Chamado da Evolução Brasileira

Autor(a): TheMultiverseOne


Uma Cidade Pacata – Os Mistérios dessa Cidade

Capítulo 37: Reavaliação

Dizer que Hannah se encontrava preocupada com o estado de seu irmão seria equivalente a comparar o oceano com uma gota d’água.

“Droga... Eu nunca me senti tão inútil na minha vida inteira…”

Arrumar as papeladas do hospital não ajudava em seu estresse consigo mesma, nos últimos dias, e doía-lhe de verdade ter que olhar para o estado de Ryan e fingir que não sabia nada de mais.

“Eu não sei por quanto tempo vou conseguir continuar brincando de ser a irmã tonta e que não sabe de nada.”

Seus ferimentos foram curados depressa, graças ao seu toque, mas mesmo assim, o gosto amargo permanecia na boca.

“... E ainda assim eu tenho que agir como se não soubesse melhor…”

Seu irmão, aos poucos, se envolvia no mundo que ela já conhecia bem, com todos os segredos por baixo dos panos, sussurrando de cada esquina das cidades que visitaram.

“Tivemos que cuidar de muitos…”

Ryan tentou ler suas memórias naquele dia e Hannah pôde sentir. Por um momento, naquele abraço, ela desejou que ele pudesse descobrir o que estava procurando.

Mas não faria — não com aquilo o impedindo de tomar esse caminho tão fácil.

“Eu não faço ideia se vou conseguir ficar sem contar a verdade quando as coisas começarem a ficar mais complicadas do que já estão…”

O problema com isso era conhecido. Se Ryan soubesse de qualquer coisa sobre seu passado e a realidade que o passava a rodear, não iria parar por aí, e em sua fome por querer descobrir mais, seria levado ao ponto onde ninguém desejaria que atingisse.

E meramente pensar assim a enchia de medo o suficiente para que seus dedos ameaçassem, de repente, largarem os fichários dos inúmeros pacientes da enfermaria 18.

“Se algum dia ele se lembrar”, apertou os papéis com força. “Então que Deus tenha a todos nós…”

— Hannah...! Hannah! Ah...! Que bom que eu te encontrei...!

A voz aguda a arrancou de seus pensamentos, gerando um espasmo que quase a fez jogar de vez todas as dezenas de páginas com exames e laudos, recém-organizados no belíssimo compilado. Seria uma tragédia de se ver.

— Ai, meu Deus...! Eu te assustei, não foi? Me desculpa! — A mulher, quase em pânico, falava depressa. — Mas, Hannah... É urgente!

A Savoia engoliu um acumulado de saliva ao se deparar com essa pessoa tão frenética em suas ações. A enfermeira chamada Mary — que por sinal podia ser chamada de sua primeira amiga no hospital — abanava a si mesma com as mãos, sorrindo de um modo desesperado demais para ser saudável.

Hannah soube, desde o primeiro dia, que ela sofria de algum tipo de ansiedade, mas nenhum dos episódios chegou a ser tão intenso.

E para isso acontecer, precisava saber o que houve.

— Mary, por favor, respira...!

Hannah depressa largou a papelada no pequeno balcão da enfermaria, indo a caminho de acudir sua amiga. Sem hesitar, acolheu-a nos braços e deu-lhe leves tapinhas de asseguração em suas costas. 

Deveria ser o suficiente.

— ... Puxa vida...! Hannah... Eu não sei como você tem esse talento... Mas você é um anjo...! — dizia, entre os episódios de falta de ar. — Só você para normalizar o meu humor...

Mary subitamente sentiu seu corpo inteiro ser consumido pela tão desejada sensação de calma que vinha com o final das crises. Era impressionante — bastava um simples abraço de Hannah para que qualquer crise morresse mais depressa do que começou —, um verdadeiro milagre.

— Você deveria procurar um terapeuta, Mary... Isso pode acabar trazendo problemas.

— É... Eu sei... Eu sei... Mas, obrigada, Hannah.

— Não foi nada! — respondeu docemente. — Agora se não se incomodar, me conta devagar o que aconteceu para você ter entrado em crise. Foi aquele seu namorado canalha de novo? Pode me contar tudo em detalhes na hora do almoço!

Ao menos seria uma pequena distração que tirasse sua mente de ter que constantemente pensar em seu irmão.

— Não... Não foi nada disso...

Uma notícia que definitivamente não esperava a impactou com toda a força.

— A paciente do 21-B, o caso de Síndrome X... Ela acordou do coma!

Hannah sabia que aquilo aconteceria eventualmente, mas antecipar a certeza não lhe fazia o favor de tirar o peso da revelação, ciente de que o pior se iniciaria ali.

— Ela acordou agora mesmo. O Doutor Noah está fazendo o procedimento de checagem inicial, mas ele absolutamente demandou a sua presença ali. Por isso eu estou aqui, para te entregar essa mensagem.

Pelo olhar na expressão tão clara da enfermeira, Mary sentia-se feliz e aliviada com essa que julgava ser uma boa notícia.

— É a primeira pessoa documentada que sobrevive à Síndrome X, Hannah! Significa que, se possível, podemos usá-la como um ponto de partida para descobrir o que faz as pessoas sobreviverem a algo tão misterioso e usar isso para combater essa coisa! É o mesmo que fazer uma vacina ou uma cura!

Superficialmente, era de fato essa a explicação que se iria ouvir e o que a mídia buscaria quando enfim isso caísse em suas mãos.

Contudo...

“Tem alguma coisa a mais acontecendo…”

Hannah sabia bem o motivo de não existirem pessoas sobreviventes da tal Síndrome X, e de um jeito simples, foram infelizes o suficiente para não vencerem na loteria chamada “genética”.

— Talvez, estejamos um passo mais perto de finalmente curar essa coisa... Imagine se Elderlog, de todos os lugares no mundo, for o canto que despontar nessa pesquisa?!... Hannah...? Uh... Hannah?

“Primeiro foi essa garota, depois o rapaz que foi encontrado na quadra isolada da escola…”

— Hannah...? Terra para Hannah Savoia! Hannah?

“Alguém está criando essas pessoas com poderes... E eu preciso descobrir quem é!”

— Hannah! — Mary chamou com mais força. — Não me assusta assim, Hannah! Olhando para o nada com essa cara vazia... Você ficou pálida! Tá tudo bem?! Ai meu Deus...! Alguém chama um...

Antes que pudesse terminar, Mary sentiu uma mão firmemente tampar sua boca.

— Eu tô bem... Tô bem. Não precisa chamar ninguém. Não vamos perturbar a ordem no hospital, Mary.

Hhhmph...! HHHMMPH! — Incapaz de falar, se debatia e protestava.

— Eu sei... Eu sei...! E me desculpa, Mary! Me desculpa de verdade. Eu sei que eu tô sendo muito estranha sobre isso.

Logo atrás do balcão, havia uma pequena sala, dividida do restante do hospital por uma simples porta de alumínio barato. Antes que alguém as visse num comportamento altamente suspeito, a enfermeira recém-chegada puxou a pobre Mary para dentro da sala.

— Mas isso vai acabar logo... Eu prometo.

HHHHMMMPH...! — Ainda mais assombrada do que antes, os olhos da mulher silenciada encheram-se de lágrimas.

 — De novo, me desculpa.

Hannah puxou do bolso de seu pijama hospitalar uma pequena seringa que, com um golpe de misericórdia dado sem qualquer hesitação, atingiu o pescoço de Mary. Em questão de segundos, o conteúdo fez seu caminho até o cérebro.

Demorou quase nada para que ela desistisse de lutar, cedendo aos efeitos da pequena dose de Propofol. A anestesia geral a entorpeceu por completo, transformando-a uma boneca em tamanho real, nas mãos da Savoia.

“Isso vai derrubar ela por umas duas horas.”

Felizmente, o pequeno quarto atrás da recepção da enfermaria era justamente o ponto de descanso dos trabalhadores do setor. Ali, além de uma pequena cozinha, existia um quarto menor com algumas camas.

Hannah a deitou em uma delas, rezando com todas as forças para que sua melhor amiga não acabasse demitida por preguiça no trabalho. 

E em um passo acelerado, deixou a recepção, indo até o quarto 21-B.

“Só me basta rezar que façam a escolha certa…”

Sua impaciência a levou a invadir a sala do leito sem qualquer cálculo. Não havia tempo a perder.

[...]

— ... E então, o que começou a sentir? Quais foram os seus sintomas? Preciso que me diga, Phoebe... Por favor.

As perguntas do Doutor Noah nunca encontravam um fim, sempre buscando por algum tipo de pista ou resposta mágica que o fosse levar a descobrir a causa final de o que quer que tenha causado o coma tão intenso.

— Eu vou repetir de novo, Phoebe. O que você sentiu? Alguma coisa que possa me contar?

Alguém mais já tinha perdido a paciência com aquele interrogatório terrível.

— Não vê que ela não quer falar sobre isso agora?! Que tipo de médico é você, que não consegue respeitar os pedidos dos seus pacientes?!

Rita Martinez se colocou entre sua amada filha e o médico que a oprimia com suas perguntas horríveis. Em sua opinião, isso muito mais parecia uma sessão de tortura.

— Olhe para ela…! Minha filha tem cara de quem quer responder alguma coisa?! Você mesmo teve a coragem de olhar na minha cara e dizer com todas as palavras que a minha Phoebe ia morrer... Tenha um pouco de paciência! Ela acabou de acordar!

Parcialmente sentada na maca, a pequena Phoebe permanecia calada, seu olhar desviado para a esquerda. Nessa posição, sua ocupação era coçar incansavelmente o braço.

— Ela está claramente sobrecarregada! Como esperam aprender alguma coisa se não fazem trinta minutos que ela despertou?! Ela nem mesmo se alimentou ainda!

Era claro para o doutor que a Sra. Martinez havia adquirido algo pessoal contra ele desde a última vez que se encontraram. Todos os dias ela vinha visitar sua filha e passava horas ao lado dela, conversando com a menina…

... E em todas as vezes, ela sempre o dirigia a mesma encarada amarga e cheia de nojo, em cada oportunidade que o via.

— Sra. Martinez... Eu entendo como esteja se sentindo e sei que me detesta. Você fez questão de deixar isso bem claro… — Ele começou. — Mas, de qualquer forma, estou aqui fazendo o que meu dever manda. O relato de Phoebe vai ser importante, e se soubermos mais sobre a Síndrome X, poderemos guiar estudos que levem a uma possível cura ou vacina!

A menção dessas palavras a fez imediatamente parar de coçar.

— Isso é algo que beneficiaria toda a humanidade! Não é uma coisa maravilhosa?

Para isso, Rita cruzou seus braços, impassível. A partir dali, ficava claro o quão similar a mulher era à sua filha.

— Eu não me importo com o que estejam pensando. Não vou deixar que usem a minha filha para nada! Se quiserem tanto assim aprender, procurem por mais alguém que tenha sobrevivido ou alguma coisa assim!

Descrever Rita como uma versão mais alta e madura de Phoebe seria acertar o alvo em cheio. No geral, mantinha as mesmas características gerais da menina — o físico magro e ossudo, feições abatidas cheias de cicatrizes de espinhas e as sardas — com a única notável diferença de que seus cabelos, também tão alaranjados quanto o sol do poente, eram muito mais longos, lhe atingindo os joelhos e cobrindo a metade esquerda de sua face quase por completo.

— Minha Phoebe é o meu docinho. Não vou permitir que toquem nela, especialmente se tratando de alguém que teve tão pouca fé na recuperação dela!

— Senhora Martinez, por favor, tente entender...

E antes mesmo que pudesse terminar, a porta da sala de repente se abriu tão depressa que enviou para dentro uma potente ventania.

— Ouvi que me chamou, Doutor. Mary me passou a sua mensagem.

— Ah... Hannah...! Que milagre!

O doutor sorriu por dentro bem mais do que exteriorizou. Sem desejar ficar mais um segundo perto daquela mulher temperamental, agarrou-se firmemente à prancheta preenchida com bem menos informações do que gostaria.

— Hannah... Por favor... Tente convencê-la a deixar a garota ser o nosso objeto de pesquisa, sim? Isso é importante...

Olhar para sua direita revelou a furiosa mãe, que zelava pela segurança de sua cria a um ponto irracional.

— Não se preocupe, eu vou tentar, Doutor Noah! — Hannah murmurou baixo, em resposta.

Ela não iria. Definitivamente não iria sequer tentar interferir na mente superprotetora de Rita.

Conformado com a resposta e com o imenso sorriso que ganhou da enfermeira capaz de se tornar o raio de luz do hospital em tão poucos dias, o médico saiu da sala, deixando as três sozinhas.

A discussão deixou para trás seus amargos segundos de silêncio, quando...

— Nem mesmo pense em tentar me convencer disso... — Rita cuspiu desgosto, negando veementemente.

— Eu não vou. Acima de tudo, é um direito seu! — A enfermeira respondeu calorosamente. — Ao invés disso...

O pequeno detalhe escapou a visão de todos no instante de sua entrada, dado que, por esse tempo inteiro, ela tinha em mãos um grande copo selado, contendo algo reconhecível por qualquer um.

— Phoebe, eu imagino que esteja com fome! Olha só, eu te trouxe vitamina de morango!

A garota sequer deu atenção àquilo. Parada, ela se resumia a olhar fixamente para as unhas de sua mão direita.

— Phoebe? Tudo bem, filha?!

Rita correu para acudir a sua garotinha, enchê-la de tantos e tantos abraços e perguntar se sentia algo de ruim, mas antes que fosse capaz, a própria menina tratou de falar.

— As minhas unhas... — falou em voz seca, quase inaudível. — Elas... Cresceram rápido.

Não eram simples unhas... Aquelas eram garras. Cada uma tinha bem mais do que três centímetros de comprimento e culminavam em pontas afiadas, molhadas em um conhecido tom de rubro.

— Filha...! Você se machucou!

Pequenos cortes se espalharam na pele clara de seu braço esquerdo. Eram linhas quase perfeitas, manchadas de uma pequena quantidade de sangue.

Ela havia se arranhado até chegar nesse ponto, sem nem mesmo perceber isso.

Aquilo era ruim — muito ruim.

— Um segundinho...! Eu... Preciso pegar uns curativos para cuidar disso...!

Hannah saiu depressa da sala, com pensamentos a mil, pois não havia outro modo de explicar o que acabou de ver.

“Então ela já manifestou inconscientemente logo depois de acordar...? Será possível que…”

Ter de pensar na possibilidade trazia ao menos quinze tipos diferentes de dor de cabeça.

“... Será possível que a compatibilidade dela seja tão elevada quanto eu esteja imaginando?”



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