Chamado da Evolução Brasileira

Autor(a): TheMultiverseOne


Uma Cidade Pacata – Os Mistérios dessa Cidade

Capítulo 39: Perspectiva

— Minha nossa... E imaginar que esse lugar estaria tão cheio de energia em um tempo desses...

A primeira coisa que bombardeou a idosa no segundo em que entrou na grande biblioteca não foi o aquecimento artificial ou os detalhes estéticos rústicos e tão belos.

— É... Bom dia, senhora Mason. — A funcionária na recepção a saudou com um sorriso desconcertado.

A velha mulher apenas levantou a sobrancelha para a outra, que deveria ser ao menos uns quarenta anos mais jovem, com só uma pergunta a ser feita:

— É ela que está fazendo esse barulho todo, não é?

A funcionária não teve como negar e somente assentiu. A mais jovem tocou sua testa, em um sinal de constante negação de sua cabeça. Depois de uma bufada de ar quente, deixou o pequeno sorriso de quem sabia o que acontecia ali escapar.

— Eu sabia. — A senhora Mason repetiu exato mesmo gesto, embora com bem menos intensidade. — Emily, aquela garota... Sempre causando tanto caos quanto pode no meio dessas estantes vazias...

Por um momento, os barulhos elevados de fundo deram lugar a uma chuva de pensamentos que a rejuvenesceu por dentro.

E pensar naqueles tempos em que tudo era mais simples se mostrou mais do que suficiente para aumentar ainda mais a sensação de nostalgia já iniciada por sua reflexão sobre aquela personalidade tão altiva.

— Ah, Emily Attwood... Você não trabalhava aqui ainda quando eu era quem ficava o tempo quase inteiro por trás desse balcão, Mychelle.

A funcionária sabia que dali viria uma história, mas não se prontificou em tentar impedir a velha senhora de falar. Se qualquer coisa, escutar algo novo acabaria por servir contra o tédio de lidar com um lugar praticamente vazio.

— Aquele tempo... O tempo que essa cidade ainda tinha céus azuis e era conhecida por ser pacata, ao invés de ser um canto em que mulheres vêm em busca de suas mortes...

O amargor súbito da última parte enviou uma onda fria pela espinha de Mychelle. Ela podia não estar incluída nas preferências de qualquer que fosse o grupo sequestrador das mulheres da cidade, mas conhecia muitas jovens que eram, com a própria Emily Attwood a figurar como forte candidata.

— Eu vi essa menina crescer no meio desses livros, Mychelle. Sei de cada humor diferente que aquela criança tem. Praticamente desde que nasceu, ela se enfurna nessas estantes.

As lembranças de uma garotinha de comportamento arredio a sempre lhe encher de dezenas de perguntas ao ponto de encher-lhe a paciência a trazia calor nos dias tão frios.

— O meu pior erro foi contar uma história para aquela menina uma vez... Ah! Mas que erro o meu...! Um que não me arrependo nem um pouco de ter cometido! Ainda me lembro de todas as perguntas que ela me fez sobre os personagens e sobre como eu não conseguia responder ou sequer havia pensado em metade delas.

Tomou ar e puxou para si o odor misto de madeira e papéis. Em seu tempo, eles ainda não tinham o segundo andar, cheio de salas para conferências e reuniões. Tudo era muito mais simples.

— Olhe só para mim, ficando nostálgica de novo... Bem, melhor começar a trabalhar. Sei que vamos ter muita coisa que precisaremos organizar para o Festival... Eu me pergunto se aquela garota vai ganhar de novo o concurso de beleza da cidade, que nem nos últimos dois anos.

A velha Caroline Mason riu mais uma vez, a tomar o tom das conversas que Emily tinha com outra voz, desconhecida e bem mais difícil de distinguir.

[...]

Hmmh-hm-hmmh! Hmmh-hm-hmmh!

“Como alguém consegue ler alguma coisa e prestar atenção desse jeito...?”

Ryan não conseguia focar em sua busca por alguma pista que revelasse uma possível relação entre seu coma, o surgimento das pessoas superpoderosas e os crimes de cunho questionável ao redor do mundo.

— Hmmh-hm-hmmh!

A garota à sua frente, no outro lado da mesa de grande comprimento, dançava consigo mesma no banco. Emily balançava a cabeça incessantemente enquanto murmurava melodias.

— Não encontrei nada nesse aqui!

Seu anúncio tão alto quase o assustou, de tão intensa que foi sua proclamação. Era como se, para ela, estar ou não em uma biblioteca não fizesse diferença alguma e por isso podia se permitir gritar e falar tão alto quanto quisesse.

O modo dela de coletar informação era apressado e não se atinha aos detalhes, composto apenas de encaradas por cima. Passaram-se apenas cinco minutos desde que começaram e a garota já tinha terminado com quase metade de sua pilha, enquanto Ryan não estava sequer no meio da primeira quarta parte da sua.

— Terminei esse aqui também. Não tem nadinha! — foi apressada em se livrar do jornal para pegar outro.

Sem a necessidade de dizer duas vezes, isso era irritante.

“Eu não imaginei que fosse ser desse jeito quando resolvi aceitar a ajuda dela…”

— Ei, Ryan… — Por um momento, parou de ler e deixou de encarar o papel.

Um semblante de súbita esperança encheu o rapaz, crente de que ela poderia, enfim, ter encontrado algo de útil entre os vários jornais que dividiram em duas ainda grandes pilhas.

— O que foi? Conseguiu encontrar algo?

A voz dele não chegou a ser metade tão alta quanto a sua própria, porém o gesto tomou Emily de surpresa. Ryan quase saltou de seu assento, ávido em direcionar os olhos para consumir o pedaço de notícia que poderia lhe dizer alguma coisa.

— Ah... Não, eu não encontrei. Na verdade, eu queria ter perguntar uma coisa.

... E tão depressa quanto veio, o súbito surto de energia cedeu lugar outra vez para a expressão fechada e aparentemente ainda mais amarga que a primeira. Ele se recolheu de novo, de volta para sua própria edição de jornal.

— Ryan, por que você quer saber mais sobre a cidade?

Bingo. Não foi menos do que a pergunta certa a ser feita, e o leve sorriso de confiança interno de Emily por muito pouco não se converteu em algo real ao ver a forma do rapaz tremer sutilmente com o questionamento.

— Curiosidade própria. É só isso.

— Ah, sério mesmo? — Ela levantou a sobrancelha. — Porque algo me diz que você está mentindo.

O instante mostrou que de boba não tinha nada, e se qualquer coisa, não o ajudava por pura falta do que fazer ou qualquer outra razão tão supérflua quanto.

Havia um ponto ruim naquilo, no entanto. Ryan não podia, em hipótese alguma, revelar seus verdadeiros motivos.

— Olha, em primeiro lugar eu não pedi a sua ajuda. Foi você quem me empurrou para cá. — Ele respondeu. — Não tenho a obrigação de te responder pergunta nenhuma sobre os meus motivos.

Minutos antes, Ryan havia tentado ler sua mente para descobrir algo que pudesse acelerar a interação. O problema nisso surgiu no fato de ela saber quase tanto quanto ele, porém.

Ou seja, não houve sequer um pedaço de informação útil que pudesse arrancar além de meros detalhes que não acrescentavam tanta coisa à história que já sabia.

Emily era incômoda, barulhenta, excessivamente brincalhona...  Não havia motivo para continuar com a interação.

Ele já se preparava para deixar seu lugar e sair da biblioteca quando o contra-argumento veio.

— Ah, claro! Como eu fui tonta, né? Quem diria que eu estaria tão errada em imaginar que o cara que nem sabia por onde começar, com uma pilha de jornais nos braços, fosse talvez uma pessoa legal, interessante de se conhecer e que conseguisse manter uma conversa decente... Muito burra mesmo, Emily! Você foi uma idiota de pensar assim!

As palavras o fizeram congelar no lugar. Elas o lembraram de algo.

— Olha, não é fazendo drama, mas por um momento aqui eu pensei que a gente pudesse ser amigos, sabia?

“Amigos” — uma palavra que sempre foi tão distante da realidade dele.

… … …

— Ei, Ryan! Vai ficar sozinho de novo? Vem interagir com o resto do pessoal!

Quando ela disse isso, ele a olhou com desprezo.

— Não vou.

Suas palavras saíram simples e finais, mas ela não iria desistir.

— Ah, qual é…! Não pode ficar isolado assim o tempo todo! Vai, você vai gostar de conhecer eles.

Ele a encarou, friamente.

— Eu não quero conhecer nenhum dos seus amigos estúpidos, Ashley. Me deixa sozinho.

Não importava o meio, pois o resultado seria o mesmo.

— Wow, Ryan… Eu bem que escutei por aí que você era um filho da mãe, mas ver isso de cara… É diferente.

Afinal, com um mero toque, toda a sua raiva seria apagada da história.

Ele estendeu sua mão e…

— Não toca em mim, seu nojento…!

De punhos cerrados, se afastou em passos velozes, mostrando os dentes em ódio por sua descoberta.

— … E nunca… Nunca fala comigo de novo…!

Saiu da sala em passos pesados, deixando-o sozinho, mas isso não importava, porque tudo seria corrigido depois do intervalo, quando fossem forçados a compartilhar a mesma sala.

Não havia problema que ele não pudesse consertar, e amanhã mesmo ela estaria ali, sorrindo e dando as respostas dos exercícios, de bandeja.

… … …

“Amizade” sempre foi um conceito desconhecido para Ryan Savoia.

Ter de viajar de cidade em cidade nunca o deixou fazer amigos, e por isso, nunca se incomodou em tentar agradar ninguém, ciente de que, na semana seguinte, já não veria mais as mesmas pessoas.

Sob essa ótica, sempre foi confortável.

Não costumava se aproximar de mais do que uma ou duas pessoas nas suas escolas antigas, sempre com uma relação muito distante. Elas serviam para que ele pudesse ler suas memórias e roubar o conhecimento que batalharam tanto para construir.

Jamais hesitou em descartar essas relações no momento em que não eram mais úteis, ou foi nisso que desejou acreditar por todos esses anos.

“Eu me diverti com ela…”

Ashley nunca foi um incômodo, assim como nenhum dos vários outros, e os últimos dias o mostraram toda a verdade.

“Mark e Lira falaram certo. Eu sou um desgraçado.”

... ... ...

— Ryan... Ryan...? Ei, cara...

Já fazia ao menos vinte segundos que ele continuava parado ali, sem esboçar qualquer reação, por mais mínima que fosse. Àquela altura, Emily já se perguntava se talvez tivesse ido longe demais.

Uhh... Ryan... Olha, foi mal mesmo se eu disse alguma coisa que não devia, mas... Você também teve culpa...!

E quando estava prestes a se levantar da cadeira para ir checar o estado dele...

— Olha… Me desculpa.

Ryan sentou-se de volta em seu lugar e mesmo com dificuldades de encará-la de frente, deixou-se falar.

— Eu... Entendo que você quer ajudar... E... Eu não devia ter respondido daquele jeito... Me desculpa.

Ele não tinha como se levar a encará-la, e não seria preciso um profissional para dizer o quão inexperiente o jovem era com interações humanas mais complexas.

Emily teria todo o direito de sentir raiva, e ele não disputaria isso, nem tentaria mudar sua mente, ou…

— Ah, tudo bem! Relaxa. Dá para ver pela sua cara que você não tá no melhor ritmo, sabia? Eu vou te dar essa folga... Dessa vez!

“Huh…?”

Porém, ao contrário das expectativas, a vida nunca foi exata, e muito menos uma ciência.

— Mas, ei, olha só isso aqui que eu achei... Legal para começar, né? Vamos dar uma olhada!

Como se absolutamente nada houvesse acontecido, Emily Attwood orgulhosamente levantou o resultado de sua busca. Era uma versão impressa da edição de 12 de agosto 2023 do jornal digital Montana Daily News.

— Aqui diz “Aparente massacre na Montana State Prison deixa 49 mortos e cinco desaparecidos”... Esquisito, não acha? Cinco detentos sumirem e deixarem quase cinquenta vítimas...

Emily facilmente notou o leve tremor de sua carne ao ler o título incerto.

— Ah, então é por coisa assim que você tá procurando...! Hehehe... Vou te contar uma coisinha... Eu também!

Sem demora, jogou para frente a página, para que ambos pudessem analisá-la.



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