Chamado da Evolução Brasileira

Autor(a): TheMultiverseOne


Uma Cidade Pacata – Nova cidade, Nova vida

Capítulo 32: Interrogatório, Ato 2

 — ... E assim acaba a grande história de como a gente chegou aqui contigo e começa a de como estamos conversando como os grandes amigos que somos, nesse espaço de convivência tão incrível e agradável...!

A voz de Mark o trouxe de volta, quando Ryan enfim cessou com sua habilidade. A sensação foi como ter voltado do fundo do mar por um cabo de aço puxado subitamente.

— Agora que já sabe como chegou aqui, podemos partir para o que mais interessa.

Lira agarrou o topo do encosto da velha cadeira e, após um solavanco firme, Keith sentiu seu corpo mais uma vez direcionado ao normal. Não mais no chão, via os outros três em seu mesmo nível.

— Vocês três... — murmurou, ainda confuso. — Vocês são completos malucos, isso sim...! É sério mesmo que vocês derrubaram sei lá quantos policiais só para isso...? Só para lidar comigo?

Em negação, balançou a cabeça várias vezes, exibindo os dentes ainda sujos de seu próprio sangue para o trio.

— Tanto trabalho, sendo que podiam pegar o caminho mais simples... Por que não mandaram o filho da puta do Ryan extrair da minha mente tudo o que eu sei e depois disso me deixarem para morrer? Sério... Coisa de louco!

A confiança em seu argumento tinha fundamento; eles não precisavam ter passado por todo aquele processo — não com Ryan se fazendo colaborativo —, então, sobrava a pergunta:

Por que o trouxeram ali?

— Huh... Malucos? A gente? Comparados contigo? Ah, meu amigo... Parece que tu ainda não faz a menor ideia do tamanho da situação em que acabou de se enquadrar aqui com a gente, né?

Mark se aproximou, sorrindo de um jeito tão macabro que não haveria descrição. De certo, o trabalho vindo do fundo do inferno tinha um dedo de sua contribuição.

Ele lentamente alcançou o ombro de Keith, quase perfeitamente imitando o gesto que o despertou de seu “sonho”, que o fez tremer em pânico.

— Não nos julgue pelos seus padrões, seu filho da puta. Ninguém aqui nunca tirou uma vida, mas eu estaria bem mais do que satisfeito em poder começar pela sua.

A entonação fria seguiu uma calorosa risada engraçada dele, que não hesitou em voltar para seu canto ao lado de Ryan e Lira, observadores de tudo.

— Minha cara Lira... Importar-se-ia em me ajudar a responder a pergunta desse cidadão? Quantos foram mesmo os policiais que a gente derrubou para chegar até aqui?

— Dezessete. — A resposta não custou. — Foram dezessete, isso sem contar os três zeladores, cinco alunos e aquela coordenadora perdida... Isso totaliza...

— Vinte e seis...

A proatividade de Ryan, dentre todas as possibilidades, em falar algo surpreendeu até mesmo o assassino amarrado, especialmente posto o seu estado.

Tinha uma toalha molhada cobrindo o rosto, baforando em cansaço como um doente.

— Foram vinte e seis... Você aprende isso na pele quando é a pessoa que tem que ficar com a parte mais exaustiva do serviço…

Sua voz escapou com dificuldades e as gotas em sua testa secavam tão rapidamente quanto eram postas.

— É... A gente meio que fez ele apagar as lembranças de um dia inteiro de vinte e seis pessoas diferentes... — Mark batia as pontas dos dedos, falseando culpa. — Então, como tu já deve ter imaginado, o nosso leitor de mentes acabou ficando cansadinho...

Isso só deixava um motivo no ar e odiaria ter de pensar nisso, mas para sua infelicidade, adivinhou corretamente.

— Então, a gente meio que vai ter que fazer isso do jeito difícil, se é que você me entende... Sabe, nem eu e nem a minha companheira aqui temos como fazer o que o Ryan faz, então...

“Não... Eles não vão tentar…”

Justo quando cogitou a possibilidade, Keith Webb sentiu cada terminação nervosa em seu corpo se aflorar em maldita antecipação e em função dos seus minutos futuros.

— Vamos fazer algumas perguntas, e é melhor que você responda muito encarecidamente a cada uma delas, ou, como eu posso dizer... Lira?

A moça, antes afogada nas sombras, trouxe delas um objeto peculiar e inócuo, incapaz de chamar atenção ou ser ameaçador.

Era um balde metálico, parcialmente enferrujado e não muito grande, e que pelos sons, soube estar cheio.

Ela entregou o balde nas mãos de Mark, que animadamente aceitou a fina alça, deixando derramarem algumas gotas sobre o chão de madeira podre e odor ácido da quadra.

— Já que todos aqui viemos de uma luta até meio complicada e eu tô vendo que tu tá bem sujo, então, por que a gente não começa com um banho?

Um movimento apressado foi tudo, e o som de litros de água a ser derramada subitamente ocupou o lugar em um eco.

— Vocês três... Eu sei o que estão planejando fazer...! — O assassino procurado se debateu na cadeira, desconfortavelmente ensopado da cabeça aos pés. — E se eu acabar morrendo dessa vez? De onde é que vão tirar essa informação?!

Riu de canto e encheu a boca de zombaria, antes de tornar a falar.

— Reduzir a impedância elétrica da minha pele vai fazer o choque fritar meus órgãos, e se isso acontecer, não vai restar nada para vocês!

Saber disso o fez orgulhoso o suficiente, feliz por não ter saltado as chatas aulas de física e ouvido uma coisa ou duas.

O que não contava, porém, era com a astúcia da Suzuki.

— Acha que não pensei nisso?

A garota de olhos afiados o viu de cima a baixo, impossível de ser mais condescendente.

— Uma descarga como essa tem a capacidade de matar um ser humano, mas você se esqueceu de duas coisas bem básicas sobre o funcionamento da eletricidade e seus efeitos, Keith Webb.

Ela se ajoelhou, seus dedos a arrumarem o esbelto rabo-de-cavalo de fios castanhos. Por um par de segundos, focou a visão daqueles olhos róseos à sua forma restrita àquela cadeira.

Seu braço esquerdo levava a taser e nela,  girou um pequeno seletor analógico, até marcar o segundo mais extremo à esquerda dos vários símbolos em exibição.

— Essas coisas são bem úteis... Têm até uma regulagem de intensidade, sabia?

“Merda...!”

Apertou o botão, direcionando o feixe luminoso de um brilho baixo até o acumulado aquático sobre o chão.

AAAAAAAAAAAAAAHHH!

Pelo que foram longos sete segundos, cada célula de seu corpo convulsionou mediante o sinal nocivo conduzido pela água.

— E então? — O olhou em deboche. — Não está morto, certo? Correntes se dissipam e ficam mais fracas conforme são absorvidas… Parece óbvio o bastante.

Respirações profundas somadas a uma encarada odiosa foram tudo o que pôde fornecer como resposta.

— Agora, vamos começar a nossa pequena sessão de perguntas. Acho que já sabe as regras. Não preciso lembrar que queremos ouvir nada além da mais pura honestidade vinda de você.

A estudante chamou por seus poderes, evocando o brilho róseo vibrante de sua vista. O interrogatório iria enfim se iniciar.

— Então, meu amiguinho! Eu vou ser o primeiro a te fazer uma perguntinha!

A animação de Mark existia em contraste pleno quanto ao medo sentido, ampliado pelos rubis de sangue. Suas perguntas eram as que mais temia responder.

— A gente meio que já conversou antes, mas eu não acho que ficou bem explicado, então por que não fala para a gente, em específico, como foi que um merdinha que nem você conseguiu um superpoder?

A presença feminina ao lado do autor da pergunta o enviou um aviso que não precisou de palavras para ser interpretado. Caso cogitasse mentir, viria outro choque.

— Porque, tipo... — Mark divagou em malabarismos mentais. — Por mais que esse teu poder seja uma merda, ainda assim é um poder, ainda que só funcione para alguma coisa se for com a ajuda de mais alguém.

Algo peculiar veio à discussão, retirado de seu bolso.

— Então, por que não os explica isso também?

... ... ...

— POLICÍA! MÃOS PARA O ALTO...! Ah... Espera um pouco...

— Não tem ninguém aqui.

O grande portão azul enferrujado se abriu subitamente, para revelar a chegada de dois policiais armados. Logo ao entrarem, os dois homens se mostraram altamente confusos.

— Ué... — O primeiro coçou a cabeça. — Eu posso jurar com tudo o que tenho que ouvi um grito vindo exatamente dessa quadra...

Seu colega analisou o perímetro por mais alguns segundos, incapaz de ver o crime contra a integridade humana que ocorria bem diante de seus olhos.

— Realmente não parece ter nada aqui... — convencido, deu de ombros.

Os dois se entreolharam tão desnorteados do que antes, mas se obrigaram a adotar a postura de profissionalismo, prontos para atirar na primeira coisa que parecesse minimamente suspeita.

— Hmm... Talvez tenha sido próximo daqui... Com aquele criminoso filho da puta à solta, eu não me surpreenderia se mais alguém estivesse sendo vitimado agora mesmo... Precisamos encontrar aquele bastardo...!

— Oooh! — Sem medo algum, Mark exclamou. — Parece que eles estão procurando por você...!

Mesmo sua voz alta foi incapaz de chamar a atenção dos policiais, que se entreolharam e rumaram novamente para dentro da edificação, os deixando ali.

— Maldito Mark... — O Perfurador de Elderlog falou em estranha graça. — Se esse seu poder não fosse tão roubado... Heh...

Um fraco riso amargo cortou o ar repleto de mofo e poeira entre o criminoso e seus torturadores.

— Ah, cala a boca. Eu tô fazendo um favor para todos nós! Aqueles tiras iam meter um pipoco no meio da tua cara no segundo que te vissem...! Isso ia deixar a gente sem resposta nenhuma!

— Que belo jeito de mostrar as suas prioridades... — manteve o mesmo humor de antes, na exata intensidade.

Àquela altura, já não mais era vista a impressão e os comportamentos condizentes de se estar sendo interrogado, o que chamou a atenção de uma pessoa em especial, e de maneira um tanto preocupante.

— Alguma coisa está acontecendo...! — Lira se exaltou.

Ela não se preocupou com ter de molhar seus sapatos caros… Não quando existia algo tão importante acontecendo, que apenas sua visão especial seria capaz de ver.

Pouco a pouco, desde o momento em que os policiais chegaram à quadra, a aura ao redor do corpo de Keith Webb começou a diminuir.

— Eu bem que imaginei que você ia ser a primeira a perceber, japonesinha — sorriu, de uma maneira muito menos intensa que o habitual.

Sem paciência para brincadeiras, a Suzuki puxou seu corpo pela gola de seu casaco vermelho. Amarrado, a cadeira o acompanhou, inclinando subitamente para frente.

— O que está acontecendo? Explique-se, agora!

Keith sentiu a enorme pressão dos poderes dela a esmagarem cada pedaço de seu peito por dentro. A luz que penetrava em seus olhos o levava para outro lugar, cheio de agonia e do mais puro sofrimento.

— Heh... — Mesmo em meio a toda dor interna, encontrou algo para rir sobre.

E o motivo para isso foi o fato de mais nada importar.

— Tarde demais — determinou, em tom final. — Eu já vou morrer de qualquer forma mesmo... O meu decreto de morte acabou de ser assinado.

A jovem de cabelos castanhos o soltou, chutando a cadeira logo em seguida, e mesmo caído, Keith não parava de rir.

— Eu mandei se explicar...!

Em um desenvolvimento inesperado, de sua cintura coberta pelo longo tecido do cardigã, Lira puxou uma pistola.

— É melhor começar a abrir a boca sobre isso, antes que eu mesmo te finalize!

Nas linhas laterais, o rosto de Mark foi o único que se moldou em certa surpresa, manifestada em assobio. 

O mesmo não podia ser dito de Ryan, todavia.

“Eu nunca duvidei que isso tivesse balas, mesmo que ela só tenha usado para me ameaçar.”

Até esse ponto, apenas ele tinha consciência da arma e, por isso, foi capaz de replicá-la nas memórias falsas.

E embora Ryan não duvidasse da capacidade de Lira para atirar de verdade, algo o dizia que isso não aconteceria.

Talvez, não pelas razões já imaginadas.

— Heheh... Atirando ou não atirando... Para mim tanto faz... Já é o fim da linha mesmo...

Com dificuldade, o adolescente amarrado encarou Mark, deixando um par de segundos ganharem a peso de serem longas horas.

— Ei, Mark... — O chamou, já quase sem voz. — Não tem mais volta. Ela já ouviu tudo… E você tá lascado.

A menção fez cada pêlo no corpo do Menotte se eriçar.



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