevas e maus sentimentos. Essa... “coisa” que não deveria ser permitida no mundo. Uma afronta à realidade, transcendendo todo e qualquer limite...

Talvez tenha sido um pensamento egoísta... mas não queria que o levasse para um caminho ruim. O conhecia bem, melhor que qualquer outro... também não era o que ele iria querer. Não que eu negue o fato de ter sido um desejo egoísta o que fiz daquele dia em diante.

Tão perto e ao mesmo tempo tão longe... como a luz de uma estrela...

O observava distante sem me notar.

Anotava cada detalhe, era intrigante os passos que guiavam o caminhar dele...

Também me inspirei bastante em seus atos... bem, é imaginável já que o entendia tão bem.

Nesse nosso universo, apenas meus atos irão ficar... e os sentimentos dos poucos que me conheceram, o que também irá definhar...

Mas não importava.

Se é necessária minha ida para que ele continue, uma despedida para ele sorrir mais... o meu fim para que tenha seu tão sonhado final feliz...

Farei de bom grado, com um sorriso no rosto.

...

— Então, curtiu a história?

— ...

A garota sorriu para o homem sem resposta. As palmas de suas mãos estavam juntas às bochechas, com os cotovelos unidos sobre suas pernas. Os membros inferiores também estavam colados, esticados para frente. Sua coluna se curvava para atender à pose. Tudo isso resultando em uma posição vívida e brincalhona.

— Plot twist! Não morri! — Limit se levantou de forma teatral, erguendo os braços como uma apresentadora de shows. Sua expressão estava confiante e grandiosa, seguindo a intenção da pose.

— Hum...  — devido o movimento abrupto o garoto sob seu corpo gemeu.

Limit deu uma rápida olhada para baixo. Lá estava Sea com seus trajes e corpo normais. Há pouco estava sentada sobre suas costas, por isso o gemido repentino. Ela deu um sorriso amável e agachou, fazendo um carinho no cabelo de seu pai. O rosto dele acalmou e o interior ficou feliz.

— Eu acho que deveria ficar irritado depois de toda aquela despedida bonita, porém na realidade estou um pouco aliviado. A propósito, imagino que nesse tipo de situação o herói deveria deitar no colo da garota, não?

— Hue, não fique irritado comigo, sou fofinha demais para ser odiada. — ela fez um rostinho amável para acompanhar a desculpa, mas logo esvaiu ao perceber que não funcionaria. — E quanto a isso... acredite, ele prefere bem mais isso. — Limit deu tapas em suas roupas para limpa-las, e em seguida sentou no mesmo lugar de antes. A expressão de Sea ia ficando mais alegre à medida que o peso era adicionado. — Poxa, essa personalidade sadomasoquista dele é problemática, mas ao mesmo tempo é tão adorável... — finalizou com alguns toques na bochecha de Sea, aproveitando suas reações.

Voltou para sua pose inicial, dessa vez com os olhos fechados em direção a Atlas. Sim, a terceira pessoa nessa conversa. Seus cabelos ondulados e olhos cor azul continuavam o mesmo. Porém, dessa vez com algumas mudanças. Sua antiga roupa de divindade grega havia sumido, dando lugar a uma roupagem formal. O terno preto com pequenas linhas brancas guardava a parte superior do corpo, com as mangas brevemente retraídas. Sob estava uma camisa branca de mesma cor, porém mais escura. Para finalizar, uma gravata verde-escuro. Já a parte inferior uma calça de mesma cor do terno, terminando pouco depois das meias brancas, dando espaço para o sapato cinzento.

— Mas sabe, essa sua roupa é bem estranha. Te faz parecer inteligente... não combina com você.

— ... — para a zoação de Limit, Atlas ficou em silêncio.

Tudo estava muito esquisito, na verdade.

— Pois bem, Limit-

— Ah, River, por favor.

— River... — ele se corrigiu a contragosto. — Qual o motivo da historinha dramática?

Para a pergunta o sorriso de River expandiu ainda mais. Nem parecia que há poucos minutos uma conversa extremamente emocional ocorrera com seu pai.

— Bem, acho que o mínimo que se tem de fazer quando for fazer um pedido é ambas partes se conhecerem, certo? Então-

— Eu nego.

— Obri-.... Eh? — demorou um tempo para que a moça se recompor, mas quando conseguiu, soltou um som confuso. — Ei, ei! As coisas não funcionam assim. Eu sei que meio que menti há alguns momentos, mas realmente vou desaparecer já, já! — ela apoiou o queixo nas mãos e abriu os olhos para falar.

— Sou um cavalheiro, não vejo motivo para negar um último desejo de uma pobre garota tentando ajudar seu pai, porém... — Atlas deixou os braços para trás das costas, pôs uma expressão de certa raiva, olhos afiados e começou a andar. — não tenho tempo a perder cumprindo os desejos de uma mentirosa.

— ...

River arrumou sua posição e cuidadosamente, fazendo seu melhor para não mexer Sea, ergueu-se. Seus cabelos voaram no ato, e seus olhos verdes ficaram sérios. Cruzou os braços. Sua expressão nunca esteve tão severa.

— Mentirosa? — sua voz saiu grave, expressando também seu descontentamento com tal classificação, ergueu o queixo para continuar. — como?

— Você não perdeu suas memórias realmente.

Atlas ter dito isso sem uma pergunta no final apenas deixava mais claro sua certeza. Nada o provaria do contrário, de que a garota em sua frente estivera mentindo o tempo todo.

— ...

River arregalou os olhos, mas logo em seguida voltou à feição severa. Sua expressão foi ficando mais obscura, e o aperto das mãos mais fortes. Ela andou em direção a Atlas, que no momento arrumava os botões da manga. Aproximou-se e...

— Hue. — riu. Posteriormente inclinou bastante a coluna, voltando para sua feição brincalhona costumeira. Deu vários passos rápidos em ziguezague para trás, como se com vergonha por ter sido descoberta. — O que me entregou?

Ela podia ter enrolado mais, no entanto sabia bem... não sairia dessa sem ao menos um pouco de verdade.

— ... — Atlas não falou. Simplesmente ergueu seu braço, formou um punho e o desceu com força. Limit entendeu com perfeição. — Só tem quatro formas de conhecer esse movimento: a primeira seria me ter visto usando, contudo nunca mostrei para Sea; alguém ter lhe contado, porém é minha primeira vez como título então é impossível; a terceira... está fora de cogitação, tomei todo o cuidado com a passagem. Levando a uma única alternativa...

Agora estavam frente a frente. River mantinha sua pose infantil, ouvindo a explicação de Atlas como uma música prazerosa. Seus olhos estavam fechados para escutar melhor, e seu sorriso transparecia o interior repleto de alegria. Esperava a resposta final de Atlas.

— Você sabe como veio parar aqui, porque está aqui e, consequentemente, possui suas memórias. — falou brevemente sua síntese de pensamentos. — Também, a partir do momento que notei que estava mentindo, consegui achar mais brechas em sua explicação. O motivo de ter pego o corpo de Sea não era por “sua consciência estar cheia”, seria muito forçado ser bem nesse momento, sem falar que eu também estou na mente dele, talvez não tão bem quanto você, mas o entendo. Sendo assim... Por que arbitrariamente tomou posse do corpo? Elias? 

River sorriu de forma imparcial e inclinou a cabeça, como se concordasse e ao mesmo tempo não concordasse com a teoria de Atlas. Em seguida seus olhos caíram, mostrando uma face melancólica.... Seus olhos pareciam... Perder um pouco do brilho.

Porém em pouco tempo ela chacoalhou a cabeça e mencionou "Ele teve o que mereceu pelo que fez", e continuou a falar sobre ter sido descoberta.

— Poxa, quem diria que um pequeno movimento involuntário iria me desmascarar completamente... — River deu uma piscada, depois abanou as mãos em desistência. — Mas antes de qualquer mal-entendido, não menti no resto. Tudo o que falei, sentimentos, desejos, preocupações... meu discurso de agora há pouco. Tudo era verdadeiro, meus mais sinceros pensamentos.

— Eu sei.

— Hue... — River não pôde fazer mais que rir para Atlas, quem até o momento aparentava ser bobo, sendo tão resoluto. — Mas sabe, eu realmente tenho pouco tempo... — Sob si o círculo estava se fechando. Havia resguardado um pouco para essa conversa com Atlas, mas já estava se alongando demais.

Ao menos sua morte em minutos não era mentira.

— ... — Atlas olhou para o pequeno círculo em que estava, o branco lhe protegendo da escuridão. Coçou o queixo e deu um passo em frente.

— Espera, aí não!

River não reagiu a tempo. Não imaginava que Atlas fosse ser descuidado. O havia permitido escutar sua conversa privada com Sea para não perder tempo, exatamente tentando evitar esse desenrolar.

— ... Huh...? — o suor que havia escorrido apressado logo ficou gélido. Atlas não fora afetado.

— Se o problema é tempo, não por isso.

A voz de Atlas saiu fria... um tanto quanto confiante, com um ar de superioridade.

Ele levou o braço aos céus e cerrou o punho. Pôs um sorriso de vitória no rosto e o desceu. A força com que o fizera era avassaladora. O punho parecia ter ascendido a um novo nível de poder, impossível para humanos normais. O próprio ambiente mudara conforme esse movimento. As trevas antes imóveis, destruindo o branco, moveram-se.

Pouco a pouco foram se descolando. Como uma tinta velha saindo da parede. Todas giraram num movimento horário, agora parecendo uma gosma pegajosa. A velocidade era tamanha que um pequeno tornado se formara no lugar, e foi onde todo o ódio se reuniu. River teve de segurar o cabelo que voava incontrolavelmente, até suas alças do macacão soltaram com tanta potência.

 Ia se juntando, condensando, tornando-se uma única existência... diminuindo ao tamanho de uma pequena bola de boliche. Ao fim, tudo foi até a mão de Atlas, ainda com alguns resquícios se juntando a bola.

Quando tudo parecia estar finalizado, Atlas esmagou a bola com ambas mãos. Uma, duas.... trê. Repetiu o movimento de cerrar o punho três vezes. River ficou pasma com essa sequência de eventos.

— “Ódio capaz de destruir o mundo”? Balela, — ele foi bem duro e direto, como se recobrasse memórias pessoais. — é só um garoto reprimido com raiva da sociedade, vocês não conhecem o que é o verdadeiro ódio. O desejo de vingança de uma vila por ser injustamente destruída por seu soberano, de um pai que perde os filhos devido a fome, duma criança que vê os pais serem assassinados em sua frente... Não chega perto disso. — ele próprio sabia que estava exagerando, mas não suportaria alguém dizer tais coisas dali em diante. — Ele, muito menos você conhece... o verdadeiro Peso dos Sentimentos.

River ficou em choque por alguns instantes, depois forçou a si mesma a restringir essa surpresa. Virou a cabeça para os lados para deixar o susto sumir e deu dois tapas na bochecha para acordar.

— ... Realmente, ser logo você a pagar de bonzão é desconfortável... — River jogou os braços ao alto, como se estivesse se alongando. Sua forma de agir contrastava totalmente com Atlas, que permanecia sério. — Acho que deveria ter esperado isso de você, Atlas. Ou talvez prefira que eu o chame de... — Ela deu um pulinho e se sustentou com um único pé, na ponta dos dedos. Juntou os braços como se rezasse por trás da cintura e falou com uma frieza clara:

Atlas, o Titã dos Sentimentos.

Após assim dizer, River deu um pequeno rodopio, como se não quisesse ver a reação de Atlas logo. Suas pernas foram deixadas numa posição próxima a 90 graus, imitando uma bailarina.

Atlas deu uma pequena risada. Há muito tempo não o chamavam por esse título, seu título. Ele levou uma mão ao queixo, acariciando seu próprio rosto. Gostava desse nome. Refletia a essência de seus poderes.

— Hue, eu realmente consigo entender porquê você e o papai são tão bons amigos.

— Não sou amigo daquele traste.

Para o Titã não sincero, River soltou uma pequena risada. Era engraçado como ele, mesmo tão poderoso e inteligente, não conseguia falar sobre si mesmo verdadeiramente.

— É, você tá certo. Mantenho todas minhas memórias e porquês disso tudo. Só que...

— Não vai me contar além desse ponto.

— ... Na mosca! Como esperado.

River levou a mão direita para perto de sua boca e abanou, como se dissesse “esqueça”. Claro, Atlas não iria aceitar só isso, então continuou:

— Saber ou não saber não vai afetar muito esse mundo. É uma história já perdida, esquecida... e assim que eu me for, o segredo morre comigo.

— Pois bem.

— ...

 Atlas não tinha real interesse no assunto. Na verdade, estava cansado de ouvir histórias sobre outras pessoas, outros locais... outras vidas. Não tinha interesse no porque de River estar aqui, ou como tudo isso a envolve junto a Sea. Apenas queria confirmar suas suspeitas.

— De qualquer forma, você não precisa mais se preocupar sobre morrer ou não. Essa parte era verdade, mas já consumi todo o ódio contido em Sea. Agora você-

— Atlas. — River interrompeu. Não mais havia alegria ou zoação em sua voz. Agora, estava sendo perfeitamente sincera. Seu tom carregava melancolia, uma dor adormecida. — Por favor, não estenda ainda mais o meu sofrimento.

— Imaginei que seu maior desejo fosse ajudar Sea.

— E é. — seu olhar foi ao chão por alguns momentos, e em seguida ela voltou, confiante. — Por isso eu vim lhe pedir para cuidar dele. Sabe, eu já fiz o que prometi, cuidei dele, guiei... tô cansada. Sabe, no fim, sou meio egoísta... todos somos egoístas.

—... Não sou um ser onipotente, muito menos um santo. Não vou ajuda-lo sempre que estiver em apuros, tenho meus limites. Tanto pessoais quanto “jurídicos”. — Por jurídicos se referia as suas limitações de título.

— ...

River desceu o olhar. O braço esquerdo ficou totalmente jogado, sendo segurado brevemente pelo direito por trás das costas, como se fizesse massagem. Seus olhos caíram, e o sorriso costumeiro virou de lado. Desapontamento. Não com Atlas, e sim consigo mesma.

— Porém, vou acudi-lo quando em necessidade. Não como uma filha faria pelo pai... mas vou cooperar vez ou outra.

— ...! ...!!!

Demorou um tempo até que as palavras fossem processadas, gerando dois espasmos em seu rosto. O primeiro de surpresa, o segundo de uma confusão sem tamanho. Seus punhos fecharam e foram levantados, como numa posição de luta. Porém, nesse caso, estava sendo para comemoração.

— S-sério!? Do jeito que as coisas tavam indo, achei que não fosse ajudar...! — River ficou bastante animada, e com razão. Ergueu o calcanhar várias vezes em excitação, e no fim chegou perto de Atlas. — Por quê!?

Atlas ficou claramente incomodado com esse tipo de reação, todavia ignorou e coçou a bochecha, hesitante pelo que estava prestes a dizer.

— Eu gosto de você.

— Ah...! Hã...? Ah! — primeiramente reagiu pela resposta que esperava, então caiu a ficha, e por fim se assustou. — E-eu respeito seus sentimentos, e entendo que eu seja um ótimo partido, porém já sou comprometida! — negou aos prantos a suposta declaração, corando no processo.

— Não nesse sentido, retardada! — rejeitou essa possibilidade com todas as forças. Até chegou a sussurrar que também tinha mulher e filhas. — Digo que me identifico com você.

River deixou sua exaltação de lado, chegando mais perto para escutar com atenção. Atlas, não acostumado, retraiu um pouco.

— Tendo suas memórias ou não, você... viveu essa vida pelos olhos de outra pessoa, certo? Eu sei como é... como dói... viver a vida de outra pessoa sem ser você mesmo. Perguntar-se se realmente viveu aquilo, se te tornou o que é hoje... se tudo foi verdadeiro ou uma farsa...

Inesperadamente Atlas estava sendo sincero com seus sentimentos mais profundos. Quando terminou seu rosto enrubesceu um pouco, e desviou o olhar. River, sendo bem mais nova, riu para essa reação, mas logo voltou a um rosto maduro.

— Olha, eu não sei o que te preocupa, nem seus problemas pessoais... mas sei que meu pai vai ajuda-lo com felicidade se pedir. Aproveita que vai ser a forma dele de te pagar por dever uma.

— ... Não preciso da ajuda desse idiota.

Para a mais uma vez falta de sinceridade de Atlas, River soltou uma risadinha, escondendo a boca com a mão para não ficar muito perceptível.

— Mas sabe, mesmo você sendo quem é... talvez esteja subestimando o ódio do papai. — ela voltou a seriedade, e para esse assunto Atlas escutou com atenção. — Eu não estava mentindo ou extrapolando. Quando se comete um ato de ódio, depois de um tempo você volta à paz. Porém, essa paz se esvai com o tempo... e então, para repô-la, você deve cometer um ato de ódio ainda maior que o da última vez... Não estou errada. O ódio do meu pai quebra os limites da realidade.

— ...

Dessa vez, para a última fala de River, Atlas se preocupou. Se ela realmente mantinha memórias, e sabia tudo sobre a fonte de ódio de Sea. Talvez... pudesse estar errado sobre. Ele sinalizou com a cabeça que tomaria cuidado, e a garota sorriu em resposta.

— Bem, então acho que terminamos por aqui, né?

— ... De acordo.

Quem apressou o fim foi River, reforçando que, sendo ou não a melhor alternativa, gostaria de acabar com tudo logo. De repente, notando isso, sua expressão ficou um pouco melancólica.

— Ah, acho que não preciso dizer, mas não é pra contar nada disso pro papai, viu? 

— Contar que a filha dele mentiu momentos antes de sua morte? Odeio ele, mas não sou insensível.

— Hum, bom. Você ia me deixar brava.

A última fala foi uma brincadeira misturada com seriedade. Atlas deu de braços. Além do mais, não era de seu interesse. Ainda precisava que Sea ganhasse esse Jogo para receber seu prêmio de título, então não afetaria ainda mais seu estado mental.

— Sabe, Atlas. Quando vim para cá, quis conhecer muitas pessoas... infelizmente minha estadia acabou antes do esperado, porém... fico feliz que tenha conhecido você.

— Igualmente. De preferência gostaria que ficasse, mas...

— Eu só quero ter meu tão prometido final feliz logo...

Atlas, como Titã dos Sentimentos, pegou as entrelinhas dessa última fala. Carregava um peso desconhecido, que necessitava de palavras e contextualização para serem perfeitamente entendidas. Ainda assim, conseguia entender o exterior. Eram palavras de alguém que perdera tudo que lhe era importante... sonhando com um final perfeito.

Também carregadas de aceitação.

— Foi bom conhece-la, River. Espero que o que quer que esteja almejando se concretize.

— Eu também, Atlas.

A mão de Atlas abriu, revelando a anterior esfera escura de destruição. Seu interior parecia como névoa, uma tempestade de raios incontrolável, querendo se lançar para todos os lados em busca de destruição.

Ele a soltou no chão e, seguindo seu desejo, a bola alastrou, ocupando todo o espaço disponível. Foi pouco a pouco cobrindo cada parte branca daquele universo, tornando-o mais uma vez num mundo de trevas e escuridão...

River jogou o cabelo para trás, e deixou Atlas sair. Ele, não querendo ver isso, abriu uma porta do nada atrás de si e entrou. O que estava dentro não podia ser visto, repleto de uma cor branca.

A garota, agora sozinha, finalmente perto de seus momentos finais sorriu. Procurou seu pai e sentou ao lado dele, não acima. Posicionou sua cabeça sobre seu colo e confortou sua cabeça. Em seguida fez um cafuné. Ficaria assim enquanto assistia o mundo sendo tomado pelo ódio.

— ....

Não falou nada. Quando estava perto dos 100% deu uma última olhada para o “céu” e baixou o olhar. Fechou os olhos. Acima de tudo não queria ver o que estava para acontecer.

Durante todo o tempo seu sorriso continuou, como se estivesse em um belo campo florido. No entanto, na verdade estava sonhando com seu tão prometido final feliz.

O mundo foi totalmente consumido pelo ódio. Tragando consequentemente em seu fim.

O silêncio reinou repleto de sentimentos positivos.

 

 

 

Fim do arco 2



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